Há uns anos, um conhecido escritor de viagens português, num livro inteiramente consagrado a uma longa travessia sul-norte de África, resumia a apenas algumas linhas a sua passagem pela capital da Mauritânia. A descrição que fazia era real mas, acima de tudo, revelava que nem chegou a entrar na cidade, quanto mais a conhecê-la, muito embora isso não o tenha inibido de fazer os seus comentários, que reduziam Nouakchott a uma expressão miserável.

O escritor, como tantos outros que simplesmente percorrem a Mauritânia de passagem, apenas para chegarem à fronteira seguinte, não se alargou muito em palavras, mas as poucas que escreveu bastaram para que, quem confiasse nas suas impressões, jamais incluísse Nouakchott na sua lista de possíveis visitas. Nada mais injusto!

Nouakchott é, sobretudo, uma capital africana diferente de todas as outras, praticamente sem história, já que ainda nem celebrou 60 anos de existência. Em contrapartida é uma cidade com vida, que acorda cedo e adormece tarde, ou que nem sequer dorme.

Conduzir nesta cidade é uma experiência inesquecível. Se chove, o que não é normal, mas que acontece episodicamente, tudo fica paralisado e qualquer tentativa de deslocação pode ser uma aventura, pois se as principais vias são asfaltadas, de modo geral, isso já não sucede com as vias secundárias, como as que recortam os bairros habitacionais, desde os mais elegantes, onde se situam as vivendas inicialmente construídas para os expatriados e os funcionários de nível mais elevado, mas também grande parte das representações diplomáticas, até às zonas de habitação mais modestas, onde se concentra grande parte do comércio.

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A maioria destas ruas são em areia e representam não só o acesso às zonas habitacionais, como também atalhos para fugir ao trânsito das avenidas pavimentadas. No entanto, conduzir em areia traz sempre algum risco e, embora possa parecer estranho, não é raro vermos automóveis enterrados na areia das ruas e ruelas de Nouakchott. Cruzámo-las incessantemente, quer para nos livrarmos do trânsito, que somente acalma pela hora do jantar, quer ainda por serem inevitáveis para alcançarmos diversos dos lugares onde fomos.

A galeria de arte Zeinart Concept

Para visitarmos a Zeinart Concept, uma improvável galeria de arte instalada numa dessas belas vivendas próximas das embaixadas, resguardada dos olhares curiosos por muros impenetráveis que escondem quase sempre jardins surpreendentes, de tão bonitos, frescos e floridos, como é o caso deste. Trata-se de uma galeria, um espaço único nesta capital que é fruto da paixão de uma portuguesa. Chama-se Isabel Fiadeiro e a história que a trouxe até aqui é uma mão cheia de acasos, que ela soube converter numa nova vida para si mesma.

Galerista portuguesa na Mauritânia por acaso

Tudo começou há 13 anos, quando decidiu fazer uma viagem parecida com a nossa, acompanhada por um amigo, num velho Renault 4. Queriam ir até à Guiné-Bissau mas, entretanto, tomaram conhecimento que quando chegassem ao Senegal o mais certo era não poderem entrar com o carro, porque então vigorava uma lei que impedia o acesso de viaturas estrangeiras com mais de cinco anos (ou essa limitação ligeiramente alargada para os oito anos, mesmo assim, muito restritiva), como forma de combater o tráfico de automóveis usados, ou melhor, muito usados, sobretudo alimentado por supostos turistas que depois de visitarem o país vendiam os seus carros.

Esse negócio ainda hoje prevalece, mas essencialmente na mão dos próprios senegaleses que dispõem de documentos europeus, obtidos quase sempre com o estatuto de refugiados, que não precisam de visto para virem à Europa comprar carros velhos, que entram no país através de esquemas de corrupção. Isabel desconhecia esta limitação, mas perante a impossibilidade de prosseguir até Bissau, não desistiu da viagem e limitou-a até à Mauritânia. E aí ficou, porque o velho Renault 4 “morreu” avariado.

Em Nouakchott, Isabel mudou de companhia e juntou-se a um grupo que se ofereceu para a levar até ao interior, numa viagem que foi suficiente para a encantar. Até hoje. Nesta viagem através do Sahara, Isabel começou a fazer um carnet de voyage, como ela própria chama ao caderno onde descreveu “por desenhos, aguarelas e pequenos textos o espírito das pessoas e os lugares” por onde passou. Gostou tanto do que esta experiência lhe proporcionou que decidiu permanecer na Mauritânia e acabou mesmo por eleger este país para residir.

A portuguesa Isabel Fiadeiro, que tem ajudado a refinar a arte local

Nascida em Londres, Isabel Fiadeiro veio para Portugal com oito anos, passando a residir em Portimão, para depois ter vivido em Barcelona, enquanto estudava artes, após o que se foi dividindo alternadamente entre Londres e Portugal, completando estudos em artes e design, além de viajar pelo mundo. Até essa viagem em que partiu rumo ao sul e nunca mais voltou. Voltar, até voltou, pois está precisamente neste momento em Portugal, onde na passada terça-feira deu uma conferência no Museu do Carmo, em que falou dos seus carnets de voyage e do que é viver na Mauritânia.

Quando a conhecemos, em Nouakchott, já lá vão muitos anos, ficamos admirados com os seus retratos de mauritanos, resultado de inúmeras viagens por este país, em que foi acolhida por comunidades locais, com quem passou algum tempo, inserindo-se nas suas rotinas antes de registar as suas impressões em novos desses encantadores cadernos que descrevem desde então todas as suas viagens.

Mais tarde, reencontrámos Isabel, sempre em Nouakchott, num momento em que já dispunha de uma galeria de arte, que entretanto renovou, ao mudar de instalações. “Nouakchott é ponto de passagem de muitos artistas africanos e comecei a estabelecer contacto com imensos, reunindo na galeria peças que se destacam pela sua beleza e valor artístico”, conta-nos, explicando como rapidamente tornou a Zeinart Concept conhecida e, sobretudo, reconhecida.

Sejam peças tradicionais, ou absolutamente originais, a regra para que sejam expostas e colocadas à venda nesta galeria é “evidenciarem-se pela sua qualidade”, em contraste com o vulgar artesanato africano que, mesmo que manufacturado, é produzido em série para vender aos turistas e em feiras. “Faltava um espaço onde os interessados pudessem encontrar peças mais autênticas, com a segurança de serem genuínas”, completa Isabel Fiadeiro, que em pouco mais de uma década se tornou numa figura de referência nos meios culturais da Mauritânia, hoje procurada por artistas de inúmeros países africanos, em busca de novas oportunidades para expor as suas obras, ou simplesmente para colocar no mercado preciosidades que fazem chegar a Nouakchott, sejam elas esculturas, jóias, máscaras ou até peças de mobiliário.

Neste reencontro com Isabel Fiadeiro, assim que entrámos na sua nova galeria, imediatamente ficámos presos a um quadro, cheio de vida. Que em breve seguirá viagem para Lisboa connosco, é claro. E a história deste quadro não deixa de ser especialmente interessante, conforme nos contou a galerista: “É de um pintor mauritano muito bom, Mohamed Sidi, que andava desmotivado por sentir que o seu estilo tinha sido banalizado, de tão copiado por outros artistas. Consegui convencê-lo a retomar o seu estilo original e o resultado foi uma coleção que encantou quem teve oportunidade de visitar a exposição que promovemos.” Ficámos com um dos dois quadros que restavam.

Uma história de afirmação

No final dos anos de 1920, o lugar onde se situa hoje a capital mauritana era um ponto mínimo no mapa, que aí se limitava a assinalar duas coisas: um pequeno forte militar e, ao lado, uma pista de aviação. Com uma guarnição reduzida a 15 atiradores senegaleses, negros, comandados por um sargento francês, o forte era tão isolado que ser destacado para chefiar esse posto soava mais a castigo do que uma distinção. E, quanto ao aeródromo, em terra, só muito episodicamente era usado e sobretudo pelos pilotos da Aeropostale, em situações de emergência, pois sabiam que ali estariam a salvo, protegidos pelos militares. Também por isso, ao abrigo do forte, foi nascendo um acampamento, que em 1950 já tinha carácter permanente, embora de pequena dimensão.

A capital da Mauritânia

A cidade foi, literalmente, inventada em 1958, depois de um referendo promovido em toda a África Ocidental Francesa, que resultaria desde logo na independência da Guiné – hoje Guiné Conacri, para se distinguir da Guiné-Bissau e da Guiné Equatorial. Este referendo levou, no final de 1960, à criação das repúblicas do Senegal, do Mali, da Costa do Marfim, do Benin, do Niger, do Alto-Volta (que, entretanto, mudaria de nome para Burkina Faso) e da Mauritânia, que iria ocupar uma imensidão de território constituído essencialmente por deserto, onde não havia nenhuma cidade que reunisse condições para se constituir na capital. E essa era uma situação que desde 1956 preocupava as autoridades francesas; daí terem posto à apreciação de uma comissão de notáveis, escolhidos pelos próprios mauritanos para depois assumirem a governação do novo país, a questão da construção de uma capital.

Nascida à sombra de uma tenda no “lugar onde sopra o vento”

A conclusão dessa comissão de notáveis das tribos mais influentes da Mauritânia, foi apresentada em 1958, numa reunião com o governador da África Ocidental Francesa, que trocou os salões dos palácios de Saint-Louis pelo modesto abrigo de uma tenda berbere, instalada junto do forte francês de Nouakchott, nome que significa “lugar onde sopra o vento”. Situado na costa e abrigado do Atlântico por um cordão de dunas, mas também do Sahara pela frescura da orla marítima, este lugar oferecia, de acordo com os subscritores do projeto, não só estas vantagens, como também a de ser mais central, no âmbito do território, além de não estar afecto a nenhuma tribo, pois somente o forte tinha carácter permanente.

Mas os inconvenientes eram ainda maiores do que os aspectos positivos, a começar pela absoluta escassez de água potável, indispensável para as necessidades humanas, e ainda maior para que uma cidade ganhasse vida. Desabrigada dos ventos fortes que sopram quase todo o ano desde o deserto, Nouakchott arriscava viver sob tormenta.

E o lugar tinha ainda outros dois inconvenientes, que o tempo se encarregou de demonstrar o quanto são graves, mas também o quanto foram subestimados, tal a pressa em criar a cidade que, no seu essencial, foi construída em tempo recorde. O gabinete do reputado arquitecto André Leconte, que se notabilizou por inúmeras grandes obras na fase de reconstrução de França no período após a Segunda Guerra Mundial, foi escolhido para “inventar” a nova capital mauritana em 1958 e a cidade estava pronta no final de 1960, quando o país se tornou independente.

Nos dias de hoje, isto teria sido impossível, pois só os estudos de impacto ambiental que actualmente são requeridos em obras desta dimensão exigiriam pelo menos três anos de pesquisa, de observação, de recolha de dados e da sua posterior análise. Se isso tivesse sido feito, a cidade não teria sido construída sobre um cordão dunar que não estava ainda estabilizado, nem tão pouco em terrenos que se situam abaixo da cota do nível médio do mar, ou seja, com uma altitude negativa, que os tornam facilmente inundáveis.

Há quatro anos, quando visitámos Nouakchott, no decurso de uma expedição semelhante a esta, em que conduzimos um Peugeot 2008 igualmente entre Lisboa e Bissau, diversos bairros da capital mauritana estavam inacessíveis, devido a cheias provocadas por invulgares chuvadas, que não só lançaram o caos numa cidade que já por si é algo caótica, como se colocaram imensos problemas, desde sociais, pela impossibilidade de mobilidade da população, a económicos. O mercado central ficou sem acessos e surgiram mesmo problemas de saúde pública preocupantes, dado que as águas paradas começaram a acumular todo o tipo de detritos, nomeadamente dos esgotos domésticos.

Talvez até tivesse sido mais razoável e fácil escolher para capital uma cidade que já tivesse existência própria e que reunisse condições adequadas, mas para os franceses interessava assinalar o nascimento da Mauritânia como país independente com uma obra grandiosa que, depois, perpetuasse a memória colonial, e não havia nenhum outro lugar em que isso se verificasse. Também para o comité de tribos, que foi encarregue de preparar a transferência de poderes, uma nova cidade oferecia a vantagem de marcar o momento da fundação enquanto nação unificada, livrando-se da vinculação a qualquer tribo, como aconteceria se a escolha recaísse sobre uma das poucas cidades existentes.

A praia de Nouakchott, a maior e a principal cidade da Mauritânia

Assim, não restou aos franceses senão aceitar a escolha de fazer nascer uma nova cidade junto do pequeno forte de Nouakchott. A primeira pedra seria mesmo lançada ainda em 1958 e, segundo o projecto do arquitecto francês, dividia-se essencialmente em dois núcleos: um para a administração, com os edifícios dos diversos ministérios e dos funcionários, marcadamente moderno e imponente, outro mais tradicional, para habitação e o pequeno comércio. As duas zonas expandiam-se dentro de um hexágono, recortado por uma ampla avenida, que era tudo menos uma linha recta.

Entre os primeiros trabalhos, contaram-se a criação de duas grandes zonas arborizadas, que então se confinavam às áreas mais nobres da cidade, nas suas franjas. Hoje, estes jardins estão já no centro da cidade, que foi planeada para acolher uma população que deveria cifrar-se nas 8.000 pessoas em 1970, mas que nesse ano já atingia as 40.000. Atualmente, a capital já ultrapassou o milhão de habitantes, quase um terço da população da Mauritânia. Segundo dados que pudemos consultar, em 1962 a percentagem de população urbana era de apenas 6,4% e 75% eram nómadas; hoje, a população nómada não chega aos dois dígitos, em termos percentuais e as sete maiores cidades, depois de Nouakchott, não chegam a somar 400.000 habitantes.

O crescimento da capital não tem cessado e quase sempre de forma desordenada. A recente inauguração de um novo aeroporto internacional, com a desafectação dos terrenos do antigo, irá permitir criar mais novos bairros numa zona que há uma década estava no limite sudeste da cidade, mas que agora já se encontra praticamente na zona central.

Ao sairmos de Nouakchott em direção ao interior, quando passámos ao lado do antigo aeroporto, vimos a pista principal transformada numa ampla e extensa avenida. Recordámo-nos de ali termos conduzido quando a pista ainda funcionava, na penúltima edição do Rali Dakar decorrida em África, que escalou Nouakchott para a pausa de 24 horas a meio da prova, instalando o acampamento no recinto do aeroporto. E sentimo-nos tentados a atalhar por entre os antigos hangares e levar o Peugeot 3008 até à antiga pista, a mesma onde em 1960 aterrou o DC6 que trouxe o General Charles De Gaulle à inauguração desta cidade. Resistimos à tentação, mas ficou entre nós um estranho sentimento de arrependimento, algo irracional, quase infantil. Apetecia-nos ter ido brincar naquela pista, que já não existirá senão nas nossas memórias, na próxima vez que voltarmos a Nouakchott…