Um pacote chega a casa pelo correio e não se sabe o que está lá dentro. Não será certamente aquela capa de telemóvel que já nem nos lembrávamos de ter encomendado – é grande demais para isso. Será aquela caixa de colecionador do Padrinho que andávamos há tanto tempo para encomendar na Amazon? Não, nunca chegámos realmente a encomendá-la. Se assinou o Pacote-da-Prateleira-de-Baixo vai habituar-se à ideia de receber embalagens sem fazer a mínima ideia do que lá vem dentro, confiando que será sempre uma agradável surpresa. Só uma coisa está garantida: será literatura infantil, personalizada, com a curadoria de Sara Amado, autora do blogue Prateleira de Baixo.

Este serviço por subscrição começa a sua primeira experiência em janeiro e vai entregar dois livros por mês (a assinatura é trimestral e custa 90 euros). O pacote com laivos de ovni — não se sabe bem de onde vem, nem que transformações pode provocar nas vidas dos destinatários – é o contra-ataque de Sara Amado aos pedidos de ajuda para escolher livros para os miúdos perante a oferta avassaladora, para lhes construir uma biblioteca com qualidade e para os pôr a ler mais. Uma arquiteta e professora de desenho que proíbe os filhos de ler quando eles precisam de um castigo e anda de olho no mercado da literatura infantil há pelo menos 20 anos, quando “estas secções das livrarias eram um bocado tristes”, parece de facto ser a pessoa indicada para responder.

“Acho que devíamos ser mais descontraídos”, diz Sara ao Observador para resumir a ansiedade de muitos pais em relação à educação cultural das crianças, exemplificando: as peças de teatro para crianças estão sempre cheias, sejam boas ou más, mas as salas de teatro para adultos estão vazias. Então os olhares apontam-se para os mais velhos.

“Não há que fazer grandes discursos— se virem os pais, os avós, os tios a lerem vai ser normal. Se houver um momento do dia, principalmente nas férias, em que está toda a gente a ler, eles vão ler.”

Capital, de Afonso Cruz (Pato Lógico)

Capital, de Afonso Cruz (Pato Lógico)

O pacote por subscrição que desenhou é pensado para crianças dos zero aos 14 anos mas serve, na prática, toda a família. O ideal, diz, é que o momento da leitura seja partilhado, especialmente quando a criança ainda não lê. Nessa altura os estímulos visuais são os mais importantes e pode incentivar-se a capacidade de ler imagens, desafiando à criação de mais do que uma história a partir do mesmo livro. E quando são mesmo muito pequenos, bebés ainda, não é inútil ler uma história. “Já tive perguntas de pais de filhos pequeninos, com quatro ou cinco meses, que acham que ainda não vale a pena ler com eles. Tal como é importante ouvirem música, as vozes do pai e da mãe, dos irmãos, o ouvir uma lengalenga ou uma história também ajuda o desenvolvimento intelectual de uma criança.”

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Sara está preparada para fazer uma seleção para qualquer idade — livros é o que oferece a filhos, afilhados, sobrinhos, amigos dos filhos. Nesses casos conhece os miúdos, para o Pacote-da-Prateleira-de-Baixo criou um questionário para poder personalizar a escolha. O formulário é tão aberto que se pode revelar assustador: só pergunta o nome, a data de nascimento e pede uma descrição da criança. Como descrever o ser complexo que é um miúdo? Sara Amado só vai organizar as assinaturas e decidir que livros enviar em janeiro, mas não consegue resistir a ler logo esta parte da inscrição. “Tem sido do mais sintético ao mais poético, apresenta não só a criança como quem está a descrever a criança, é muito enriquecedor. Dizem se têm irmãos, muitos irmãos, se não têm irmãos, falam já dos feitios que têm, dos medos, tenho-me divertido bastante a lê-los”, diz a arquiteta e professora, que não garante encontrar o livro da vida de uma criança, mas garante que será um bom livro.

O livro também é um objeto

“Só a meio é que me apercebi que isto era realmente boa ideia”, confessa Sara. Começou a receber subscrições da Índia, da Suécia, Suíça, Estados Unidos. Os filhos de portugueses que nascem nestes e noutros países tornam-se bilingues, mas no português têm a dificuldade da leitura, por ser difícil encontrar no estrangeiro literatura infantil em português. Vai recomendar-lhes maioritariamente criadores portugueses, que a deixam orgulhosa, e torna-se uma oportunidade para também os pais voltarem a contactar com autores nacionais. “Ler com as crianças também passa pela transmissão do prazer da leitura. Se for uma seca para os pais, ou uma pressa, não vai funcionar nada. O adulto tem de gostar também do livro que está a ler e os livros são muito pensados também para adultos — tem imensos subtextos, sobretextos que são só para o adulto perceber, e não tem mal nenhum.”

A arquiteta lembra que, neste capitulo, a generalidade dos criadores pensa primeiro na história ou numa sequência de desenhos, e não na idade para que está a escrever — isso logo se vê. “Quando uma pessoa se diverte e gosta de fazer aquilo que faz, provavelmente vai incluir coisas que lhe agradam a si próprio. Estou a lembrar-me dos livros da Catarina Sobral, que têm imensas referências a pintura. Um dia quando quando virem o quadro do Fernando Pessoa [O Meu Avô, Orfeu Negro] que o Almada Negreiros pintou vão reconhecer: ‘ah! isto é daquele livro’.”

https://www.youtube.com/watch?v=OqqkyDTl6Uk

Os livros ou álbuns infantis apresentam-se hoje como objetos desafiantes também para pais e avós, que na infância conheceriam o livro infantil como sinónimo de conto ou história com uma temática ou universo para crianças, em que a ilustração era meramente descritiva. Esses livros ainda aí estão, pelas livrarias, e continuam a fazer parte deste universo, mas a eles juntam-se novas obras em que a imagem tem importância, e há livros que ganham sentido de objeto, desafiando os limites que assumimos para a literatura. Em 1999, a editora Planeta Tangeria abriu o caminho para a chegada destes novos objetos a Portugal e ainda hoje privilegia a ideia de álbum, em que “o leitor tem de ler palavras e imagens para tirar sentido do livro”, não excluindo os adultos, define Isabel Minhós Martins, fundadora da editora e autora de álbuns infantis.

“Claro que quando lemos um conto a nossa cabeça também tem de trabalhar imenso, mas é bom que exista uma diversidade”, diz, explicando a aposta da Planeta Tangerina numa oferta que quer posicionar-se “fora dos estereótipos da Disney” e “de fórmulas que já sabemos que os miúdos gostam” para que os miúdos cresçam “com um radar mais apurado”.

“Os livros-objeto nascem como uma reação dos autores de livros, aos livros digitais, aos jogos, às apps. No fundo o que estão a dizer é ‘calma lá que este objeto não está a morrer, nós sem botões e com esta tecnologia tão antiga também conseguimos fazer coisas’”, explica Isabel, dando o exemplo da coleção Cantos Redondos em que o leitor é obrigado a participar fisicamente: em Batata Chaca-Chaca, de Yara Kono, os leitores preparam uma refeição na bancada da cozinha — as páginas abertas —, e em Livro Clap, de Madalena Matoso, é preciso por o livro a abrir e fechar como se batesse palmas e dizer os sons que se leem nas páginas.

Batata Chaca-Chaca, Yara Kono (Planeta Tangerina)

Batata Chaca-Chaca, Yara Kono (Planeta Tangerina)

Ler os clássicos. Quais clássicos?

A primeira vez que a ideia do Pacote-da-Prateleira-de-Baixo aterrou na cabeça de Sara Amado veio de uma amiga que vive no Brasil e lhe falou num projeto semelhante organizado pelo site Leiturinhas. “No Brasil o mercado é gigante e ela dizia-me: ‘Sara, tens de fazer isto no teu blogue, ir a uma livraria é desesperante. Há demasiada oferta, é preciso ajuda, saio de lá sem nada’.” A somar ao desespero da oferta, os livros não são baratos, não há muita margem para errar ou para escolher uma mão cheia de livros e esperar que um seja bom. Um livro é por isso uma decisão de peso, diz Sara.

A Planeta Tangerina é uma das parceiras de Sara Amado neste projeto, que conta ainda com a Orfeu Mini, Pato Lógico, Serrote, Kalandraka, Bruaá e Editorial Presença. A mentora do projeto promete ainda dar um olho em alfarrabistas e enviar antiguidades se as achar adequadas. E o que é um livro adequado? Pode ser tanta coisa, desde que tenha qualidade. “Vou ter em conta, por exemplo, a altura do ano. Funcionamos de modos diferentes no inverno e no verão — há livros que são muito provocadores para a ida para a rua, outros acontecem mais dentro da nossa cabeça, e isso pode ser engraçado segundo a altura do ano. Também onde o miúdo vive: se é um miúdo que vive numa cidade, em Nova Iorque, ou é se um miúdo que vive no campo. Como mando dois livros por mês, até posso dar uma no cravo, outra na ferradura, e encontrar pares de livros que são um contra o outro. Também me agrada essa ideia.”

Livro Clap, de Mariana Matoso (Planeta Tangerina)

Livro Clap, de Madalena Matoso (Planeta Tangerina)

Isabel Minhós Martins destaca que o fator surpresa da chegada do livro a casa é atrativo, mas na tarefa de construir uma biblioteca para a canalha é bom que haja mais gente a meter a colher e não só a Prateleira de Baixo. “É importante as crianças também terem uma palavra a dizer, mesmo quando são escolhas com que não concordamos”, opina a editora. “O ideal é que toda a gente que está à volta contribua — o tio que gosta de futebol pode oferecer um livro sobre o Benfica, o avô que é biólogo sobre animais. A história da nossa vida também se reflete na nossa biblioteca.”

Lançar o braço para alcançar a prateleira de baixo é começar a construir uma estante para o futuro e quando olhamos para essa estante queremos que seja completa, diz Isabel, como quando entramos numa biblioteca municipal — queremos banda desenhada mas também poesia, textos informativos, romancistas nacionais mas também estrangeiros. De uns gosta-se mais, de outros menos, de alguns nada. Há os que não se devem evitar — os clássicos. “Esses acho que devem estar mesmo à disposição, é importante que passem por eles, que gostem ou não gostem, mas que façam parte da sua cultura”, diz Sara Amado, que na literatura infantil aposta que Pê de Pai, de Isabel Minhós Martins e Bernardo P. Carvalho, se vai tornar incontornável nos próximos anos e aponta ainda O Menino Nicolau, de Sempé e René Goscinny (para quando querem começar a ler livros grandes, mas gostam de descansar o olhar nas imagens), e os aventureiros de sempre: Tom Sawyer e As Aventuras de Huckleberry Finn, de Mark Twain. Se estes são poucos, Isabel Minhós Martins lembra ainda os livros de Leo Lionni, escritor e ilustrador publicado pela Kalandraka, ou A Lagartinha Muito Comilona, de Eric Carle.

“Às vezes é preciso chegar ao livro certo. Já me contaram de miúdos que não liam e de repente começaram a ler muito. Foi porque apareceu o livro certo, que não é o mesmo para todas as crianças”, conclui Sara.

Se não há uma fórmula certeira para descobrir qual é, o melhor é ir experimentando.