Contam-se as histórias mais aventurosas e assustadoras sobre o curto trajecto que separa os postos fronteiriços de Marrocos e da Mauritânia, que constituem desde há longos anos a única ligação terrestre que permite a viagem de Norte para Sul através de África. Porém, raramente se conta a verdade. As mentiras que se repetem quase ao ritmo de cada novo viajante que por ali passa, vão adensando de tal forma o drama que, ao contrariá-las, arriscamos a que nos julguem a nós por mentirosos.

Já há uns anos valentes, a primeira vez que por ali passámos, tinha acabado de inaugurar a estrada que permitia chegar por asfalto desde Dakhla a Nouakchott. São cerca de 950 quilómetros desde aquela que é a última cidade que encontramos em Marrocos, até à capital da Mauritânia, que hoje já conseguimos ligar numa única jornada, mesmo que cansativa. Antes do asfalto chegar, a viagem tardava vários dias em percorrer, vagarosamente em trilhos de areia. A lentidão da viagem não se devia apenas ao facto de decorrer sempre em areia, mas sobretudo porque tinha de ser feita em caravana, pois não era permitida a passagem a viaturas que não fossem enquadradas por um guia, a que se designava “escolta”, nem que fosse para, desde logo, emprestar um cunho mais dramático à viagem.

O guia, sempre um militar, era indispensável pelas autoridades marroquinas, que não queriam ninguém a andar sozinho nestas paragens, onde o conflito travado com a Frente Polisário, entre 1976 e 1991, fez criar a maior “plantação” de minas terrestres de que há conhecimento, sem que haja conhecimento dos pontos onde se encontram colocadas. Segundo uma estimativa das Nações Unidas, terão sido espalhadas pelas três forças em litígio – a Mauritânia também travou guerra contra a Frente Polisário entre 1976 e 1979 – qualquer coisa como 10 milhões de minas! Este é o número que é verdadeiramente assustador, mas não os lugares por onde podemos agora passar, ao conduzirmos desde Dakhla até Nouakchott, percurso em que somente restam 1,2 quilómetros por asfaltar – e no asfalto não há minas –, que se situam, precisamente, na parte final do troço entre as duas fronteiras, mesmo antes do posto mauritano.

Uma fronteira “extra” entre fronteiras

Em Agosto do ano passado, depois do anterior Secretário-Geral da ONU ter visitado o campo de refugiados saharauis em Tindouf, na Argélia, o Rei de Marrocos não só decidiu expulsar todo o contingente da Minurso – abreviatura de Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental –, como aproveitou esse vazio arbitral para asfaltar o pedaço de estrada que ainda não estava pavimentado. A justificação foi óbvia: melhorar as condições de circulação entre as fronteiras e deitar mão aos bandos de contrabandistas que fazem base na “terra de ninguém”.

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Os protestos da Frente Polisário não se fizeram esperar, acusando Marrocos de violar os termos do cessar-fogo assinado em 1991. E tudo isto resultou no reacender da tensão neste ponto estratégico de África, pondo em risco a manutenção da única fronteira que permite a passagem para o sul. De repente, forças militares marroquinas e da Frente Polisário voltaram a estar frente a frente, ocupando posições nesta faixa entre fronteiras, distanciados uns dos outros por apenas 120 metros.

O Comboio mais longo do mundo cruza a estrada que liga Nouadhibou a Nouakchott, na Mauritânia

Este braço de ferro arrastou-se até à intervenção de António Guterres, que desde que tomou posse como Secretário-Geral das Nações Unidas tem-se mostrado particularmente sensível e atento à situação neste recanto do Sahara. A situação desanuviou em Março, pouco antes de por ali passarmos, depois de Guterres ter falado pessoalmente com o Rei Mohammed VI, que acordou retirar as tropas marroquinas, que de um dia para o outro regressaram aos quartéis, dentro da sua fronteira.

Mas esta retirada das máquinas de guerra fez também travar as máquinas de construção, que cessaram o trabalho quando faltavam abrir 1200 metros de estrada que, por isso, permanecem infernais. Não se pode sequer falar em estrada, porque se trata apenas de uma passagem desminada, um corredor largo por onde cada qual escolhe o melhor ponto por onde avançar, metro a metro, com as maiores cautelas. É, sem dúvida, o pior ponto dos cerca de 15 mil quilómetros desta Expedição Todo Terreno Peugeot 3008 Lisboa-Dakar-Bissau.

Mas dizemos que é o pior troço da viagem unicamente pelo estado infernal do piso, onde a pedra, duríssima, alterna com areia solta. Porque, de resto, tudo o que se conta desta travessia é, acima de tudo, pura fantasia.

Enfim, na Mauritânia

Assim que se abrem os portões de saída da fronteira de Marrocos, somos imediatamente envolvidos por uma pequena multidão que tenta vender-nos moeda mauritana, mas também negociar favores para os trâmites na fronteira seguinte que, na verdade, não são necessários. Muitos, talvez até a maioria, querem sobretudo saber o que levamos para vender, para que possam ser eles os primeiros a negociar connosco. A profissão de muitos destes, se é que se pode chamar a isso profissão, tem um nome: são contrabandistas. E é curioso que tudo isto se passa à vista das autoridades.

Da fronteira de Marrocos saem diariamente imensos automóveis com as bagageiras a arrastar pelo chão, de tão carregadas com bidões de combustível, que além de ser bastante mais barato neste país, tem uma qualidade muito superior ao que é vendido na Mauritânia. Na nossa marcha entre os dois postos fronteiriços, fomos acompanhados por um desses “auto-tanques” disfarçados, um velho Mercedes-Benz Classe E com matrícula mauritana, que se iniciou os procedimentos alfandegários ao mesmo tempo do que nós, a verdade é que se despachou da fronteira num décimo do tempo.

Coube-nos fechar as duas fronteiras, pois fomos os últimos a atravessar ambas, tardando cerca de uma hora e meia com as formalidades. Que, ao contrário do que é normal, foram mais lentas na saída de Marrocos, que na entrada na Mauritânia, onde tivemos de registar os nossos dados biométricos para a entrega do necessário visto; já tinham desligado o sistema e foi preciso esperar que fossem buscar um dos dois funcionários que o opera, bem como reiniciá-lo. Uma vez averbados os vistos no passaporte, foi registada no nosso a entrada do Peugeot 3008, o que implicou ir ao posto da alfândega, para terminarmos os procedimentos com uma última verificação da conformidade de toda a documentação do veículo, no posto da polícia. Aqui, o oficial de serviço, fez questão de deixar bem claro que não era aplicável nenhuma taxa. Por ele, claro, porque há muitos colegas seus que têm outro entendimento.

Já do lado de fora do posto fronteiriço, contratámos uma apólice de seguro, alargando a validade a dois meses, de modo a permanecer em vigor até à viagem de regresso. Isso fez inflacionar o preço, mas vai permitir-nos reentrar na Mauritânia por uma fronteira mais remota e pouco frequentada, onde não existe nenhuma agência de seguros, sem nos sujeitarmos a eventuais coimas por circularmos sem seguro válido, que desde há muito é obrigatório.

Contrabandistas nas barbas da ONU

Voltemos um pouco atrás, ao caminho através da “terra de ninguém” que, afinal, é reivindicado pelas forças da Frente Polisário, que depois dos arranjos na estrada feitos pelas autoridades marroquinas, instalaram um posto de controlo, como se fosse uma fronteira da denominada República Árabe Saharaui Democrática.

Uma simples corda, esticada a toda a largura da pista esburacada, com uma tampa de latão pintada a fazer de sinal de Stop, desenha esta fronteira, guardada por uma patrulha de quatro soldados da Frente Polisário. Que ao verem que a decoração do nosso Peugeot 3008 exibe uma bandeira de Marrocos, fazem ar de caso e mandam chamar um superior. O oficial que aparece junto de nós é um homem simpático e sensato. Não perde tempo a tentar doutrinar-nos com a sua causa, nem sequer a pedir-nos que removamos a bandeira de Marrocos. Pedir, na verdade pediu, mas não insistiu. E não nos quis, claramente, atrasar na marcha até à Mauritânia.

Tudo isto se passou sob o olhar atento de uma equipa de observadores das Nações Unidas, instalados no cimo de um pequeno cerro, exatamente entre esta fronteira imaginária e o ponto onde termina o asfalto. E logo a seguir, um acampamento de contrabandistas, tão indiscreto que até dá vontade de rir, onde camiões descarregam mercadorias que depois são dispersadas por diversos furgões e, sabe-se lá, onde irão terminar.

Na fronteira entre Marrocos e a Mauritânia, na Terra de Ninguém, os contrabandistas operam mesmo sob as barbas da ONU

Mas uma coisa é certa: quer na fronteira marroquina, quer na da Mauritânia, o rigor dos procedimentos é visivelmente superior ao que era há uns anos. Do lado marroquino os veículos são inclusive sujeitos a uma inspeção por funcionários da alfândega e, adicionalmente, ao rastreio por um “scanner”, além da vistoria por cães, certamente que treinados para farejar drogas e, talvez até, explosivos. Na Mauritânia só não há, pelo menos por enquanto, um “scanner”, mas salvo este detalhe, todo o procedimento é idêntico. E nos dois casos, tranquilo. Quem não deve, não teme. E isso é perceptível por quem controla. Passámos nos dois exames sem nada a assinalar. Nós e o Mercedes-Benz cheio de combustível…

De Dakhala a Nouakchott por entre memórias históricas

Começámos a manhã em Dakhla, a última grande cidade de Marrocos, nesta ponta sul do Sahara Ocidental, implantada pelos espanhóis na extremidade ocidental de uma península, tão estreita quanto longa, que entra pelo Atlântico, entre os cabos Bojador e Branco, dois dos muitos nomes dados nesta costa pelos navegadores portugueses nos tempos dos descobrimentos, que perduram até hoje, juntamente com outros, como Angra de Cintra, Porto Rico e Cansado.

Não nos chegámos a instalar nestas paragens, ao contrário dos espanhóis, que entendiam ser importante controlar toda a zona continental em frente às Canárias, para melhor proteger as ilhas dos ataques de piratas, além de reforçar o alcance dos seus pescadores. Estes territórios eram originalmente habitados por nómadas, de origem berbere, e conta-se mesmo que a região foi formalmente comprada pelos espanhóis ao chefe de uma dessas tribos, num ato celebrado na ponta da península de Rio do Oro, que foi devidamente registado por um notário, vindo expressamente de Canárias.

Villa Cisneros, a primeira povoação construída pelos espanhóis, foi fundada nesse lugar, em 1884. A cidade recebeu o nome do célebre inquisidor espanhol, o Cardeal Francisco Jiménez de Cisneros, que chegou a ser regente, entre os reinados de Isabel e de Fernando, os Reis Católicos. Não se pode dizer que tenha sido uma grande homenagem, pois a cidade tinha apenas cerca de uma centena de meia de casas em 1958, quando Franco decide reforçar a presença espanhola nesta região e determina um plano de expansão urbana, que levaria, aliás, a transferir, em 1960, a capital do Sahara Ocidental para El-Aayoun, a actual cidade de Laayoune.

Curiosamente, praticamente não sobrou nada deste século de presença espanhola. A herança mais viva é a igreja católica, uma das raras que podemos encontrar em toda a região e que foi construída, precisamente, na sequência desse plano de revitalização da cidade, já numa fase em que a pressão de Marrocos para que os espanhóis partissem, era evidente e cada vez mais forte.

Simbolicamente, o último espanhol a sair de Villa Cisneros foi o general que liderava a guarnição militar, quando se deu a retirada, a 12 de Janeiro de 1976. Tinham-se passado apenas três meses e uma semana desde a invasão do Sahara Ocidental por 350 milhares de civis marroquinos. Uns dias antes da Marcha Verde, como ficou conhecida esta invasão, o próprio Juan Carlos, que pouco depois sucederia a Franco na governação de Espanha, restabelecendo a monarquia, defendera, numa visita a El-Aayoun, a autonomia do Sahara Ocidental, confiando a administração aos saharauis; mas antes de partirem, os espanhóis acordaram a repartição do território entre Marrocos, a quem coube o sector norte, e a Mauritânia, que tomou conta do sul, instalando-se na península do Rio do Oro e designando Villa Cisneros como capital da “nova província” de Tiris Al-Gharbiyya.

O mais incrível disto tudo é que pouco antes deste acordo tripartido, quer Marrocos, quer a Mauritânia defendiam as pretensões independentistas dos saharauis e apoiavam o seu braço armado, a Frente Polisário. E estes, ao verem-se excluídos do processo, declararam guerra aos seus anteriores aliados. Fortemente apoiada pela Argélia, pela Líbia, mas também por Cuba, pela União Soviética, Vietname, Coreia do Norte e Alemanha Oriental, a Frente Polisário conseguiu desafiar o poderio militar marroquino, mas sobretudo ia levando a Mauritânia à falência, pois os meios deste último país eram bastante escassos, quer em termos de equipamento, quer mesmo a nível de efetivos, não contando senão com cerca de 12 milhares de homens nas suas forças armadas.

As operações da Frente Polisário contra posições mauritanas foram-se alargando cada vez mais além do Sahara Ocidental e abalaram fortemente a Mauritânia, gerando uma insatisfação generalizada que conduziu a um golpe de estado, no Verão de 1978, substituindo o Governo por uma Junta Militar que um ano depois, em Agosto de 1979, assinou um acordo de paz com a Frente Polisário, através do qual renuncia a todas as pretensões quanto ao antigo Sahara Ocidental Espanhol e promove a imediata retirada do território.

Mas, uma vez mais, não são os saharauis que saem a ganhar, pois quem avança são mesmo os marroquinos. Enfraquecida pelos três anos de guerra, a Mauritânia procurou então distanciar-se do conflito, escolhendo uma confortável neutralidade, para não ofender nem o inimigo recente, nem nenhum dos poderosos vizinhos: Marrocos, que agora reclamava toda a região, e a Argélia, que continuava a suportar a luta dos saharauis.

As relações entre Marrocos e a Mauritânia nunca tinham sido propriamente as melhores e nem assim melhoraram. Depois da França ter concedido a independência à Mauritânia, em 1960, Marrocos tardou nove anos em reconhecer a soberania do jovem país vizinho, que considerava ser parte integrante de um Grande Marrocos. As relações entre os dois países chegaram mesmo a ser cortadas, em 1981, depois de Marrocos ter sido acusada de estar por trás da tentativa de um golpe de estado na Mauritânia, somente sendo reatadas, uns meses depois, graças à intervenção da Arábia Saudita, que ainda hoje é uma das mais fortes influências em ambos os países.

Os aviões Douglas C-47 Skytrain dos Transportes Aéreos Portugueses, conhecidos como DC3, que ligavam nos anos 50 Lisboa a Lourenço Marques, com escala em Villa Cisneros

Nesta noite, depois de cerca de um milhar de quilómetros percorridos praticamente apenas com paragens nas fronteiras e para reabastecer de gasóleo o nosso Peugeot 3008, chegámos a Nouakchott. A capital da Mauritânia é uma cidade ainda mais jovem, pois quando Dakhla nasceu, nem sequer existia. Começou por ser um mero posto militar da África Ocidental Francesa, sem qualquer importância, como a sua reduzida guarnição: um sargento branco e 15 atiradores negros. Ao lado do quartel havia uma pista de aterragem, que os aviadores do correio aéreo francês utilizavam em caso de emergência, tal como também o faziam ocasionalmente em Villa Cisneros, onde até os DC3 dos Transportes Aéreos Portugueses aterravam regularmente, no final dos anos 1940, no decurso daquela que era então a ligação aérea mais longa da aviação comercial: a Linha Imperial, que em duas semanas ligava Lisboa a Lourenço Marques, actual Maputo.