“Enlamear”, “desfaçatez”, “desonestidade”, “ofender”, “ressabiado”, “mal-educado”, “vil, reles e soez”, eis o pequeno dicionário do combate quinzenal desta quarta-feira. Os debates parlamentares não estão cada vez mais duros, antes fosse assim. Estão cada vez mais feios. E como de cada vez que se bate no fundo ele desce ainda mais, a degradação bi-mensal da linguagem parlamentar vai tornando a Assembleia da República um perigo para a democracia tendo em conta o contexto que vivemos nas democracias ocidentais.
O português cheio de problemas que está em casa a ver políticos a trocar insultos no Parlamento acha que ninguém está preocupado em resolver o que lhe aflige a vida — o que é injusto para os protagonistas dos vários partidos que têm ideias sobre como resolver os problemas das nossas vidas. O português no seu sofá, que assiste ao debate, acha que os políticos são todos iguais, mesmo que sejam absolutamente diferentes. O português comum acha que os políticos são aquilo que ele tem diante dos olhos: um conjunto de sectários que se agride numa linguagem que ele próprio não permite aos filhos em casa. Daqui aos fenómenos populistas é um passo.
É este o perigo da perpetuação deste estilo de incidentes parlamentares para uma democracia que não quer ser “iliberal”. Louve-se ao menos a liberdade que a democracia permite — mesmo os insultos — embora seja preocupante que o nível de escrutínio do Governo sofra com estes desvios à dureza leal de um debate político.
Um combate quinzenal em insultos e defesa da honra no ringue parlamentar
Não eram dois deputados anónimos que se confrontavam: era um primeiro-ministro com um ex-primeiro-ministro. Com este nível de agressividade mal direcionado — a somar a outros aspetos como as suspeitas de corrupção generalizadas, casos judiciais, etc. –, Portugal não pode achar-se imune ao aparecimento de um Trump, de uma Le Pen, ou de um palhaço Grilo. Só ainda não surgiu o protagonista certo para capitalizar a má imagem das instituições e do sistema. Os partidos, os deputados e as lideranças têm-lhe adubado bem o terreno. Marinho e Pinto não conseguiu. Mas quem sabe se não há por aí um novo Manuel Monteiro da era moderna, mas verdadeiramente perigoso, com o discurso dos “deputados sanguessugas” e a colher votos contra uma Europa que já não é a terra prometida dos anos 90?
Esta quarta-feira, António Costa e Pedro Passos Coelho não deram um contributo para uma democracia mais saudável. De quem é a culpa? De todos. Podemos discutir, como as crianças, sobre quem foi o bully que começou a pancadaria no recreio, sendo certo que acabaram todos a sangrar do nariz. Um dos problemas nestes casos, é que passamos da discussão sobre um assunto para a discussão sobre a discussão. E quando discutimos a discussão, o passo está dado para que a discussão não acabe bem e que no final tenhamos esquecido sobre que raio estávamos a discutir.
A troca de argumentos começou como é suposto, com Passos Coelho a discutir aquilo que é sempre discutível: se os resultados apresentados por um Governo não são demasiado otimistas, como aliás dizem todos os Governos. Passos fez o que fazem todas as oposições. Costa fez o que fazem todos os primeiros-ministros. Até aqui tudo normal: críticas políticas.
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O nível passou para o amarelo quando António Costa, numa tática parlamentar comum, passou ao ataque em vez de responder às perguntas. Afinal, Passos não estava satisfeito porque o “diabo” não apareceu, porque “os resultados bons para o país são maus” para Passos. Logo, o PSD quer o mal do país. Pode ser uma subida de tom, mas é retórica parlamentar antiga, a dos primeiros-ministros confundirem a ação do Governo com o interesse nacional e acusarem as oposições de desejarem o pior para a nação, quando criticam os governantes. Adiante.
Passos Coelho tinha perguntado, entre outras coisas, o que era feito da criação do veículo para gerir o crédito mal parado, que deu alguma polémica há uns meses (até entre o Bloco e o Governo). E Costa respondeu — sem responder à substância — que havia uma série de reuniões agendadas em Bruxelas, com a DGCOmp e com o BCE para tratar do assunto. Ora o líder do PSD voltou a questionar Costa sobre se tinha mais alguma coisa a apresentar “para além do calendário”. Costa fingiu que não percebeu a pergunta e Passos repetiu-a: “Quero saber se para além do calendário tem alguma coisa que possamos discutir…”
Então o nível passou para laranja. Costa fez o que faz quase sempre. Quando não quer responder, desconversa. Pode não ser bonito, podemos não apreciar as fintas do primeiro-ministro — aliás habituais nos primeiros-ministros — mas ainda estamos dentro dos limites parlamentares. “Temos a vontade de resolver um problema que o senhor não resolveu”, respondeu Costa. “E temos trabalhado várias soluções com o Banco de Portugal. Quando tivermos uma solução, ficará desiludido porque fica sempre desiludido quando resolvemos um problema do país”.
A partir daqui, entra tudo no vermelho e o ambiente torna-se explosivo. Passos Coelho irrita-se. Aliás, percebe-se que Costa tenta ser irritante para irritar Passos e a seguir dizer, cinicamente, que ele se irritou. Aqui, o líder do PSD já não é aquele barítono da política que não muda o tom de voz. E aliás diga-se que talvez o partido, internamente, goste mais de um líder irritado e emotivo que de um chefe calmo e racional: “Fica demonstrado que o senhor primeiro-ministro gosta de fazer insinuações, mas não gosta de falar do que se lhe pergunta”. E foi buscar o caso dos offshores de há 15 dias. “Veio aqui várias vezes fazer processos de intenções no último debate quinzenal” (nesse debate Passos também se irritou muito com o microfone desligado). Passos Coelho disse depois saber-se “que não há responsabilidades políticas nas transferências para os offshores” e atirou: “Metade do que não passou pelo crivo do fisco entrou já depois de o Governo” do PSD/CDS ter “cessado funções”. O patamar da beleza verbal e da eloquência parlamentar desceu mais um nível quando Passos rematou a intervenção: “Não pede sequer desculpa por tentar enlamear as pessoas que estiveram no seu lugar antes de o senhor o ter ocupado”.
Entrávamos na fase da luta na lama. Costa respondeu, acusando Passos de “desfaçatez”: “Há 15 dias esteve aqui a insultar-me, pôs o seu líder parlamentar a insultar-me, fez fugas para a comunicação social sobre uma reunião da bancada onde me chamou vil, soez, reles e outros mimos de boa linguagem política. (…) E agora ainda queria que eu pedisse desculpa é preciso muita desfaçatez!”
Com o caldo entornado, Passos Coelho pediu a defesa da honra: “Há limites para a desonestidade no debate político”, acusou. Alegou que fez perguntas e discutiu sempre com “lealdade parlamentar”. Desafiou o primeiro-ministro a “provar” que alguma vez o tivesse insultado. Denunciou acusações que considera injustas como Costa responsabilizá-lo pelo que aconteceu ao BES. “Não perde uma oportunidade de fazer comentários de natureza pessoal”, lamentou Passos. E foi mais longe: “Nunca, nem nos tempos de pior memória, ouvi um primeiro-ministro ofender tantas pessoas e ao mesmo tempo tantas instituições”.
“Foi incapaz de referir onde é que eu o ofendi” — contrapôs Costa — “porque de facto não usou a palavra para defender a honra, mas para mais um episódio sobre o que anda a construir sobre a crispação e a degradação do ambiente do parlamento”. E a seguir foi outra vez irritantemente condescendente: “Não perca a cabeça como no último debate… intercale… mantenha a serenidade. No país não há crispação. O que há é uma bancada ressabiada”. Pateada na direita.
Seguiram-se então os pedidos de defesa da honra das bancadas do PSD e do PS: Luís Montenegro, pelos sociais-democratas, carregou nos encómios: “O senhor primeiro-ministro é que é mal-educado para os representantes do povo português e exigimos respeito para as instituições e representantes do povo português”. Carlos César, pelos socialistas, alegou que a Assembleia “está confrontada com um comportamento sistemático e repetido do PSD que é insultuoso. O PSD perde a cabeça quando tudo lhe corre mal, dificilmente alguém pode invocar a honra quando não é capaz de pedir desculpa a um primeiro-ministro quando diz que é reles, soez ou vil”.
No final de toda esta novela, antes de entrar noutras considerações políticas, Catarina Martins, do Bloco de Esquerda, havia de pronunciar a frase que resumia toda uma manhã: “Aquilo a que acabamos de assistir neste debate não fica bem a ninguém”. De facto.