Ainda não passara meia hora de concerto e já Jamie Cullum andava num alvoroço. A entrada, ao ritmo acelerado do recente ‘Work of art’, tinha sido só o aviso. À segunda música, ‘When I get famous’, Jamie já estava em cima do piano, de onde voou num salto acrobático, voltou às teclas, sentou-se, levantou-se, tocou de pé, voltou a sentar-se, levantou-se de novo (aquela banqueta parecia que tinha bichos carpinteiros), bateu palmas, despiu o casaco, regressou ao piano, improvisou um piropo às “portuguese girls” no meio da canção (voltaria a elas mais tarde), continuou a saltitar pelo palco com o microfone na mão… Ok, cansado? A este ritmo, devia. Só que não. Jamie ainda só estava a aquecer. E os que (ainda) o ouviam sentados, perceberam que também não iriam ficar assim muito tempo.
“Olá Lisbon…Lisboáa! It’s good to be back!” Por mais que algumas vozes da assistência o tentassem corrigir, “Não é Lisboa, Jamie, é Oeiras…”, o artista britânico insistiu sempre na capital, até nos agradecimentos que não se cansou de fazer a noite toda. “Obrigaduuuuuu Lisboa!” Isso não lhe pareceu relevante. Estava radiante por voltar ao festival onde tocara pela última vez há quatro anos. E fez questão de envolver o público na sua própria festa, era só isso que lhe parecia importar. O aviso estava feito.
Não se deixem enganar pela formalidade do blaser clássico e da camisa preta de mister Jamie Cullum. Debaixo do fato escuro com que entrou em palco, respira um músico com o diabo no corpo. E na voz. E na ponta dos dedos. E na palma das mãos. E também naquele cabelo intencionalmente despenteado e na expressão de traquinas que, mesmo a poucas semanas de fazer 38 anos, não o larga. Um diabo que andou à solta na última noite de sábado – e não foi apenas pelo ritmo frenético com que encheu o palco do estádio municipal de Oeiras, no último dia do EDP Cool Jazz. Foi também pelo talento endiabrado com que brindou o público com melodias de jazz, blues e rock, que sabe cruzar com mestria, muitas delas de álbuns antigos como “Interlude” e “Momentum”, ou pela forma inesperada com que vai buscar sonoridades mais pop ou mesmo latinas ou cria novas versões de velhos clássicos.
E o que dizer quando Jamie se dividiu entre o piano e os instrumentos de percussão? Ou, como aconteceu na última noite, fez um exercício de beatboxing e arrancou sons das peças de madeira do imponente piano? Foi assim que interpretou uma versão de ‘Dont’ stop the music’. E houve mais surpresas ao longo das quase duas horas de Jamie ‘show’ Cullum – como as versões de ‘The wind cries Mary’, de Jimi Hendrix, ou ‘Shape of you’, de Ed Sheeran. Antes disso, Jamie Cullum já arrancara um sonoro coro do público com outros êxitos: ‘What a difference a day made’, marcado a ritmo de contrabaixo, foi um daqueles momentos mágicos em que o artista conseguiu a proeza de criar um ambiente intimista de clube de jazz em pleno estádio. Mas a festa ainda ia a meio.
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“Lisbon, we are old friends. So, we can sing together!” A esta altura, o endiabrado Jamie já saltara do palco para o meio do público. E não foi só para pedir mais um copo de cerveja, que lhe fez companhia ao lado do piano de onde saudava de quando em vez com um alegre “cheers” para o público. O certo é que ninguém resistiu ao cantor que, qual flautista dos contos dos irmãos Grimm, atraiu muitos dos milhares de fãs da assistência que o seguiram de volta ao palco, saltaram barreiras e ali ficaram, a dançar e a cantar, ocupando por completo a zona reservada, em ambiente de grande festa. Atrás de Jamie, a manager do artista e o resto do stafe dançavam na entrada do palco como se fosse uma pista de dança. Eles próprios seguiam o compasso de Jamie e da sua banda, que tocavam sem que alguém soubesse de antemão o alinhamento das músicas. E, quem apostou que ele seguiria a mesma set list do concerto da noite anterior, no Porto, saiu a perder. Houve surpresas e improvisos do primeiro ao último minuto. É das poucas garantias que Jamie Cullum pode dar nos seus concertos: nada é previsível.
“Lisbon, i don’t need to tell you what to do!!” A esta altura, já ninguém precisava de instruções, o público tinha entrado no ritmo, alinhava no improviso e não havia maneira de sair dele. A t-shirt (preta, claro) que Jamie usou na segunda metade do concerto dava o mote: nas costas lia-se “Paradise Guilty Parties”. Confere: Jamie conseguiu transformar um quase esgotado estádio numa festa só – e todos eram cúmplices. Entre recriações, originais e improvisos, ouviu-se ‘Everybody loves the sunshine‘, de Roy Ayers, ‘High and dry’, dos Radiohead ou velhos êxitos como ‘Everything you didn’t do‘ – que acabou a cantar com um cachecol de Portugal ao pescoço – entre outras músicas. E, mais uma vez, Jamie desafiava o público a cantar com ele: “Lisbon, i will improvise with you. It can be beautiful if it works!” E não é que resultou?
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A noite já ia longa e bem fresca, com o vento a soprar na direção do Parque dos Poetas, mas isso não travou o calor da festa. Nem mesmo quando Jamie decidiu acalmar um pouco os ânimos com a balada ‘All at sea’ – que compôs quando tinha 21 anos, lembrou ao público – já muito perto da despedida. Desde então, Jamie Cullum já lançou dezenas de discos, vendeu mais de dez milhões de cópias e prepara-se para lançar um novo álbum, de que ‘Work of art’ é o primeiro single e a música com que abriu a última noite do festival.
Ao fim de duas horas de música non stop, – ele tinha avisado antes: “don’t stop the music” – Jamie Cullum acabou a noite como terminou: em grande, um gigante com pouco mais de metro e meio de altura a encher um palco. Uma noite. Uma cidade inteira. Lisboa, Oeiras, não interessa. O menino prodígio do jazz-pop voltou ao palco para se despedir, primeiro com ‘Mixtape’, depois, sozinho – e já sem os excepcionais instrumentistas que o acompanharam a noite toda no saxofone, na guitarra, na bateria e na percussão. Sentado ao piano, deixou a promessa de um regresso em breve e fechou a noite com a balada ‘Gran Torino’. “Thank you! Obrigaduuuu Lisboa!”, gritou no final. Ora, Jamie, nós é que agradecemos. E sim, foi uma noite dos diabos.