Em 1998, o escritor nova-iorquino Paul Auster estreou-se como realizador (a solo) com o filme “Lulu on the Bridge”. O argumento, claro, era dele, a banda sonora era excelente, o filme, assim-assim. O elenco, esse, não era nada mau. Harvey Keitel, Mira Sorvino, então no auge da fama (o que será feito de Mira Sorvino?), e ainda Gina Gershon, Mandy Patinkin, Vanessa Redgrave e até David Byrne. Tudo gente recomendável num grande Clube dos Amigos do Auster. Ah, e Willem Dafoe, no papel de Dr. Van Horn.
Ora, este papel tinha sido escrito por Paul Auster a pensar em Salman Rushdie (as coisas que passam pela cabeça de um escritor!), mas como o filme, apesar de tanta gente conhecida, tinha um orçamento modesto a produção teve de deixar cair a ideia. A presença de Rushdie teria feito disparar (por assim dizer) os custos com a segurança (do próprio Rushdie e de toda a equipa de filmagens) porque, naquela época, ainda vigorava a fatwa decretada pelo Aiatola Khomeini, esse simpático sujeito de longas barbas brancas, em 1989.
Bonita palavra
Foi a 14 de fevereiro de 1989 que o líder iraniano, certamente querendo assinalar a amorosa data, deu a conhecer ao mundo essa bonita palavra de cinco letrinhas apenas: fatwa. Ao contrário do que se pensa, uma fatwa não é uma sentença de morte ou um anátema lançado sobre alguém. Trata-se de uma opinião sobre a forma como a lei islâmica deve ser interpretada e aplicada, ou seja, é uma espécie de parecer religioso-legal que visa o esclarecimento dos fiéis sobre o comportamento a adoptar em caso de dúvida ou aparente contradição com o texto sagrado.
Em 2001, por exemplo, alguém se lembrou de perguntar às autoridades eclesiásticas dos Emirados Árabes Unidos se jogar Pokémon estava de acordo com a lei islâmica. Resposta: não, trata-se de um jogo que promove a teoria da evolução, essa invenção “judaico-darwinista”. OK, nada de jogar Pokémon. E matar o blasfemo Salman Rushdie, pode ser? “Não só pode como deve”, terá pensado o aiatola antes de se aproximar da varanda do palácio em Teerão e ter posto a cabeça de Rushdie a prémio, por causa do romance Os Versículos Satânicos. E não só do escritor como também dos editores e restantes pessoas ligadas à publicação do livro.
Cabeça a prémio
Os anos seguintes não foram fáceis para Rushdie que teve de viver sob protecção da polícia inglesa, embora algumas vozes o tenham acusado de se aproveitar da fama conquistada com a declaração de Khomeini, como foi o caso do escritor Roald Dahl, que o chamou de “oportunista perigoso”. É verdade que Rushdie já tinha ganhado o Booker Prize em 1981 com o seu segundo romance, Os Filhos da Meia-Noite, mas a fatwa tornou-o conhecido a uma escala global. Porém, aquelas vozes críticas (ou cínicas) ignoravam (talvez voluntariamente) a perigosidade da ameaça que pendia sobre Rushdie. Em Inglaterra, houve manifestações em que se queimaram exemplares do livro e ataques bombistas a livrarias. Nos EUA, os livreiros receberam ameaças e aqueles que tinham o livro à venda escondiam-no. Em 1991, o tradutor japonês do livro foi assassinado à facada por um estudante do Bangladesh e o tradutor italiano ficou gravemente ferido depois de sofrer um ataque também à facada.
Apesar dos pedidos de desculpas de Salman Rushdie, a fatwa não foi retirada e, por isso, em 1998, o escritor era um dos homens mais protegidos e mais ameaçados do mundo. Tê-lo por perto era quase tão perigoso como nadar num lago de piranhas. Daí que a participação em “Lulu on the Bridge” tenha sido descartada, para alívio dos técnicos e tristeza de Auster e de Rushdie, que acreditava que, se não fosse escritor, poderia ter dado um excelente actor.
A oportunidade apareceu em 2001, quando foi convidado a participar no filme “O Diário de Bridget Jones” para desempenhar o papel de… Salman Rushdie. A participação breve – na verdade, mais uma aparição do que um papel – deve-lhe ter agradado e em 2007 teve finalmente direito a ser outro (já devia estar habituado depois de anos a viver com um nome falso), na estreia da actriz Helen Hunt atrás das câmaras (“Até que me Encontrou”): Dr. Masani, obstetra.
Mas e se o aiatola Khomeini nunca tivesse lançado a fatwa e Salman Rushdie pudesse ter dedicado mais tempo à arte da representação? Ficam aqui alguns papéis dos últimos 27 anos que julgamos que teriam assentado como uma luva ao escritor:
Jules Winnfield (Samuel L. Jackson) em “Pulp Fiction”: só para ter o prazer de o ver a recitar um versículo da Bíblia.
Deus (Morgan Freeman) em “Bruce, o Todo-Poderoso”: Deus, pois claro.
Donnie Brasco (Johnny Depp) em “Donnie Brasco”: as agruras de viver com outra identidade.
Godfrey of Ibelin (Liam Neeson) em “O Reino dos Céus”: um cruzado parece-nos uma óptima ideia.
Christian (Ewan McGregor) em “Moulin Rouge”: para o papel de um escritor não teria de fazer pesquisa e seria um prazer ouvi-lo cantar “I don’t have much money but boy if I did, I’d buy a big house where we both could live.”
Oráculo (Gloria Foster) em “Matrix”: pessoas inteligentes que sabem coisas que nós não sabemos.
The Dude (Jeff Bridges) em “O Grande Lebowski”: tipo, um gajo que se preocupa com o tapete da sala, tipo.
Cameron Poe (Nicolas Cage) em “Con Air”: “put the bunny back in the box”, “Now why couldn’t he put the bunny back in the box?”
Mills (Brad Pitt) em Seven – “Sete Pecados Mortais”: enfrentar um psicopata moralista e dizer “what’s in the box?” Não, não é o bunny.
Rei Ricardo Coração de Leão (Sean Connery) em “Robin Hood” – Príncipe dos Ladrões: doze segundos no ecrã, dois dias de trabalho, 250 mil dólares de salário.
Jack Twist (Jake Gyllenhaal) em “Brokeback Mountain”: “I wish I knew how to quit you!” Diz isto com sentimento, Salman!
Albert Goldman (Nathan Lane) em “Casa de Doidas”: vamos lá assumir as coisas sem medo, só naquela.
Reverendo Graham Hess (Mel Gibson) em “Sinais”: perder a fé, reencontrá-la e, pelo caminho, derrotar os fundament… perdão, os extraterrestres.
Jimmy Markum (Sean Penn) em “Mystic River”: um durão de Boston para que Rushdie mostrasse a sua versatilidade.
Evaristo (Miguel Guilherme) em “O Pátio das Cantigas”: “Ei-veh-ree-shtu???”
[Salman Rushdie está esta sexta-feira, dia 30, à conversa com Clara Ferreira Alves no FOLIO, em Óbidos, a partir das 21h00]
Bruno Vieira Amaral é crítico literário, tradutor e autor do romance “As Primeiras Coisas”, vencedor do prémio José Saramago em 2015