O cargo de secretário-geral das Nações Unidas está, em teoria, acima de todas as intrigas políticas, dos interesses nacionais e dos jogos de bastidores. Mas o caminho até lá chegar não. Os três primeiros classificados na última votação informal podem todos cair, devido aos possíveis vetos dos membros permanentes do Conselho de Segurança. E, num ano em que se abria a esperança de uma primeira mulher a ocupar o cargo mais alto da diplomacia mundial, são três homens que lideram a corrida, com Guterres na frente. A própria Helen Clark, uma das candidatas mais bem qualificadas para o cargo, já desvalorizou o papel do sexismo nas votações. “Há um turbilhão de fatores”, assegura ao The Guardian. Já Natalie Samarasinghe, líder da Associação das Nações Unidas britânica, que tem vindo a fazer campanha por uma seleção mais transparente, assumiu: “O poder político interessa mais. Aquilo a que estamos a assistir é uma batalha entre os membros permanentes para se afirmarem, em que os candidatos, em última análise, interessam menos do que o país que consegue levar a melhor”.

Todos os candidatos têm um receio em comum: o veto de um dos membros permanentes do Conselho de Segurança. E os cinco países que o constituem (Estados Unidos, França, Reino Unido, Rússia e China) têm todos interesses próprios e vão usar o seu poder de veto para os defender. Até agora, as votações têm sido informais — esta segunda-feira decorre a última –, em que cada candidato pode receber três tipos de votos: encoraja, desencoraja, e não tem opinião. A partir da próxima votação, os membros permanentes do Conselho de Segurança usarão boletins de voto com um código de cor. Se um candidato tiver um boletim com esse código entre os seus votos “desencoraja”, fica excluído da corrida. Os últimos dias têm sido intensos em episódios para negociar com quem tem poder de veto. Basta ver como Marcelo (e Sampaio) deu uma ajuda diplomática a Guterres na recente visita a Nova Iorque.

Guterres e o Twitter falso

O antigo primeiro-ministro português tem sido o mais votado em todas as eleições informais. A grande ameaça para Guterres é o possível veto da Rússia, que prefere um secretário-geral originário da Europa de Leste. Um líder ocidental, aliado dos Estados Unidos, é o oposto do que Moscovo quer. O grupo da Europa de Leste é o único dos grupos regionais da ONU que ainda não teve um secretário-geral. Na semana passada, apareceu no Twitter uma mensagem em nome de Guterres, dizendo que o candidato português tinha conversado com o embaixador russo na ONU e garantido o apoio da Rússia na votação. Esta revelação acabaria com a corrida, dando a vitória certa a António Guterres, mas já veio a saber-se que, afinal, se tratava de uma conta falsa. O aviso já circula. Era apenas uma jogada de bastidores.

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Bokova vs. Georgieva. Os emails atacados e a campanha de bastidores

O jogos de bastidores têm sido ainda mais intensos na Bulgária. Depois dos fracos resultados obtidos por Irina Bokova, a atual diretora-geral da Unesco, e que foi oficialmente proposta pela Bulgária, começou uma campanha para a substituir por outra búlgara, a vice-presidente da Comissão Europeia Kristalina Georgieva. Como recorda o The Guardian, uma série de artigos foram publicados em jornais britânicos a atacar Irina Bokova. O último episódio foram as conversas entre Angela Merkel e Vladimir Putin, na cimeira do G20, na China. Lá, a chanceler alemã tentou convencer Putin a apoiar Georgieva na votação, o que incendiou as relações entre Alemanha e Rússia.

No início deste mês, o e-mail de um dos funcionários da equipa de Georgieva foi atacado por hackers, que enviaram mensagens a partir dessa conta para todos os membros do staff da vice-presidente da Comissão Europeia, com instruções para atacarem a líder da Unesco, Irina Bokova.

O primeiro-ministro búlgaro, Boyko Borisov, diz que vai esperar pelos resultados da votação desta segunda-feira para decidir se continua a apoiar Bokova ou se muda o seu apoio para Georgieva. Já a Rússia tem vindo a fazer campanha por Bokova. Georgieva já admitiu que tem estado a ser pressionada para se candidatar, mas fez questão de sublinhar que se trata de uma decisão que cabe ao governo búlgaro. As regras da seleção do secretário-geral não impedem que um candidato entre a meio da corrida, nem sequer que seja proposto por um país que não o seu, o que já levou vários países a admitirem a hipótese de recomendar Georgieva.

A ameaça dos vetos

Além de Guterres, que poderá cair devido a um eventual veto da Rússia, os outros candidatos que ocupam os lugares cimeiros também estão em risco de não reunir a aprovação dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança — condição necessária à seleção. O segundo classificado na última votação, Miroslav Lajčák, que é atualmente ministro dos Negócios Estrangeiros da Eslováquia, saltou diretamente do penúltimo lugar para a segunda posição, após uma visita do primeiro-ministro eslovaco, Robert Fico, à Rússia, poucos dias antes dos votos. O candidato da Eslováquia, país que apoia habitualmente a Rússia, pode acabar por perder a eleição, uma vez que é provável que um dos membros permanentes ocidentais vote “desencoraja”.

Também o terceiro classificado, Vuk Jeremić, atual presidente da Assembleia Geral da ONU e antigo ministro dos Negócios Estrangeiros da Sérvia, não deverá ter hipóteses de chegar ao cargo. É que Jeremić foi contra a independência do Kosovo, pelo que tudo indica que os Estados Unidos irão vetar o candidato. Além disso, Washington considera que o sérvio tem aproveitado o seu lugar enquanto presidente da Assembleia Geral para passar mensagens nacionalistas.

O Conselho de Segurança da ONU tem servido também de palco para lutas entre países por causa de assuntos como a Crimeia ou a Síria, o que pode (e está a) fazer com que os candidatos se tornem no menos importante da corrida. E enquanto não começarem a valer os vetos, está tudo por decidir.