“Fiquei surpreendido com algumas das coisas que estão no livro. Fizemos muita asneira.” A confissão é de Rui Reininho, o livro é GNR – Onde nem a beladona cresce, 250 páginas que condensam 35 anos de carreira de uma banda fundamental da música pop portuguesa. Reininho, Jorge Romão e Tóli César Machado sempre tiveram os olhos postos no futuro, mas celebraram o passado numa Casa da Música que, esta terça-feira à noite, se encheu para ouvir histórias e canções como “Pronúncia do Norte” e “+ Vale Nunca”.
A entrada do trio, perto das 22h00, mereceu aplausos de pé. Reininho vestia blazer e camisa azul, António “Tóli” César Machado uma camisa preta às bolinhas brancas, composta por um colete preto, Jorge Romão escolheu uma camisa axadrezada. Os GNR até podem ter dito ao mundo que Os Homens Não Se Querem Bonitos, no disco de 1985 de onde saiu a canção “Dunas”, mas houvesse um inquérito na plateia sobre a aparência dos músicos e é provável que o título fosse contrariado.
Momentos antes, o presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, tinha estado em palco para dizer que a banda do Porto é a sua favorita. “Sempre estiveram à frente do seu tempo, com uma enorme liberdade”, elogiou. Essa liberdade, não só criativa mas de expressão, custou aos GNR uma incompatibilização com a Câmara do Porto de outro Rui. Enquanto Rui Rio esteve à frente da autarquia, entre 2001 e 2013, o grupo teve dificuldades em tocar na sua própria cidade.
“Como Rui Rio se tornou inimigo dos GNR e meu pessoalmente, porque nos boicotou, sinto-me no direito de dizer o pior da criatura. Tirou-me o meu ganha-pão. Durante aqueles anos, não fizemos mais espetáculos no Porto”, conta a certa altura Rui Reininho a Hugo Torres, jornalista do Público escolhido para reunir em livro este e muitos outros episódios de uma história riquíssima.
O apresentador Pedro Fernandes foi o escolhido pelo trio para conduzir uma entrevista bem-disposta em palco, perante a plateia, que serviu para passar em revista alguns dos momentos mais marcantes de uma história que começa em 1981 com Tóli, Vítor Rua e Alexandre Soares, a voz que ouvimos no velho sucesso “Portugal na CEE”. Reininho substituiria Alexandre Soares ainda em 1981. Em 1982, depois de uma trip de 30 minutos de improviso no Festival Vilar de Mouros, só com baixo, bateria, sintetizadores e voz, Vítor Rua convoca os companheiros para declarar o fim da banda. Um episódio a que Reininho chama jocosamente no livro “Cimeira de Boega“, por ter decorrido numa pensão chamada Boega, em Vila Nova de Cerveira, onde estavam hospedados.
-“Os GNR vão acabar aqui, pá. Vou acabar com isto“, disse Vítor Rua.
-“Vai acabar porra nenhuma. Se queres sair, sais“, respondeu Tóli.
Com o grupo reduzido a dois elementos, Alexandre Soares regressa como guitarrista. Poucos meses depois conseguem desviar Jorge Romão dos Bananas, futuros Ban. Estava definido o núcleo duro que daria ao país, por exemplo, “Dunas”, “Vídeo Maria”, “Pronúncia do Norte”, “+ Vale Nunca”, “Asas (eléctricas)” e a mais recente “Triste Titan”, os seis temas que escolheram interpretar na Casa da Música, como uma espécie de resumo da matéria dada.
A apresentação da biografia autorizada, editada pela Porto Editora, foi em simultâneo uma homenagem ao que hoje podiam ser os Trompas de Falópio, um dos nomes que estiveram entre o leque de opções do grupo. Lá optaram por GNR, o que lhes valeu alguns mal entendidos com as autoridades na fase embrionária da democracia portuguesa, e que em 2008 acaba por juntá-los à Banda Sinfónica da GNR para alguns concertos que Tóli considera de extrema importância no seu percurso. Só lamenta que o espetáculo não tenha sido apresentado no Porto. “E a gente sabe bem porquê”, acrescenta no livro.
No final de muita pesquisa pela imprensa da época e de entrevistas com cada músico, Hugo Torres batizou o manuscrito com um verso da canção “Ao Soldado Desconfiado”, incluída em Psicopátria, de 1986. “É um álbum de cume criativo dos GNR. E é quando eles se tornam uma banda gigante, de massas”, explicou ao Observador o autor da biografia. Beladona é uma planta com potencialidades psicotrópicas que cresce em qualquer lado. “Isto é uma brincadeira com a ideia de que os GNR são esta potência pop. Mas como Portugal tem um mercado tão reduzido, têm uma carreira espartilhada.”
Levar uma banda que sempre olhou para o futuro e para o que é novo a mergulhar no passado não foi nada fácil. “Eles são muito modestos, encheram estádios, mas é como se não se passasse nada. Além disso, não gostam nada de comemorar efemérides porque dizem que estão vivos. E estão, de facto, porque o último álbum, Caixa Negra, é incrível.” O jornalista de 32 anos, natural da Póvoa de Varzim, sempre foi fã. Agora, que conhece de trás para a frente cada disco, é mais ainda. “Para mim são, sem dúvida, a maior banda pop nacional“, disse, sem hesitar.
GNR – Onde nem a beladona cresce chega às livrarias esta quarta-feira. Depois da biografia, fica a faltar no currículo dos GNR um DVD, gritou da plateia um fã mais interventivo. No palco, Tóli concordou, e deixou escapar que os concertos de comemoração dos 35 anos de carreira, agendados para 5 de novembro no Multiusos de Guimarães e 12 de novembro no Campo Pequeno, em Lisboa, vão ser gravados e editados.
Antes de terminar a entrevista em direto, Pedro Fernandes perguntou ao já sexagenário Reininho, e aos cinquentões Tóli e Jorge Romão, como era viver só com o rock n’roll, isto é, sem sexo nem drogas. “Em Câmara Lenta“, respondeu prontamente Reininho, mestre a brincar com as palavras e a fazer trocadilhos imprevisíveis. Os GNR estão mais velhos e a saúde pode não permitir certos abusos. Mas continuam a provar que, no caso deles, o verso “Mais vale nunca mais crescer”, que tinham cantado momentos antes, está errado. 35 anos depois, vão continuar a procurar caminhos novos para andar.