O Garrincha português. A expressão é de Gabriel Hanot, célebre jornalista francês do diário desportivo “L’Équipe”, e define a história do homem que vive o futebol em dois clubes (Barreirense e Benfica) e em duas posições (avançado centro e extremo direito). Em qualquer dos casos, José Augusto dá excelente conta do recado e tem lugar marcado na história do futebol benfiquista e português. Entre outros feitos, estreia-se na 1.ª divisão com idade júnior (18 anos), é internacional A pelo Barreirense, ganha duas Taças dos Campeões, representa duas vezes a seleção do Mundo e ainda marca três golos, todos de cabeça, no Mundial-66. Pelo meio, é ainda considerado o melhor extremo direito europeu na tal ressaca da grande exibição em Aarhus (4-1 do Benfica em 1961), em que é levado em ombros pelos entusiastas adeptos dinamarqueses. É o Garrincha português, a alegria do povo. No seu currículo, quatro Taças de Portugal, todas pelo Benfica: três como jogador (1962, 1964 e 1969), uma como treinador (1970). Como ele, há Pedroto (Porto), Juca (Sporting), Lino (Sporting), Osvaldo (Sporting), Toni (Benfica), Bento (Sporting) e Oliveira (Porto). Eis os sete magníficos dos conquistadores da Taça como jogador e treinador pela mesma equipa.

Olhó Rui, tudo bem?

Tudo bem, e o José Augusto?
Vou andando, um dia de cada vez.

E posso fazer-lhe uma pergunta de cada vez?
Claro que sim, à vontade.

Há dias, vi uma foto sua como jogador de basquetebol do Barreirense. Era fotomontagem ou…?
Nã nã nã, joguei mesmo basquetebol. Dois anos nos juniores.

Deixou o futebol e dedicou-se ao basquetebol?
Nã nã nã, jogava um e outro. Antigamente, era assim. Éramos multi-desportivos. Treinava basquetebol à segunda e sexta, o futebol era à terça e quinta.

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E os jogos?
Aos sábados, o basquetebol. Aos domingos, o futebol.

E haver força para tudo isso?
Força? Ah ah ah, claro que sim. Ainda fiz vela no meio disto tudo.

Uauuuu. Conte-me lá a aventura do basquetebol.
Muito bem. Para isso, tenho de recuar aos meus 13/14 anos. O meu pai acabara de morrer. Sabes que o meu pai jogou no Barreirense?

Não havia ideia. Como se chamava?
Alexandre de Almeida. Jogava na mesma equipa de Armando Ferreira, Pireza e Francisco Moreira.

Lembra-se bem dele?
Não me lembro de o ter visto jogar, mas recordo-me perfeitamente das vezes que jogávamos futebol nuns terrenos ao pé de casa.

Dizia o José Augusto que o seu pai acabara de morrer.
Sim senhor, ele morreu muito novo, antes dos 40 anos. Como era filho único, tive de crescer depressa para ajudar a minha mãe nas contas. Por isso, aos 13/14 anos, entrei para o futebol. E comecei, imagina só, como guarda-redes.

À baliza?
Isso mesmo. E gostava daquilo. Um certo dia, o treinador mandou-me trocar de posição com o Zeca Macedo, que se lesionara. Lá fui para o lugar de avançado. Nem queiras saber…

Então?
Marquei nove golos nesse treino.

Xiiiiii.
O Armando Ferreira, o tal que jogara com o pai no Barreirense antes de se transferir para o Sporting, disse-me ‘tens é de jogar à frente’.

E o que é que isso tem a ver com o basquetebol?
Nos meses em que joguei à baliza, ganhei experiência no tempo de salto. Ou seja, já sabia todas as manhas para chegar primeiro à bola à custa de muitos cálculos. Isso deu-me naturalmente mais bagagem para o basquetebol.

Pois, imagino. E como foi a experiência do basquetebol?
Gostava muito, muito mesmo.

E era bom. Ou melhor, quantos pontos fazia por jogo?
Uns 10 ou 15.

Era poste, base ou…
Extremo.

E era especialista em quê, triplos?
Triplos? Ah-ha, essa é boa. Ainda não havia triplos nessa altura. Havia os lançamentos de dois pontos, de qualquer lado do campo, e os de um, os lançamentos livres.

Não havia triplos? Essa é mesmo boa. E o pavilhão, sempre a abarrotar?
Pavilhão? Ah-ha, essa também é boa. Ainda não havia basquetebol de pavilhão, os jogos eram ao ar livre. O vento tinha muita influência.

E a chuva?
Também influenciava, claro. Jogar à chuva com aquelas bolas de couro era do mais tramado que havia.

Que tempo, bolas. Então e mais?
Gostava muito de basquetebol, sabes? Só que houve um dia em que me pediram para escolher entre o basquetebol ou o futebol e optei pelo futebol. O meu sonho era jogar no Barreirense. Aliás, o meu sonho era entrar em campo com a camisola do Barreirense e as pessoas dizerem ‘olha, ali vai o filho do Alexandre de Almeida’.

E isso aconteceu. Fantástico.
Aconteceu até bem cedo. E ainda bem. Era o amparo da minha mãe e o futebol ajudou-nos a ultrapassar dificuldades. Lembro-me perfeitamente da minha mãe Celeste ter uma conversa séria comigo a perguntar-me se me queria dedicar aos estudos ou ao futebol. Escolhi novamente o futebol e tornei-me profissional da coisa.

Só isso, não fazia mais nada?
Claro que fazia. No Barreiro, era comum trabalhar para os Caminhos de Ferro. Eu também fiz esse trajeto. Primeiro como metalomecânico, depois como estofador. Os primeiros tempos eram mais árduos, porque sujava-me todo e ainda se trabalhava com o ferro sem luvas. Quando adquiri um certo estatuto dentro da empresa, à custa de boas notas, pedi para ser estofador.

E isso era o quê?
Era tratar dos bancos dos comboios e até dos barcos. Era um trabalho igualmente braçal, mas menos duro e mais limpo.

Enquanto isso, jogava à bola?
Exato. Tive a sorte de me estrear bem cedo no Barreirense, ainda em idade júnior.

Lembra-se do jogo?
Desse, da estreia, e até do seguinte.

Vamos por partes.
Certo. A estreia é com o Caldas, empatámos 1-1 em casa. O golo deles é marcado por um jogador chamado Lenine.

Curioso. E o segundo jogo?
Barreirense 2 Sporting 3. Sabes quantos golos marquei?

Dois. Quer dizer, a não ser que tenha feito um autogolo.
Marquei três golos ao Carlos Gomes. Três. E só me validaram dois. O árbitro era um sportinguista chamado Borges Leal.

Sportinguista?
Sim, mas isso não é mal nenhum. Qualquer pessoa que tenha crescido a ver os Cinco Violinos, tomava o partido do Sporting. Da mesma maneira que muitas crianças dos anos 60 são do Benfica. É natural.

Mas esse golo é bem ou mal anulado?
Mal.

Então, o José Augusto saltou em cima do Carlos Gomes?
E se saltasse? Na altura, isso era permitido.

Como?
É isso ò Rui. A regra do não se pode tocar no guarda-redes dentro da área pequena [José Augusto diz mesmo área pequena] é posterior a esse lance. Antes, era tudo nosso e nada deles, dos guarda-redes.

Essa é boa. Outra que não sabia.
Bom, o Borges Leal anulou-me um golo.

Ainda por cima ao Carlos Gomes.
Meu grande amigo. Aqui do Barreiro, como eu. Gente séria, reta. Como ele, ninguém fazia farinha. Ele tinha o 5.º ano liceal, sabia falar, expor ideias e não se deixava levar com facilidade. Eheheheh

Está a rir-se de quê?
Na minha estreia pela seleção, em Wembley, fiz uma primeira parte boa. Atirei à trave e tudo. Ao intervalo, o selecionador uruguaio Enrique Fernández substitui-me pelo Travassos. O Carlos Gomes diz-me então que não percebia o porquê daquela troca. Assim mesmo, alto e bom som, para todos ouvirem. Bem, não imaginas o sarilho. O Enrique Fernández começou a trocar bocas com o Carlos Gomes e o caldo ia-se entornando. Se não fossemos nós a intrometer-mo-nos, aquilo dava uma barraca enorme.

Tem mais do Carlos Gomes.
Uyyyyy, então não. Uma vez, quando ele defendia o Atlético, treinado pelo José Águas[1961-62], o intervalo de um jogo com o Benfica demorou mais tempo que o habitual. A PIDE estava na Tapadinha e ia levá-lo para interrogatório. Mas só depois do jogo. Ao intervalo, um amigo dele alertou-o para iesse facto, meteu-o na bagageira de um boca de sapo [Citröen] e lá foram para Badajoz. O Carlos Gomes foi parar a Marrocos. E o intervalo desse jogo demorou sei lá o quê. Quando o Atlético entrou em campo, o Carlos Gomes já estava a caminho de Badajoz.

E depois?
Depois, o Carlos Gomes foi para Marrocos e ainda jogou por lá. Quando fui treinar para lá, nos anos 80/90, os marroquinos ainda me contavam histórias do Carlos Gomes. Que, uma vez, ele defendeu dois penáltis pelo Tânger num jogo em que a equipa adversária o tinha tentado subornar.

Tentar?
Sim, na véspera do jogo, essa equipa foi ao hotel do Tânger e quis pagar ao Carlos Gomes uma certa quantia para deixar entrar golos. Ele, recto como sempre, negou. E negou e negou. Já o resto da equipa estava mais ou menos combinada com os outros. Contavam-me eles, os marroquinos, que o árbitro apitou dois penáltis e que ele os defendeu. Era tramado. Sabe o que lhe aconteceu?

Nem por isso.
Cá fora, depois do jogo, o Carlos Gomes foi brutalmente agredido e foi parar ao hospital. Pagava-se caro a retidão. Era assim o Carlos Gomes. Não alinhava com nada. E jogava de preto, como o Yashin. Ou melhor, ainda antes do Yashin.

Ele regressou a Portugal?
Sim, sim. Quando o fez, já estava mal. Quem o deixou cá foi a sua namorada de então, uma austríaca que ele conhecera em Viena. Mal ela partiu, ele nunca mais comeu nem bebeu. Pediram-me para ir ter com ele e animá-lo. Assim o fiz. Parece que o estou a ver, acamado. Massajei-lhe as pernas, porque as enfermeiras diziam-me que ele não saía da cama há dias. Há semanas, aliás. E pedi-lhe para animar-se. Ele, com muita calma, só me disse isto: ‘Quero morrer e quero que me sepultem na campa do meu pai.’ Digo-te sem reservas: ainda hoje foi o melhor guarda-redes que vi. Sem reservas. O melhor dos melhores. Tinha tudo: reflexos, sentido posicional, coragem e habilidade. Sem esquecer o instinto para defender penáltis. Era um fora de série.

E o José Augusto marcou-lhe dois golos?
Eheheheh, pois foi. Logo a ele que tinha dito na véspera que não ia sofrer nenhum.

No Verão de 1959, o José Augusto vai do Barreirense para o Benfica. Porquê Benfica?
Sempre foi o meu clube.

Porquê, insisto?
Cinco dos campeões da Taça Latina 1950 (a famosa final com o Bordéus, no Jamor) eram do Barreiro: o guarda-redes Contreiras, o central Félix Antunes, os goleadores Corona e Arsénio mais o tal Moreira que tinha jogado com o meu pai no Barreirense. Cresci a vê-los jogar, a ouvir falar sobre os seus feitos. E há ainda um outro pormenor: esses cinco, juntamente com os outros jogadores do plantel, foram jogar ao Barreiro em homenagem ao meu pai, que entretanto adoecera.

Grande gesto.
Calma, há mais. O Benfica veio cá, por graça, e era um jogo de caixa aberta.

O que é isso?
Caixa aberta é quando cada espectador entra e paga o que bem entender. Não há bilhetes nem preço, é caixa aberta. Sabes quanto deu esse jogo?

Quanto?
36 contos. Naquela altura, era muito dinheiro.

Mas então e aquela história de que o José Augusto estava quase a ir para o Porto?
Nunca entendi bem essa história. Ainda hoje a ouço e fico admiradíssimo de como se perpetua uma mentira. Eu nunca falei com quem quer que seja do Porto. Nunca, nem uma palavra. O Benfica, sim, falou com o Barreirense sobre mim. Só que o Barreirense pagou mil contos. Se 36 contos era dinheiro, imagina mil contos. Era uma brutalidade. O Benfica recuou nas intenções de me contratar, só que eu fiquei com a carta de desobrigação na minha posse, subi os degraus até à direção e disse que queria ir para o Benfica. Com a carta na mão, podia fazer o que bem quisesse, até sair para o Benfica sem dar cavaco ao Barreirense. Mas não o poderia fazer, nunca. Então, acertámos a transferências: 350 contos para o Benfica e 100 para mim.

Cem contos?
Muito dinheiro. Só para veres, dava para comprar um apartamento com três assoalhadas.

Porquê a invenção do Porto?
Não sei ò Rui, ainda hoje não sei. Talvez para mascarar alguma situação desagradável. É preciso ver que o Porto tinha perdido o Bela Guttmann para o Benfica naquela altura.

No Verão de 1959?
Isso mesmo. O Porto é campeão nacional com o Guttmann e, de repente, o Guttmann assina pelo Benfica. Foi um estrondo mediático. Juntamente com o Guttmann, eu.

Como é que era o Guttmann?
Uma peça. Só visto. O que ele passou, nem imaginas: foi vítima do crash da bolsa de Nova Iorque em 1929. Era um visionário. Dizia as coisas com muita convicção e nós acreditávamos nele. Ia sempre de elétrico para os treinos do Benfica. Quando ia para casa, levava-o de carro até ao Chiado, onde ele morava. Uma vez, o meu carro foi-se abaixo por falta de gasolina, ali ao pé do jardim zoológico. Ele nem foi de modas: abriu a porta, despediu-se de mim e apanhou um táxi. Eheheheh, eu tive de arranjar uma saída.

Boa companhia, o Guttmann?
Isto foi só um episódio. Ele era sensacional, uma ótima companhia. Quando passávamos por alguma esplanada ou bar, ele dizia-me sempre para não entrar ali nem beber cerveja gelada em circunstância alguma. “Um futebolista tem de ter uma vida boa e manter a boa forma.” Dizia-me sempre, sempre, mas sempre o mesmo. E continuava. “Se jogador beber cerveja gelada, a garganta vai ficar afetada e destrói todo o plano de trabalho.” Qualquer que aquilo batia-me na cabeça: sempre que via uma amarela, lembrava-me das palavras do Guttmann. Queres outra história dele?

Claro.
Esta já se passou em 1965, na sua segunda passagem pelo Benfica. Na primeira, em 1959, só havia três jogadores com carro: o Costa Pereira [guarda-redes], que morava em Alverca, o Artur Santos [defesa central], que geria um talho na Amadora, e o José Águas [capitão e avançado], que trabalhava numa concessionária. Quando o Guttmann regressou à Luz, em 1965, já havia 30 automóveis. Ele virou-se para o Caiado [adjunto] e disse-lhe “assim, nunca mais somos campeões europeus”.

Carros e futebolistas, que dupla.
A minha melhor experiência com carros tem a ver com a final da Taça de Portugal em 1970.

Ai sim?
Sim senhor. Sucedi ao Otto Glória em Fevereiro e conduzi a equipa até ao final da época. Como era ano de Mundial, o Sporting foi campeão nacional. Já era da praxe. Em 1962, 1966 e 1970. Na final, o Sporting queria a dobradinha, mas…

Mas?
Nós não deixámos. Três-um. Sabes quem foi o lateral esquerdo do Benfica nessa tarde?

Quem?
O Toni.

O Toni, o médio-centro, o craque saloio?
Esse mesmo. Uns dias antes da final, o Marques lesionou-se no treino e tive de improvisar. Puxei o Toni para lateral esquerdo e meti o Jaime Graça no meio, ao lado do Matine.

E o Toni cumpriu?
Claro que sim, era um craque. Sabes como é que ele soube da novidade de jogar a lateral esquerdo?

Como?
Na sexta-feira anterior à final, fui buscá-lo a Mafra. Ele estava a cumprir o serviço militar.

Nããããããã.
É como te digo. O Toni estava nos testes finais e tive de ir de carro a Mafra para pedir autorização ao comandante do quartel para libertar o Toni um dia antes do previsto. Naquela altura os soldados eram libertados no sábado, mas achei melhor precaver-me. A mim, ao Toni, ao Benfica e à final da Taça, claro.

E conseguiu?
Sim, sim. O comandante do quartel convidou-me para jantar. Lá jantei com eles todos no quartel e depois agarrei no Toni e levei-o para Lisboa. Metemo-nos no carro e lá fomos para o hotel do Benfica. No dia seguinte, 3-1 ao Sporting. Nesse mesmo dia levaram o Toni numa carrinha para o Livramento, ao pé de Torres Vedras, e ele no dia seguinte regressou a Mafra.

Isso eram os tempos em que um Benfica-Sporting dava brado, certo?
Certíssimo. Lembro-me de todos os derbis.

Todos?
Sim. Agora deixas-me comprar uns espinafres para a sopa do jantar?

À vontade
[a conversa com a senhora é perfeitamente audível e dá direito a Oscar para melhor guião: epá, isso é muito; não é nada, são só 80 cêntimos; só? Mas isto dá para um regimento, nem sei onde é que a minha mulher vai meter tanto espinafre na sopa]
Rui, já podemos falar. O meu primeiro dérbi foi em 1959-60. Empatámos em Alvalade. Eu marquei o 1-1.

E o seu segundo dérbi?
Foi na segunda volta e marcou-me especialmente. Não porque ganhámos 4-3 nem porque marquei dois golos, mas porque um ex-guarda-redes do Benfica, chamado Pedro Conceição, morreu nas bancadas de ataque cardíaco aquando do quarto golo, curiosamente apontado por mim, na transformação de um penálti. O guarda-redes era o Carvalho e eu tentei desestabilizá-lo a correr para a bola ao ziguezagues.

E mais dérbis?
Opá, olha, um outro. Perdemos 3-1 em Alvalade e o Sporting sagrou-se campeão nacional em 1962. No final do jogo, eu, o Eusébio e o Simões fomos ao balneário do Sporting dar-lhes os parabéns.

Outros tempos ou…?
Diria que um mistura de outros tempos e também de companheirismo. Repara numa coisa: no Sporting jogavam Morato, Lino, Mendes. Todos eles andavam comigo na tropa e fazíamos parte da mesma equipa do quartel. Durante a semana, da mesma equipa. Ao fim-de-semana éramos rivais, mas havia sempre uma amizade enorme. Ir ao balneário do Sporting dar-lhes os parabéns era um ato de nobreza, amizade e tudo o mais. Nessa mesma época, 1961/62, mas ainda na primeira volta, empatámos 3-3 e deu-se um caso curioso. Eles [Sporting] estavam a ganhar 3-1 quando o árbitro Salvador Garcia, a quem nós chamávamos Danny Kaye.

O quê?!
Danny Kaye, um comediante norte-americano dos anos 60. O Salvador Garcia era igualzinho a ele e ficou conhecido como Danny Kaye. Ora bem, é um lance em que eu não consigo levar a bola e arrasto comigo o Hilá- rio para sacar a falta. O Hilário cai e dá-me um murro nas costas. O Salvador Garcia expulsa-o e ainda marca penálti para nós. O Germano reduz para 3-2 e eu faço o empate a jogar 11 para 10.

E o Hilário?
Estava furioso. Foi a única expulsão da sua carreira, e provocada por mim. Mas tudo bem, no dia seguinte fomos almoçar juntos. À Tia Matilde.

De engano em engano, vai o José Augusto enchendo o papo de golos ao Sporting.
Eheheh, é verdade. Foram sete, parece-me. E oito ao FC Porto.

Pois é, como era um Benfica-Porto?
Nada como agora. Era muito mais calmo. Havia benfiquistas que portistas no Porto. E nós éramos superiores. Nos meus 11 anos de Benfica, o Porto nunca foi campeão nacional. E ainda lhes ganhámos uma final da Taça, por 6-2. Olhe lá uma coisa.

Sim?
Lembrei-me agora de outro que marquei ao Sporting, em Alvalade. Empatámos 1-1. Eu fiz o primeiro do jogo, num raide do Simões pela esquerda, ida à linha de fundo e cruzamento para a área. O Fernando Mendes adiantou-se e ganhou-me posição, mas eu toquei-o num calcanhar, ele caiu e fiquei solto para marcar. Enquanto nós festejávamos, era vê-lo atrás do árbitro, o Décio Freitas.

E outros jogos que deram para o torto?
Rapid Viena-Benfica, para as meias-finais da Taça dos Campeões de 1961-62. Eles levaram três na Luz [3-0] e queriam a todo o custo ganhar-nos em casa. Não digo passar a eliminatória, porque isso era praticamente impossível, mas ganhar o jogo para sair airosamente. Só isso. Acontece que defendemos bem, marcámos primeiro e veio ao de cima a ira deles. Invadiram o campo no meio de alguns incidentes entre os jogadores. Eu estava lá e foi um filme de terror.

A sério?
Havias de ver a cara do Eusébio. Estava assustado com tudo aquilo. Começou no relvado com uma troca de empurrões e depois pontapés. E não era o toca e foge. Era o toca e fica. Eu, o Ângelo, o Cruz. Às tantas tivemos de fugir para o balneário, senão… Eles estavam descontrolados. O árbitro deu o jogo por terminado aos 89 minutos e ficámos duas horas fechados naquele balneário, a ouvir tudo e mais alguma coisa. Tentativas de arrombamento, amolgadelas da porta, vidros das janelas partidos. Até que a polícia, naquela altura já em número aceitável para travar aquela euforia toda, entrou em ação. Ouviram- se disparos de metralhadora e tudo se acalmou. Metemo-nos nos carros da polícia e fomos saindo do estádio aos grupos. Chegámos ao hotel, finalmente. Naqueles tempos só voltávamos para casa no dia a seguir ao jogo. Na manhã seguinte nem parecia a mesma cidade, o mesmo país. Tudo calmo, tranquilo, como se nada fosse. Foi só um susto, que não nos impediu de chegar à final.

Que cambalacho.
Outro assim parecido foi em Montevideo, com o Peñarol, na Taça Intercontinental. Ganhámos cá 1-0 e perdemos lá 5-0. Os árbitros eram uns argentinos e roubaram-nos tanto. Como não havia sistema de desempate por golos, tínhamos de ir a uma finalíssima. O Manuel Afonso [diretor do Benfica e o da seleção nacional no Mundial-66] disse então à FIFA para mudar de árbitro ou então o Benfica ia embora. Como não havia tempo para convocar outro trio, um dos fiscais-de-linha do 5-0 foi para árbitro e o árbitro foi para fiscal-de-linha. O Manuel Afonso aceitou e lá fomos a jogo, com dois reforços.

Quem?
O Benfica chamou o Eusébio e o Simões, ambos sub-20.

Xiiiii, o Eusébio. Como era ele?
Quando chegou, chamava-me senhor José Augusto. ‘Epá, larga lá o senhor, trata-me só por José Augusto’, disse-lhe. E ele não conseguia. Era ‘sr. Coluna’ para aqui e para ali.

Muito bem, Simões e Eusébio na equipa. E agora, Peñarol?
Perdemos 2-1. Um dos golos deles é de penálti, por falta do Coluna fora da área. O fiscal-de-linha que passara a árbitro era mais competente que o compatriota mas igualmente ladrão. Quando acabou o jogo, o árbitro do 5-0 aproxima-se de mim e do Cavém, a caminho do balneário. Diz-nos ‘ustedes son un grande equipo.’ O Cavém insulta-o a torto e a direito, ‘hijo de puta’, ‘cabrón’ etc e tal. O fiscal não vai de modas e dá com a bandeirola nas costas do Cavém. Bem, fiquei transtornado. Fui atrás dele, empurrámo-nos e, depois, dei-lhe uma cabeçada. Ele caiu redondo. Pronto, confusão pela certa. Os adeptos entraram em campo e a policia também. Fomos escoltados até ao hotel.

Grande bronca.
Ainda no balneário, os meus colegas diziam-me que tinha morto o árbitro. Estava pálido de preocupação. Às tantas, a polícia entra no balneário e pergunta pelo número 7. Sou eu, disse-lhes e levantei-me. O polícia encara-me e pergunta-me o que aconteceu. Expliquei-lhe tudo, tintim por tintim. E ele ‘não se preocupe com nada, sou filho de portugueses e não lhe vou fazer nada.’ Mas como assim, perguntei-lhe, ele não está morto? O polícia descansou-me: ‘Claro que não, tem é uma nódoa negra enorme.’ A verdade é que o trio de arbitragem era suposto viajar connosco de Montevideo para Buenos Aires e recusou-se.

De barraca em barraca, mais alguma para esta entrevista?
Um Braga-Benfica em 1965. Braga, como se sabe, sempre foi uma cidade de benfiquistas e parecíamos que estávamos em casa. Ainda na primeira parte, fui rasteirado ali junto à linha de fundo. Caí, como é óbvio, e o árbitro nada, mandou seguir. Eis senão quando, o polícia, um polícia qualquer de Braga, daqueles que costumavam estar atrás da baliza, me manda levantar com maus modos, acusando-me de me fazer ao penálti, para ver se me picava. Eu levantei-me e respondi-lhe na mesma moeda. Enfim, trocámos ali uns palavrões, até que ele me disse que me prendia. Bem, eu sorri e disse-lhe para pensar melhor, se não era ele que seria preso. Então se aquilo era só um penálti e eu era impedido do Ministério da Defesa, ou seja militar, não me preocupei minimamente e continuei a jogar.

E então?
Quando o árbitro Marques da Silva apita para o intervalo, o tal polícia, acompanhado pelo seu chefe, pega-me por um braço e diz-me que estou preso. O Coluna meteu-se no meio dessa discussão e também ficou preso, por assim dizer. Houve logo uma grande confusão, que isto dos túneis não nasceu agora. E pronto, jogámos a segunda parte sob prisão. Mal terminou o jogo, o polícia nem sequer se aproximou de mim. Nas bancadas, havia um oficial que se inteirou da situação ao intervalo e desautorizou o polícia de Braga. Sabe quem é que ficou uma noite em Braga, supostamente por engano, e no dia seguinte foi responder em tribunal a outros incidentes no túnel? O Cavém. Só veio para Lisboa no dia seguinte. Eheheheheh. Agora tenho de desligar, vou jantar a tal sopa. Obrigado Rui, abraço.