“Não basta ser em vida um nome frouxamente iluminado para cintilar dois séculos mais tarde. Nem sequer basta uma grande obra ser grande e manter-se firmemente à distância para que a posteridade lhe restitua o brilho do dia (…) a verdade é que muitas obras se esgotam prematuramente por serem demasiado admiradas. Essa grande fogueira da glória com que os escritores e artistas se regozijam e que lança as suas últimas chamas na ocasião da sua morte, queima neles uma substância que doravante faltará à sua obra. Quando o corpo é tudo o que têm, nada sobrará quando morrerem”.
Ante a morte de um dos grandes poetas do nosso tempo, Leonard Cohen, gostaríamos que esta afirmação de Maurice Blanchot, não fosse verdade. Mas o carpir desmedido (onde me incluo) pode não evitar que que daqui a dois ou três dias nos apaixonemos por outra qualquer novidade e o anjo melancólico com voz de barítono ficará, como de resto acontece aos poetas, no reduto dos que amam contra as circunstâncias e a passagem do tempo e, depois, dos que contra as modas e as ditaduras do gosto encontram os poemas na praia do coração, como sonhava Paul Celan.
Se não se tivesse tornado músico, se não cantasse os seus poemas é provável que a maior parte das pessoas não o conhecesse. Até porque a sua poesia que atravessou mais de cinquenta anos e conquistou legiões de ouvintes/leitores em várias gerações está longe daquilo que é hoje tido como “boa poesia”. Desde logo pelo registo confessional, pelo ritmo, pela religiosidade, pela ambiguidade sobre a qual se erguem as suas imagens mais claras e que remete inevitavelmente para a tradição judaica do texto infinito. O texto, o poema, nunca está completo, fechado, mas dirige-se a um vazio que abre para a interpretação.
Religião, poesia e… mulheres
A sua voz ora provocatória, ora melancólica, ora sexual, ora puritana parecia não ser posta à posteriori sobre os poemas mas sim nascer com eles, de dentro deles. Sendo igual a voz de Cohen nunca era a mesma em cada novo poema cantado. Era mais ou menos intensa, mais provocatória ou melancólica, monástica ou abertamente sexual. Estas vozes que habitam o universo poético e musical de Cohen são também a expressão de outro dos aspetos que distingue a sua obra: o facto de haver em cada poema uma voz que é simultaneamente pessoalíssima e parte da experiência concreta do poeta, mas que, ao mesmo tempo, está carregada da experiência humana universal, de símbolos e sentidos que atravessam os tempos e que são partilhados pela grande comunidade humana.
Profundamente herdeiro da tradição judaica, embora nunca tendo feito disso uma bandeira, a sua poesia está empapada no Antigo Testamento, religião e… sexo. Sexos femininos, corpos de mulheres onde se materializava a sua busca de Deus, da poesia e, em ultima instância, do Belo. A sacralização do corpo feminino legou-nos uma galeria de figuras de recorte enigmático, Marianne, Suzanne, Joana d’ Arc Alexandra, Heather… A experiência religiosa sempre frustrada, quer no Judaismo, quer no Budismo parece ter, na sua poesia, encontrado algum apaziguamento temporário no amor pelas mulheres. Eis outro tema tão pouco em voga na poesia contemporânea onde a descrença serve a uma boa dose de puritanismo. Talvez por isso Cohen seja um poeta tão amado pelas mulheres, tão cortejado por elas. Porque nele o corpo feminino não é nunca um objeto de uso, mas um altar religioso, ainda que desse encontro resultasse quase sempre a reiterada frustração de nunca alcançar o Absoluto.
Outra das heranças de Cohen é o poeta Federico Garcia Lorca e com ele toda uma tradição órfica da poesia. O poema surge para ser cantado e é nesse canto que ele se cumpre.
A força poética da fé e da dúvida
Leonard Cohen deixa uma obra vasta, onde, para além dos 14 álbuns de música original, há 13 livros de poemas e dois romances. Por entre as histórias, as cidades, as danças, a ameaça da catástrofe, da morte a poesia de Cohen assume inevitavelmente um tom profético. Não para anunciar um messias salvador mas para anunciar a impossibilidade de salvação. perante cada dia que nasce, cada nova tecnologia que surge, cada amor que nos promete redenção o poeta mais não faz do que recolher as cinzas.
Assim, a melancolia do poeta Cohen é menos por aquilo que se perdeu, menos pelo instante que passa, e mais sobre a impossibilidade de futuro. Nessa impossibilidade de futuro, onde ele se coloca a contrapêlo da tradição judaica do messianismo, ele explora a ambiguidade de tudo. Quer pela ironia, quer pelas figuras da tristeza, o nevoeiro, o frio, o inverno, as águas, do mal, das trevas.
Neste sentido, o poema The Flood, escrito no monte Sinai em 1973, regista essa suprema ambiguidade da poesia de Cohen: onde está a fé também está a dúvida.
The flood it is gathering
Soon it will move
Across every shoreline
Against every roof
The body will drown
And the soul will shake loose
I write all this down
But I don’t have the proof
É com a mesma fé e dúvida que nos perguntamos como Hölderlin: Para que servem poetas em tempos de indigência? Cohen é demasiado grande para leituras maniqueístas e demasiado distante para alimentar o sentimentalismo fast food tão cultivado no nosso tempo. Por mais simples que se nos afigure, a verdade é que este homem e esta que é a sua poesia são demasiado reverberantes, excessivas, dolorosas para aguentarem a voragem de um tempo que se alimenta do espetáculo e do circunstancial. E o canibalismo mediático onde hoje o devoram é um dos totalitarismos do nosso tempo e contra o qual ele sempre se posicionou ao cantar o silêncio, a introspeção, o recolhimento. Mas sobretudo ao posicionar a sua poesia e a sua música teimosamente fora da História e do circunstancial.
Como, de resto, se pode ler neste texto revelador Falar Poesia, que foi traduzido pelo poeta Vasco Gato para a editora Língua Morta, já este ano, num volume intitulado Lacre:
Já não há palco. Já não há ribalta. Tu estás no meio das pessoas. Portanto sê modesto. (…) chega-te para o lado. Fica a sós. fica no teu canto. Não te insinues. Trata-se de uma paisagem interior. É por dentro. É privado. respeita a privacidade do texto. Estas obras foram escritas em silêncio. A coragem da atuação é dizê-las. A disciplina da atuação é não as violar. Deixa que o público sinta o teu amor pela privacidade ainda que não haja privacidade. Sejam boas putas. O poema não é um slogan. Não poderá publicitar-te. Não poderá promover a tua reputação de seres sensível. Tu não és um garanhão. Tu não és uma mulher fatal.(…) não representes as palavras. As palavras morrem se as representares, murcham, e a única coisa que sobrará será a tua ambição.”