Título: “A mulher-sem-cabeça e o Homem-do-mau-olhado”
Autor: Gonçalo M. Tavares
Editora: Bertrand
Páginas: 143

Sobre a obra de Gonçalo M. Tavares, já era importante e continua a ser: realçar o modo como a lógica é usada para criar uma literatura do absurdo. Seja por jogos de palavras, seja pelo uso de um pormenor como característica de um todo, seja pelo aproveitamento dos sentidos possíveis e inesperados das premissas, o romance de Gonçalo M. Tavares denuncia um problema de linguagem que se torna um problema de raciocínio: a lógica opera, não a partir de realidades, mas de símbolos, da palavra cadeira e não da realidade que a palavra nomeia. Ora, o símbolo não só é uma representação imperfeita, como tem realidade própria, independente daquilo que representa. A palavra tem um som, uma definição gramatical, uma posição sintática, que a coisa representada não tem. Na lógica estão, assim, misturados significados imperfeitos e significados abusivos, que Gonçalo M. Tavares permanentemente descortina e baralha.

Ora, este método é importante, não só por marcar a posição de Gonçalo M. Tavares diante da realidade, mas também por ter implicações no seu próprio romance. A lógica de conclusão absurda influencia, além da ideia fundamental dos romances, as personagens, o estilo e (menos) o enredo. A força da lógica torna passivas as personagens, torna-as autómatos obedientes aos desmandos do raciocínio. Falta-lhes, em suma, uma característica humana que passa por resistir à lógica quando ela contraria os nossos interesses. Aquilo que é identificado pelo autor no plano fundamental – a lógica pode dar conclusões contrárias e absurdas – não é cumprido no que toca às personagens – o nexo entre lógica e acção é imediato, se o raciocínio dita, a personagem obedece. Este apelo da lógica dá também à linguagem uma pátina lacónica, jansenista, própria da sobriedade matemática. Só com um verdadeiro talento é possível fazer literatura da linguagem anti-literária; só com uma invulgar segurança é possível criar um estilo a partir da linguagem mais vulgar, sem recurso a tinetas linguísticas próprias; Gonçalo M. Tavares conseguiu criar o estilo a partir da falta dele. E se isto por um lado impressiona, por outro pode criar um problema.

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A admiração por um estilo deve ser dada, mais do que pela mera existência de uma personalidade, pela grandeza dessa personalidade. Isto é, se um escritor usa sempre metáforas piscícolas, tem um estilo muito definido. Não consegue, porém, ser um bom estilo pela quantidade de coisas que deixa de fora. Um estilo que se priva de algo sem mais razão do que a de criar personalidade é um estilo que é sempre mais pequeno do que aquilo que o mundo propicia. Por outro lado, uma personalidade que absorve tudo depressa se torna incaracterística.

Note-se que este é um problema essencialmente moderno: só a partir do momento em que, mais do que a Verdade em geral, o pensador ou o escritor procura a verdade sobre si; só a partir do momento em que a personalidade passa a interessar mais do que uma ideia de verdade; só a partir do momento em que o estilo próprio ganha importância sobre uma ideia de literatura abstractamente considerada; só a partir do momento em que a originalidade passou a ser santo-e-senha da criação artística é que a ideia de ter uma persona literária vincada ganhou expressão.

Em Gonçalo M. Tavares há mundos e literaturas diferentes olhados pela mesma cabeça

A modernidade deu-nos vários exemplos interessantes deste conflito entre personalidade – que se quer definida – e vontade de expressar o mundo – que não cabe na personalidade. Os heterónimos de Pessoa são um dos exemplos mais óbvios: há uma personalidade que não cabe num estilo literário e que resolve as suas formas diferentes de apreensão do mundo com a separação de vários estilos – Fernando Pessoa escreve desta forma, Alberto Caeiro de outra, Campos de mais uma. Gonçalo M. Tavares não criou pessoas, mas criou mundos ou séries bem diferentes. O Reino, série de romances, é bem distinto do Bairro, em que o autor explora proximidades romanceadas entre vários pesos-pesados da literatura, num tom quase infantil que contrasta com o tema, tão meta-literário, tão aristocrático, dos livros. A Viagem à Índia e o Atlas do Corpo e da Imaginação contrastam de tal maneira que percebemos haver uma espécie de separação de mundos propositada. Nunca vemos Gonçalo M. Tavares como um escritor que mudou de estilo – vemo-lo como um escritor que experimenta vários mundos.

Ora, esses mundos, apesar de muito diferentes na forma literária – tanto dão contos, como romances, como um épico moderno – acabam por ter uma espécie de denominador comum na mente do autor. Da mesma maneira que podíamos dizer que entre os vários heterónimos de Pessoa há um problema comum – a contaminação do sentir pelo pensar – com soluções diferentes, em Gonçalo M. Tavares há mundos e literaturas diferentes olhados pela mesma cabeça. Não se perde nunca a lógica do absurdo, a frieza literária do raciocínio, o gosto pela criação de realidades imprevistas a partir da manipulação de premissas. As circunstâncias são diferentes, mas o modo de olhar para elas é o mesmo.

A grande curiosidade deste novo “mundo mitológico”, como Gonçalo M. Tavares lhe chamou, estava no contraste entre a própria ideia de mito e o olho do autor. Se, por um lado, esta podia ser de facto a oportunidade para alargar a personalidade, para dar o carácter literário à literatura feita sem ele, também podia ser o primeiro intruso no Universo de Gonçalo M. Tavares. O mito é o mundo do pré-lógico, do ante-raciocínio. Não são apenas as criaturas monstruosas, tão afastadas da multidão de anónimos contemporâneos que povoam o mundo de Gonçalo M. Tavares; é o território da narrativa pura, livre de análise, sem tempo para detenças em bizantinices linguísticas ou demoras filosóficas.

O mito não é reflexivo, não olha para si próprio nem é um olhar sobre nada. Há uma existência própria, não controlada, que dota o mito de grande estranheza. Não é propriamente moral – o que não quer dizer que o Homem não possa extrair alguma moral dele – nem representativo de nada. O mito de Teseu não nos ensina nada que não seja útil senão na sua circunstância – não encontramos habitualmente labirintos em que possamos usar o fio-de-prumo que habitualmente trazemos nos bolsos – nem é especialmente edificante. A sua doutrina não é clara, os motivos da sua força residem em parte da sua antiguidade, em parte num mistério ainda por desvelar. Por não serem criados para nenhuma situação é que os mitos acabam por ter força em várias; por não se explicarem, acabam por não ter explicação – em última análise, não sabemos bem para que é que existem. Por isso é que habitualmente não são criados – os Homens não costumam fazer muitas coisas que não saibam bem para que é que servem – e por isso é que, quando o são, tantas vezes são maus: alegorias de chinelo, verborreia moralista, metáforas demasiado óbvias (se queriam dizer outra coisa porque é que não dizem?) ou fantasia superficial sobre um fundo vulgar.

Gonçalo M. Tavares: “Acho que esta é a peça mais bonita de todas as que já fizeram com os meus livros”

Ao mito de Gonçalo M. Tavares, porém, temos de reconhecer características diferentes. É certo que, pela sua constituição anti-analítica, o mito tira a Gonçalo M. Tavares a construção lógica em que ele habitualmente mais brilha. Por outro lado, é por meditar com tanta frequência nas ramificações da lógica que Gonçalo M. Tavares sabe prescindir dela. O mito de Gonçalo M. Tavares não é alegórico, nem um Universo paralelo ao nosso, nem o nosso mundo hipertrofiado ou pintado a outras cores. O mais curioso é que o mundo mitológico de Gonçalo M. Tavares não é propriamente inventado. Mistura identidades colectivas (a Revolução, sempre em marcha) com temores populares (o Homem do mau-olhado), figuras históricas (Bartolomeu de Gusmão ou os cinco meninos Romanov) e Homens sem mais identidade do que uma característica (a noiva, o Homem-mais-alto). A aparente correspondência com a realidade, porém, entra num jogo de fuga próprio do mito: aquilo que seria imediatamente tomado como símbolo, como algo que remete para uma circunstância histórica (os últimos czares, por exemplo) não cumpre a sua função como símbolo. A História destes Romanov não é, de todo, a História dos Romanov, não são uma alegoria, são um falso símbolo. Esta relação, que é própria do mito (Homens que não são bem como os Homens, situações que não são exactamente as nossas mas têm um pé no real) contamina o próprio enredo.

A montagem da história é típica de Gonçalo M. Tavares – a sucessão de personagens aparentemente separadas, uma aproximação silenciosa entre elas e um cruzamento repentino que ilumina o enredo – e a linguagem também. A fantasia do mundo mitológico não lhe soltou o vocabulário, com o bom que isso tem (a manutenção da identidade e uma contenção narrativa que transpira segurança) e também o mau (a linguagem diferente ajuda a diferenciar mundos irmanados unicamente pela mesma linguagem). A falta da análise costumeira libertou algumas personagens – há, no Homem do mau-olhado, uma auto-comiseração e um sentimentalismo invulgares – e deu uma vertigem à acção que se coaduna com a lógica do mito.

Como não poderia deixar de ser, parece-nos que ainda é no Reino que o autor é Rei. Mesmo com alguns paradoxos engraçados (o Homem do mau-olhado que só pode olhar para a mulher a partir do momento em que lhe tiram os olhos), o mundo mitológico não tem a estrutura que permite a Gonçalo M. Tavares pôr o seu poder de análise a funcionar em todo o seu esplendor. Ainda assim, é um mundo explorado com inteligência e que permite ao escritor continuar a alargar as fronteiras do seu estilo.

Carlos Maria Bobone é licenciado em Filosofia. Colabora no site Velho Critério.