A norte, textos inéditos. A sul, um livro adaptado ao teatro. Esta semana, Gonçalo M. Tavares vai ter as suas palavras em duas estreias nacionais: “O Bem, o Mal e o Assim-Assim“, no Teatro Carlos Alberto, no Porto, e “Uma menina está perdida no seu século à procura do pai“, no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa. Foi uma absoluta coincidência”, diz ao Observador.

Outra coisa que também coincide: ambos os textos foram escritos sem pensar na dramaturgia, ao contrário de outros que o escritor, que acumula os prémios José Saramago e Portugal Telecom, já fez no passado. “Isso agrada-me”, admite. Habituado a ver obras suas chegarem aos palcos, não fica na cadeira a pensar que determinada cena não é como a tinha imaginado na sua mente, ou que certa linha do guião não segue o livro. “O que eu faço sempre é deixar completamente à vontade o encenador e deixar que eles façam o que quiserem. Assumo que, a partir dali, é uma nova obra.

Comecemos então com “Uma menina está perdida no seu século à procura do pai“, que o Teatro Nacional D. Maria II (TNDM II) estreia esta quinta-feira, às 21h00, e que fica em Lisboa até domingo, viajando depois em digressão pelo país. A peça (bilhetes entre 5€ e 17€) parte do romance com o mesmo nome, publicado em 2014, cuja história é protagonizada por uma menina de 14 anos com trissomia 21. Também em cena a protagonista é portadora de trissomia 21, e não será a única. Um conjunto de intérpretes portadores de deficiência intelectual e física, todos membros do grupo de teatro Crinabel, vai contracenar com os atores do TNDM II, para propor ao público que reflita numa questão: até que ponto continuamos implicados em olhar para lá da norma?

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A peça junta intérpretes portadores de deficiência intelectual e física, e os atores Paula Mora e Manuel Coelho, do D. Maria II. © TNDM II

“Acho que esta é a peça mais bonita de todas as que já fizeram com os meus livros”, admite Gonçalo M. Tavares, minutos antes de entrar no teatro para ver um ensaio. “Tenho uma relação já muito antiga com o Marco [Paiva, encenador], já fiz várias coisas com o Crinabel e é uma felicidade muito grande poder contactar com estas pessoas. É um tipo de trabalho que me comove, que me enriquece e que também me provoca.”

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O autor está prestes a poder ver o resultado final. Antes, esteve com o elenco para fazer uma leitura. “É muito engraçado perceber quem é que faz de Marius, quem é que faz de Hanna, que tipo de interpretação fazem”, acrescenta. “Eu já tenho experiência de ver outros textos do Marco e o trabalho é puramente de ator, em que o Marco pergunta aos atores o que é que eles acham da personagem, como é que a veem, e eu vi que as questões que eles põem são as questões que um ator profissional põe.”

Para além de dar os parabéns ao grupo de teatro, que está a celebrar 30 anos, o autor de Jerusalém elogia a “grande coragem e brilhantismo” de Tiago Rodrigues, o diretor do TNDM II responsável por colocar “Uma menina está perdida no seu século à procura do pai” na sala principal, com o destaque que merece.

O Bem o Mal e o Assim-Assim

O cenário de “O Bem o Mal e o Assim-Assim” é simples e pode ser em qualquer país. © Susana Neves/TNSJ

300 quilómetros a norte, o texto em destaque não só ainda não foi publicado como é, na verdade, um conjunto de 15 textos. Chamam-se O Bem, o Mal e o Assim-Assim, não têm uma estrutura teatral mas, por serem vários diálogos, “está mais próxima de teatro”, revela Gonçalo M. Tavares. Dois homens do mesmo universo contido no livro O Torcicologologista, Excelência (2015) conversam entre si sobre “o que é o bem e o que é o mal, como é que nós conseguimos distinguir o bem do mal”, adianta o seu autor.

“Ele enviou-nos estes 15 pequenos textos e nós fizemos um espetáculo”, explica ao Observador João Luiz, o encenador que teve a difícil tarefa de imaginar cenários e interações a partir deste conjunto mais filosófico. Nada que o assuste, já que, com a companhia Pé de Vento, já encenaram no passado dois textos do Prémio José Saramago (“O Senhor Juarroz” e “O Senhor Valéry”).

A estreia acontece na sexta-feira, às 21h00, no Teatro Carlos Alberto, fica no Porto até 30 de outubro e conta com as interpretações dos experientes Rui Spranger e Valdemar Santos (bilhetes a 7€). Há, ainda, uma terceira personagem: Patrícia Queirós, que tocará percussão. Atriz, como os colegas, não apenas responsável por musicar o momento. “Ela interfere, não só nos textos mas durante a interpretação, e faz comentários, numa outra linguagem”, explica João Luiz.

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Patrícia Queirós faz parte do elenco, mas o seu papel será diferente. © Susana Neves/TNSJ

A narrativa passa-se num sítio que é nenhures. Em palco, uma antiga fábrica, desmoronada, onde há quatro colunas, um cadeirão velho esventrado e uma cadeira de avião. Há ainda janela ao fundo, com luz do dia, que está iluminada. Sem referências geográficas, porque estas conversas podem ter lugar em qualquer local onde habitem seres humanos. Animais racionais que têm o discernimento de distinguir o bem do mal. Ou não? “O grande tema da peça são diálogos à volta de se o bem se pode tocar, se a definição é visual”, explica Gonçalo M. Tavares, que acredita que o mal continua a existir porque, quando se está a instalar, é muito pouco distinguível do bem.

“Muitas vezes só percebemos que estivemos diante do terrível mal à distancia. Os textos são uma espécie de pedido: que o mal se torne mais evidente, que se anuncie antes de se manifestar. É, de alguma maneira, um texto a pensar na ideia de que seria muito mais fácil viver se o mal tivesse uma cor diferente do bem. O mal só se instala porque vem como uma espécie de máscara de bem. Por exemplo, aprendemos com o cinema essa ideia de que é fácil distinguir o bem do mal, aquilo que aparece nos filmes superficiais, em que percebemos logo pela música que um personagem é mau. A terrível questão é que, na vida real, não há música.”

Cabe ao público fazer o paralelismo com episódios atuais. “Não são referências diretas, mas tem tudo a ver com acontecimentos da atualidade. As pessoas não conseguem comunicar umas com as outras, acham que fazem uns gostos e pronto”, critica João Luiz. Que deixa, no entanto, a ressalva de que quem pagar bilhete não vai sair deprimido. “Não, não é nada triste, é muito divertido! Fala-se com ironia, com sarcasmo, com cinismo porque, no fundo, a maior parte destas atitudes são cínicas”, sublinha.

Gonçalo M. Tavares não pagaria bilhete, certamente. Mas com morada em Lisboa, uma estreia em simultâneo por lá e a revisão final de “um projeto bastante longo” que prefere ainda não revelar qual é, não sabe se vai poder ver “O Bem, o Mal e o Assim-Assim” em palco. “Mas estou muito curioso de ver. Vou tentar ir até lá, sim!”