A atriz portuguesa de cinema e teatro Maria Cabral morreu no domingo, dia 15, em Lannemezan, aos 75 anos, informou a Academia Portuguesa de Cinema. Maria Cabral, que foi casada com Vasco Pulido Valente (e com quem teve uma filha, Patrícia Cabral), ficou conhecida pela sua participação nos filmes “O Cerco” (1970), de António da Cunha Telles, “O Recado” (1971), de José Fonseca e Costa, em “Vidas” (1984), de António da Cunha Telles, em “No Man’s Land” (1985), de Alain Tanner e em “Um Adeus Português” (1985), de João Botelho.
Maria da Conceição Gomes Cabral nasceu a 24 de abril de 1941, em Lisboa, e passou parte da infância em Luanda. “Foi rosto e símbolo do Novo Cinema Português”, disse a Academia Portuguesa de Cinema, através da sua página de Facebook, onde lamenta a morte da atriz.
Dos filmes em que participou, “O Cerco” (1970), de António da Cunha Telles, pelo qual receberia os prémios da Secretaria de Estado da Informação e Turismo (SEIT), da Casa da Imprensa e Plateia para a melhor atriz, é talvez o mais conhecido.
Sobre “O Cerco”, a atriz, na altura com 28 anos, deu uma entrevista icónica para a RTP, no interior de um automóvel descapotável, pelas ruas de Lisboa. Em estilo de “carpool karaoke”, a atriz falou do papel de “Marta” no filme de Cunha Teles e sobre o seu percurso até chegar a protagonista no cinema. Quando o jornalista lhe perguntou “o que fez até agora?”, respondeu, com humor: “Até agora fiz um filho (risos) e pouco mais”. Contou ainda ter estudado Filosofia durante três anos, participado em filmes publicitários como modelo e entrado numa curta-metragem de João César Monteiro “que nunca chegou a ser terminada”.
Nessa entrevista-viagem, o jornalista pergunta a Maria Cabral se gostaria de se dedicar exclusivamente ao cinema. Tímida, responde: “Fiz este filme. Gostei muito mas para já não tenciono nada, não sei se é possível”.
“Gosto sempre de me ver. Sou uma pessoa muito simpática”
Pouco antes da estreia de “O Cerco”, Maria Cabral, que estava a viver em Inglaterra, deu uma entrevista à revista Plateia. A conversa viria a ser reproduzida por uma outra revista de cinema, a “Celulóide”, na qual a atriz foi descrita como sendo “reveladora de uma atitude irreverente e crítica”. As respostas foram, de facto, desconcertantes:
— Quando começou a pensar em ser atriz? Acreditou desde logo em si? E outros, acreditaram?
— Nunca pensei em tal coisa. Acredito sempre em mim, sobretudo quando digo mentiras. E os outros também.
— Tem presente ainda o seu primeiro dia de filmagens, ou já esqueceu tudo quanto se passou?
— Nunca tenho presentes, de maneira que o melhor é esquecer.
— Que impressão recolheu da primeira exibição das primeiras cenas filmadas?
— As impressões não se recolhem.
(…)
— Gosta de se ver em ‘O Cerco’.
— Gosto sempre de me ver. Sou uma pessoa muito simpática, faço muito boa companhia.
— Como vê a personagem que encarna no filme, encarando-a friamente como mulher que tem uma experiência vivida decerto muito diferente.
— Conhece alguém que tenha encarnado uma personagem?
(…)
— Dizem que tem uma voz maravilhosa para cantar e que uma empresa gravadora já a convidou para o lançamento de um disco com quatro canções interpretadas por si. Trocaria a carreira de actriz pela de cançonetista se tivesse essa possibilidade?
— Não sabia que dizem isso! Mas se dizem deviam dizer-me.
(…)
— Pensa vir a Lisboa assistir à estreia de ‘O Cerco’?
— Sim, se me pagarem as passagens em 1.ª classe.
— Que representa a vida para si como mulher, como mãe e como actriz?
— A vida não representa, eu é que represento.”
[O filme “O Cerco” está disponível na internet]
Em entrevista à revista Celulóide, pouco depois da estreia de “O Cerco”, António da Cunha Telles contou como conheceu Maria Cabral e como se lembrou dela para protagonista do filme: “Olhe: eu já conhecia a Maria Cabral há algum tempo. Fora ter comigo, há anos, para lhe dar trabalho quando eu era produtor. Trabalhou, portanto, comigo na produção e chegou a fazer um ou dois filmes publicitários. Para além daquilo que esses filmes revelavam, eu vislumbrei uma mulher cheia de interesse, uma personalidade curiosíssima. Pensei vir a aproveitá-la mais tarde, quando fizesse o meu filme. Será curioso referir que Maria Cabral, que tanta gente enalteceu no ‘Cerco’, é a mesma de que um dia, um certo realizador de cinema português se serviu para um pequeno filme que não chegou a terminar, ao que parece em grande parte porque a Maria Cabral não satisfez… O realizador acabou por destruir o filme…”
Cunha Telles, por seu lado, tinha ficado fascinado com Maria Cabral: “Era uma personalidade extremamente rica, uma grande presença, uma pessoa que, passada a fase de uma aproximação superficial, se revela particularmente sugestiva. No ‘Cerco’, aproveitei isso”.
As críticas em França e o interesse de Godard
Cunha Telles foi surpreendido com a morte da atriz, quem considerava uma pessoa extrovertida e uma atriz de grande talento. Ao Observador, recordou a relação “excecional” que sempre tiveram. “Foram momentos incríveis, uma aventura magnífica. Estávamos todos confiantes de que iríamos fazer um bom filme e isso aconteceu. Ela era uma atriz muito direta, aberta e mantínhamos uma relação excecional entre realizador e atriz“, revelou.
Quando o filme passou em Cannes, surgiram rumores de que o realizador franco-suíço Jean Luc Godard estaria interessado em trabalhar com Maria Cabral. Tal acabou por nunca suceder, mas Cunha Teles recordou o frenesim em volta do seu nome. “Não me admira nada, quando o filme passou em Cannes houve um entusiasmo geral. O Le Monde fez uma crítica muito entusiasmada em redor do seu desempenho. E diga-se que a representação de Maria Cabral não ficava nada a dever a outras atrizes internacionais“, vincou.
O retiro religioso que a afastou do Mundo
Maria Cabral saiu de cena depois de protagonizar o filme “Um Adeus Português”, em 1986. Rumou a França, a Paris, alegadamente para integrar um grupo religioso. “Foi para França, para uma experiência religiosa oriental e afastou-se do nosso mundo contemporâneo”, lembrou Cunha Telles, lamentando, nos últimos anos, não ter tido qualquer contacto com ela.
João Botelho, realizador de “Um Adeus Português”, foi um dos últimos a trabalhar com Maria Cabral no cinema. “A Maria era a personificação da beleza. Ela tinha feito um filme maravilhoso com o Cunha Telles e era de uma beleza absoluta”, recorda Botelho. “Ela estava nos Pirinéus, tinha estado isolada, e de repente houve uma possibilidade de falar com ela. Depois disso, ela veio e deixou-me esta recordação da capacidade maravilhosa que ela tinha de receber a luz”. Era de uma intuição incrível para o cinema. Era um bocado estranha mas ao mesmo tempo, quando a luz incidia nos olhos dela ou na cara dela, transformava-se numa personagem notável.
Sobre “Um Adeus Português”, João Botelho lembra que era um filme “doloroso, sobre a memória da guerra”. E nesse filme “a Maria encarnou uma ideia da dor portuguesa”, diz o realizador. “Foi maravilhosa. Lembro-me de uma cena notável que ela fez com a Isabel de Castro, uma coisa entre sogra e nora. Quase não diziam nada e estava lá tudo.”
Depois desse filme, Botelho pouco mais vezes viu a atriz. “Perdi-a de vista. Encontrei-a mais uma ou outra vez, anos mais tarde. Era uma pessoa um pouco fora do normal. Não sei se ela fez mais alguma coisa com realizadores estrangeiros. Mas o trabalho que fizemos foi forte para mim e forte para ela, acho eu. São meteoros que aparecem.”
Desde o início que João Botelho — realizador de “Uma Adeus Português” mas também autor do argumento, em conjunto com Leonor Pinhão — queria Maria Cabral no papel de Laura, a viúva de um militar morto na Guerra do Ultramar que recebe a visita dos ex-sogros quando procura refazer a vida. “Ela era ideal para aquela personagem, sabia disso, lembro-me daqueles olhos portugueses. Mas era estranha. Lembro-me de lhe ter pedido para vir com o cabelo comprido, apareceu com o cabelo rapado. Tive de esperar uns 15 dias para que lhe crescesse algum cabelo. Outra vez apareceu com sete saias, achava que estava magra e precisava engordar. Mas quando começava a trabalhar, aquilo era resplandecente.”
A foto que inspirou uma banda sonora
Para o filme de 1970, o maestro António Victorino de Almeida foi convidado para compor a banda sonora. De Maria Cabral guarda “uma memória visual, sobretudo”, lembra. “Acho que nunca a conheci pessoalmente…” Apesar disso, foi a atriz que lhe deu o primeiro motivo para a composição: “Lembro-me de falar com o Cunha Telles para fazer a música do ‘Cerco’ e não entendi exatamente qual era o argumento. Mas olhei para o cartaz, que tinha a cara da atriz principal, a Maria Cabral. Pareceu-me uma expressão de tal maneira forte que me fez de imediato perceber o tema do filme e me deu o arranque que precisava para fazer a música. Composição essa que fiz para saxofone e piano, com o Vítor Santos ao saxofone. Foi música claramente inspirada na cara e na expressão da Maria Cabral, que mais tarde vim a confirmar que era uma excelente atriz.”
“Não tenho ideia de a ter voltado a ver no cinema”, recorda Victorino De Almeida. “Também por culpa minha, até porque depois vivi algum tempo em Viena, mas também porque, se não me engano, ela teve uma carreira relativamente curta. Foi com ‘O Cerco’ que ela ganhou mais visibilidade. Haveria de ir-se embora para Paris e isso certamente terá influenciado o percurso dela. E há muitos anos que dela não se ouvia falar.”
Outro músico que também participou no filme foi José Cid, ele e os restantes que integravam o Quarteto 1111. A banda interpretava um grupo que atuava numa boîte: “Tocávamos uma canção nossa… há muito tempo que não me lembrava disto, mas sim, recordo-me do convite do Cunha Telles”, diz José Cid ao Observador. De Maria Cabral guarda a memória “de uma grande atriz, uma mulher muito bonita”. “Era, acima de tudo, uma mulher de vanguarda na sua geração, muito à frente do seu tempo. Era muito simpática. Tivemos um encontro muito rápido mas muito interessante. Vinha numa nova do cinema português e definia uma nova forma de trabalhar, de fazer aquela arte.”
https://www.youtube.com/watch?v=EcbEtTd9jaU
Presidente lembra “rosto emblemático do nosso tempo”
Marcelo Rebelo de Sousa reagiu à morte da atriz, destacando “a mulher luminosa e irreverente, inquieta e livre”.
“Nenhum outro ator ganhou, com uma obra tão breve, um estatuto tão icónico no cinema português. Lembro particularmente “O Cerco”, de António da Cunha Telles, filme no qual Maria Cabral ajudou a prolongar a tentativa fugaz mas decisiva de um “cinema novo”. Foi um rosto emblemático do nosso tempo, deixando-nos a imagem de uma mulher luminosa e irreverente, inquieta e livre”, pode ler-se na mensagem publicada no site da Presidência da República Portuguesa.
Programas infantis e teatro japonês
Segundo o site “cinept“, dedicado ao cinema português e ligado à Universidade da Beira Interior, Maria Cabral, “no final dos anos 50, apresentou programas infantis na RTP” e, em 1972, “recebeu uma bolsa de especialização como actriz, concedida pela Fundação Calouste Gulbenkian e a decorrer em Paris”. No final dos anos 70, escreve o mesmo site, “estudou teatro japonês sob a direcção de Shiro Daimon e começou a trabalhar em estreita ligação com Miguel Yeco” e “em 1981 apresentou no AR.CO, em Lisboa, um espectáculo de Yeco, ‘Pessoas e Ecos — Primeiro Prelúdio'”.