Em carta enviada à Procuradora Cândida Vilar, em dezembro, o Comandante das Forças Terrestres, o general Faria Menezes, garante que mandou cancelar toda a instrução prevista para o dia seguinte ao da morte do militar Hugo Abreu, o que determinava o “encerramento definitivo da Prova Zero” – uma prova que tem a duração de três dias, com pouco tempo de descanso e água e alimentação racionadas. Os exercícios, porém, prosseguiram, e as autoridades estão a investigar no sentido de perceber se houve crime de desobediência por parte dos instrutores, noticiam, esta sexta-feira, o Expresso e o jornal Público.

De acordo com o Expresso, numa carta de cinco páginas, o general Faria Menezes, escreveu que “sem prejuízo da continuação do 127º curso de Comandos, decisão a avaliar posteriormente pelo Comando do Exército, cancelei toda a instrução prevista em horário do dia seguinte (5 de setembro de 2016), resultando assim no encerramento definitivo da Prova Zero”.

Nessa mesma missiva, escreve o Público, o general acrescentou que a decisão foi tomada “no local e transmitida ao comandante do regimento, na presença dos restantes oficiais, e sancionada pelo chefe de Estado-Maior do Exército, general Rovisco Duarte”, depois de uma reunião que se prolongou pela madrugada do dia 5 e na qual estiveram presentes além do tenente-general, o coronel Dores Moreira (comandante do Regimento de Comandos), o tenente-coronel Maia (diretor do curso e um dos militares que haveria de ser constituído arguido), o capitão Monteiro (comandante da companhia da formação), o médico do curso João Aniceto, entre outros.

Acontece que os exercícios prosseguiram no dia seguinte e as autoridades estão agora a investigar. Os instrutores podem incorrer num crime de insubordinação por desobediência do Código de Justiça Militar, que prevê uma pena de um a quatro anos de prisão.

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O Expresso cita, porém, um dos advogados do processo-crime, sob anonimato, que garante que “não houve desobediência” ao general já que “não foi seguido o guião da Prova Zero”. Os exercícios “muito duros” terão sido substituídos por provas leves que “não fariam mal a ninguém”. O mesmo advogado terá dito que os instruendos desmontaram as tendas e infraestruturas do curso no final da manhã e regressaram ao Regimento dos Comandos na Carregueira nesse mesmo dia.

Contudo, esta versão é contrária à do médico do curso João Aniceto, que também já testemunhou perante o Ministério Público. O médico depôs, perante as autoridades, afirmando que na altura aconselhou a suspender os exercícios da instrução porque “não existiam condições clínicas para prosseguirem as provas, face às condições climatéricas adversas”, mas que não foram dadas ordens para interromper a Prova Zero, segundo o processo consultado pelo Observador.

E na manhã seguinte, por volta das 11 horas, os mais de 40 homens terão iniciado uma marcha, de mochilas às costas, num dia em que sete distritos do país estavam em alerta laranja devido à ameaça de temperaturas elevadas e Setúbal estava em alerta amarelo. Durante esse exercício, “foram vários os instruendos que compareceram na enfermaria, revelando sinais de exaustão”, testemunhou o médico. Com o passar das horas, cinco recrutas tiveram de ser transferidos para o Hospital das Forças Armadas devido ao quadro clínico que apresentavam.

Mas só no dia 8 de setembro o Exército enviaria um comunicado às redações dando conta da suspensão do curso.

Cinco oficiais e dois sargentos indiciados

Quase dois meses depois, sete militares foram detidos no âmbito deste caso — o médico responsável pelo acompanhamento dos recrutas, o diretor do curso de Comandos e cinco instrutores — mas ficaram a aguardar em liberdade.

No despacho, citado pelo Expresso, a procuradora Cândida Vilar, que coordena a investigação no DCIAP, refere que os sete militares detidos eram “movidos por um ódio patológico, irracional contra os instruendos, que consideram inferiores por ainda não fazerem parte do Grupo de Comandos, cuja supremacia apregoam, à gravidade e natureza dos ilícitos”.

No despacho que levou à juíza de instrução Cláudia Pina, e depois de ter ouvido mais de 70 testemunhas diretas e indiretas dos acontecimentos em Alcochete, a procuradora Cândida Vilar defendeu a tese de que os recrutas foram privados de hidratação. Ao contrário daquilo que definia o guião da chamada “Prova de choque” (onde se prevê a disponibilização de cinco litros de água diários), os instruendos tiveram à sua disposição, segundo o Ministério Público apurou, quantidades bastante inferiores a essa à estipulada, num dia em que as temperaturas em Alcochete estiveram acima dos 40º.

Em dezembro, a investigação à morte de Hugo Abreu e Dylan Araújo da Silva reunia já seis volumes, com dezenas de testemunhos e uma dezena de apensos. Tudo reunido em quase duas mil páginas de documentos. O caso remonta a 4 de setembro de 2016, dia em que o militar Hugo Abreu morreu depois do exercício no decurso da Prova Zero. Também Dylan da Silva foi transferido para o hospital no mesmo dia e viria a morrer uma semana depois, à espera de um transplante hepático.