O Ministério Público (MP) convocou o comandante das Forças Terrestres do Exército para prestar esclarecimentos no âmbito do processo que investiga as mortes de dois recrutas do 127º curso de comandos. A audição estava prevista para esta sexta-feira, no Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa, onde corre a investigação. Mas, segundo o Observador apurou, o tenente-general Faria Menezes deverá optar por responder por escrito às questões a colocar pela procuradora Cândida Vilar, caso a titular do processo assim entenda.

Depois de ter convocado (como testemunha) o comandante do Regimento de Comandos, coronel Dores Moreira, o MP decidiu chamar (na mesma qualidade) o Comandante das Forças Terrestres. A procuradora Cândida Vilar pretende agora ouvir o tenente-general Faria Menezes (o primeiro general a ser chamado pela investigação) sobre os acontecimentos de 4 de setembro no Campo de Tiro de Alcochete, que resultaram na morte de Hugo Abreu e Dylan Araújo da Silva, ambos de 20 anos.

A decisão do MP surge depois de o chefe do Estado-Maior do Exército ter dito que esta é uma instituição “fortemente hierarquizada” podendo haver eventuais “responsabilidades de comando aos diferentes níveis”. Estas declarações foram feitas pelo general Rovisco Duarte (as primeiras e únicas sobre as duas mortes, até ao momento) durante uma visita de deputados ao Regimento de Comandos, na serra da Carregueira, no final de outubro.

Na prática, o MP pretende ouvir o responsável militar pelo Regimento de Comandos que responde diretamente perante Chefe do Estado-maior do Exército (CEME). Confrontado com a questão, o porta-voz do Exército, tenente-coronel Vicente Pereira, diz apenas que “o Exército não confirma que o tenente-general tenha sido convocado” para prestar declarações, remetendo esclarecimentos para o próprio Ministério Público.

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Mas o tenente-general Faria Menezes não deverá deslocar-se ao Campus de Justiça para responder às questões da procuradora Cândida Vilar. O comandante das Forças Terrestres tem à sua disposição um regime de exceção que lhe permite responder por escrito às questões que o Ministério Público entenda colocar-lhe. Essa opção (prevista na artigo 503º, número dois, alínea g do Código Processo Civil) permite ao responsável do Exército evitar um encontro com a procuradora que, no despacho de instrução, considerou que os instrutores do curso de Comandos tinham agido “movidos por ódio patológico e irracional”.

Na cerimónia de entrega das boinas vermelhas aos militares que acabaram aquele curso de comandos, o tenente-general Faria Menezes também se referiu, ainda que de forma indireta, ao processo aberto na sequência das duas mortes:

Respeitamos os trâmites da Justiça e somos todos imputáveis perante a lei”, sublinhou o tenente-geral, na cerimónia de entrega das boinas vermelhas do 127º curso de Comandos, que também defendeu “respeito” pelos militares envolvidos na investigação.

Responsáveis do curso deram informações falsas ao comandante do regimento

No despacho que levou à juíza de instrução Cláudia Pina, e depois de ter ouvido mais de 70 testemunhas diretas e indiretas dos acontecimentos em Alcochete, a procuradora Cândida Vilar defendeu a tese de que os recrutas foram privados de hidratação. Ao contrário daquilo que definia o guião da chamada “Prova de choque” (onde se prevê a disponibilização de cinco litros de água diários), os instruendos tiveram à sua disposição, segundo o Ministério Público apurou, quantidades bastante inferiores a essa à estipulada, num dia em que as temperaturas em Alcochete estiveram acima dos 40º.

A ter acontecido, essa violação do guião da prova foi feita sem conhecimento do Regimento de Comandos. Mais: se os instrutores privaram os recrutas do consumo de água, algum elemento da cadeia militar mentiu ao coronel Dores Moreira, comandante do Regimento de Comandos. Quando foi inquirido pelo Ministério Público sobre uma eventual privação, o coronel disse que “foi informado de que, tal como está preconizado, todos os instruendos beberam mais de cinco litros de água” no primeiro dia de instrução, refere o auto do depoimento do militar que o Observador consultou. O MP garante, no entanto, que os recrutas do grupo de graduados, de que Hugo Abreu fazia parte, “só beberam dois litros de água“.

A privação de água durante a fase mais dura do curso não é inédita. Em instruções anteriores (como aconteceu no 125º curso), a falta de meios de hidratação já tinha provocado casos de exaustão por “desidratação acumulada“, situação assumida pelo coronel Dores Moreira já nas funções de comandante do regimento. No ano passado, oito militares precisaram de receber cuidados médicos e dois deles acabaram por ser internados nos Cuidados Intensivos. Convicto de que as normas tinham sido cumpridas, nessa altura, o mesmo coronel Dores Moreira garantia que “o[s] comando[s] do regimento e do exército” tomariam “as decisões que [fossem] consideradas adequadas”.

Neste momento, a investigação à morte de Hugo Abreu e Dylan Araújo da Silva reúne seis volumes, com dezenas de testemunhos (entre as declarações recolhidas junto de instruendos, instrutores, médico, enfermeiros, militares de apoio ao regimento e outros de apoio ao próprio curso de Comandos, INEM, etc) e uma dezena de apensos. Tudo reunido em quase duas mil páginas de documentos.