Em setembro de 1976, Ramalho Eanes e Mário Soares aterravam em Lisboa, vindos dos Açores. Presidente da República e primeiro-ministro viajavam no mesmo avião militar, com os jornalistas que acompanharam a comitiva oficial que foi assistir à inauguração da Assembleia Legislativa Regional dos Açores, e ao aterrarem encontraram a pista em estado de sítio, cheia de carros de bombeiros, à espera do voo. Qualquer problema no avião ou em terra, relativa ao voo de Estado, tinha desencadeado aquela operação que assustou quem chegava.

Fernando Lima, então jornalista do Jornal de Notícias (da delegação de Lisboa) e alguns anos depois assessor de Cavaco Silva, vinha a bordo e lembra-se que, antes da aterragem, o avião ainda teve de dar uma voltas no ar, para fazer tempo. Acabaram por não saber o que se passou, para aquele aparato todo, até porque o avião acabou por aterrar sem problemas e os líderes políticos saíram sem sobressaltos. Mas recorda-se que no dia seguinte, o editorial de um jornal se referiu àquela como uma “viagem temerária”, “como quem diz que aquilo não devia ter acontecido”, afirma Lima. Com “aquilo” referia-se ao facto de Presidente e primeiro-ministro viajarem juntos.

Não há nenhuma lei ou norma escrita que o determine, mas manda o bom senso que os principais líderes do país não viajem num mesmo avião. Presidente da República e Presidente da Assembleia da República ou Presidente da República e primeiro-ministro, as entidades viajam separadas para evitar que, em caso de acidente aéreo, o país fique mergulhado numa crise institucional. Há um ano, durante a viagem a Paris, Marcelo e António Costa desafiaram esta regra implícita, numa viagem curta. Mas este sábado os dois seguiram em voos separados rumo a São Paulo, no Brasil, onde vão estar para o segundo momento das comemorações do 10 de junho.

O primeiro momento do 10 de junho foi no Porto, esta manhã, com a cerimónia militar e o discurso do Presidente. Depois disso, Marcelo Rebelo de Sousa embarcou num voo comercial para São Paulo. António Costa veio até Lisboa onde também apanhou um voo comercial com o mesmo destino. Separados, como no ano passado, quando também ambos seguiram para o 10 de junho (e mais uns dias junto da comunidade portuguesa) em Paris. Mas durante essa visita à comunidade portuguesa em Paris houve um momento onde isso não aconteceu.

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Ambos queriam ir ao cemitério militar português de Richebourg, onde estão enterrados soldados portugueses mortos na I Guerra Mundial, e a solução para percorrerem os cerca de 300 quilómetros até a região no norte de França foi irem juntos num C-295. O momento ficou até registado em fotografia, com o primeiro-ministro a chamar-lhe “voo histórico” e a publicar essa imagem nas redes sociais:

É uma situação pouco recomendável pelos problemas que pode levantar, em caso de acidente. Bem como também não deve acontecer o Presidente da Assembleia da República viajar com o chefe de Estado. E aqui os constrangimentos que daí podem vir até são mais diretos, já que de acordo com o artigo 132º da Constituição, “durante o impedimento temporário do Presidente da República, bem como durante a vagatura do cargo até tomar posse novo Presidente eleito, assumirá funções o Presidente da Assembleia da República”.

Manda a cautela que se evitem constrangimentos institucionais mais graves, mas nem sempre foi assim. Esta viagem aérea conjunta de Marcelo e Costa não foi inédita como se pode ver pelo relato de Fernando Lima, relativo a 76, apesar de ser muito rara. Houve uma outra situação do género, em 1980, quando Ramalho Eanes viajou no mesmo avião que o primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro, para assistirem ao funeral do Marechal Tito, Presidente da antiga Jugoslávia, tal como há um ano (no texto abaixo sobre a visita a Paris) recordou ao Observador uma fonte diplomática.

Coabitação: António, teremos sempre Paris…

Mesmo assim, as coisas mudaram muito desde então. Fernando Lima lembra que se viviam os primórdios da democracia e não só existia a mesmo sensibilidade para estas questões de organização do Estado, como principalmente “não existiam recursos” que pudessem envolver dois voos, um para o chefe de Estado, outro para o chefe do Governo.

Durante o mandato de Cavaco Silva em Belém não houve registo de voos conjuntos, nem no mandato de Mário Soares. E há sempre algumas situações em que tal poderia ocorrer, já quehá pelos menos duas situações em que primeiro-ministro e Presidente se deslocam para os mesmos eventos: nas cimeiras Iberoamericana e na da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Nessas situações, apesar de Presidente e primeiro-ministro se dirigirem para o mesmo sítio, vão em voos diferentes. Há um ano o que aconteceu acabou por resultar de uma situação de necessidade pontual de duas figuras de Estado que têm tido uma relação próxima e de muita cooperação, assumida pelas duas partes.