Pepe Brix, fotógrafo documental português, é o autor deste artigo, oitavo da história “Este Verão Portugal é Mini”
Todos percebemos bem a velha sensação de que a nossa rua ninguém a conhece tão bem como nós. É provavelmente a maior fortuna alguma vez alcançada: a liberdade de crescer na rua, de aprender com os olhos, com os cheiros e com tudo o que as mãos alcançam, percebendo por fim que a sede de saltar mais um quintal ou de atravessar mais um quarteirão, que essa sede de chegar um bocado mais longe nunca sairá de nós e é apenas mais uma lufada de oxigénio para a fogueira que nos trás a verdadeira claridade e uma felicidade bem menos volátil.
Gosto de pensar que é apenas uma ilusão esta sensação que tenho de que as crianças são cada vez menos largadas na rua para poderem sentir e conhecer o cheiro da terra de onde crescem os frutos que os pais compram no supermercado. Mas o homem é um animal de hábitos e à medida que o progresso nos vai levando para uma sensação vacilante de conforto, onde em casa nada parece faltar, essa escola a céu aberto vai ficando cada vez mais longe e esquecida. Hoje, quando chegamos a um qualquer lugar e a liberdade de andar pela rua não é apenas uma desvanecida realidade, sabemos logo que esse lugar tem muitos outros princípios a cumprir antes de se entregar ao cómodo progresso, recolhendo o seu povo no conforto de casa. Foi precisamente o que senti no momento em que cheguei a Sagres pela primeira vez, o cheiro a liberdade.
O André Lang foi das primeiras pessoas que aí encontrei e é um espelho dessa liberdade. Enquanto comia lentamente uma sopa na praia e me mantinha focado nas vidas que veraneavam à minha volta e procurava a próxima história para fotografar, alguém me despertou a atenção no meio daquela calorosa confusão. O André preparava-se para voltar a entrar ao serviço na escola de surf onde trabalha. Mas o que me despertou a atenção não foi para onde ia, mas sim de onde vinha: “acabámos de vir das falésias, estivemos a fazer Cliff Diving”. O impacto de como suou quando disse aquilo com um sorriso estampado na cara era apenas o rastilho para tudo o que viria a acontecer a seguir.
Não é de Sagres mas é como se fosse e conhece toda a costa circundante como a palma das suas mãos. André cresceu explorando-a e fazendo dela o seu quintal. Não se lembra de se ter apaixonado pelo Mar pois era pequeno demais para poder guardar ainda essa memória. Mas uma coisa é certa, alimentou essa paixão sempre que a sua sede de saltar mais um quintal o impelia para o vasto oceano. O surf foi sempre um dos elos mais fortes mas o mar é imenso e a vontade de chegar mais longe levou-o a explorar as águas algarvias de muitas outras formas. As imponentes falésias vicentinas guardam as melhores vistas para o atlântico e quando se elevam a mais de vinde metros altura, viram santuários para aqueles que depositam a sua fé na adrenalina.
Para os que não estão familiarizados com o termo, Cliff Diving é um desporto radical que consiste na subida de uma falésia para depois saltar para o mar, tentando as mais inacreditáveis acrobacias. Embora esta seja uma atividade da qual surgiram competições de altíssimo nível, André, o seu irmão Iúri e os amigos Pedro e Annika fazem-no por puro prazer.
A sua sede de explorar o território que o rodeia, de aproveitar cada murmuro de verão e de seguir costa fora com os amigos, incentivando-os à loucura sem que se esqueçam os cuidados que nunca podem ser esquecidos, inspirou-me de tal forma que me senti tentado a acompanhá-los de tão perto quanto possível, trepando com eles as rochas que mais gostam de saltar.
Por vezes, nas suas rotinas, o Cliff Diving surge em pequenos momentos do dia quando há uma pausa no trabalho. Hoje é dia de folga e nada mais lhes ocupará a mente, a não ser o cheiro do prazer de trepar as falésias de onde vão saltar.
Encontramo-nos todos pela manhã na praia do Barranco e a partir desse momento a única coisa que tive de fazer foi segui-los enquanto subiam e desciam pelas escarpas à procura dos melhores saltos.
André é o mais velho e o mais experiente (salta desde os 15 anos) e é ele que impõe o ritmo ao grupo. Estar no cimo de uma escarpa que se eleva a algumas dezenas de metros do nível do mar não basta. André esgueira-se por entre as pedras soltas do chão, agarrando-se à frágil vegetação existente para alcançar uma ponta que o intriga. Enquanto isso, Iúri e Pedro descem confiantes por uma ladeira para inspecionar a outra ponta. Por fim, das escarpas que guardam a praia do Barranco avistaram a rocha que querem saltar. A rocha escolhida, sem acesso por terra, obriga-os a voltar à praia para apanhar as pranchas. É com elas que vão remar até à base da encosta para depois a treparem descalços e saltarem finalmente. Íngreme como um arranha-céus e de uma formação geológica altamente irregular, seguem destemidos e focados até alcançar o topo. Com os pés firmes lá em cima fica cumprida a primeira meta, e o coração já bate a um ritmo desconcertante. Seguem-se alguns minutos de silêncio para contemplar a vista e pensar o salto. Um salto de alguns segundos que parece durar uma eternidade. Uma pequena eternidade durante a qual tenho a impressão que até as ondas que rebentam nas rochas se silenciam e os meus olhos não se conseguem distrair com mais nada, até que finalmente os pés tocam na água e o saltador emerge eufórico gritando alto numa descarga de adrenalina que partilha com todos os que ali estão presentes.
A rocha que acabam de saltar oferece grandes dificuldades na sua subida mas o gozo de a saltar é de tal forma compensador que não resistem em repetir o feito antes de rumarem a um novo lugar.
O próximo salto é duma rocha por cima da Gruta dos Amores, não muito longe do lugar onde estávamos. Entretanto chegou a embarcação de apoio antecipadamente agendada para me dar apoio nas fotografias e seguimos todos juntos até à Gruta dos Amores.
O processo repete-se. A subida, os silêncios e os saltos e a sede de saltar sempre de mais alto. Retomamos a praia do Barranco e fizemos uma pausa para almoço para amainar essa energia efervescente e recordar os momentos altos da manhã.
Depois do almoço fizemo-nos novamente à estrada. André quer superar os saltos feitos de manhã. Há uma escarpa que lhe é familiar e que lhe mora permanentemente na cabeça pela sua imponência, pela sua beleza avassaladora e, acima de tudo, pela sua intimidante altitude. A concorrida Ponta da Piedade, em Lagos, é o próximo destino. Na carrinha da frente seguiu o André, o Iúri, o Pedro e a Annika. Atrás, no clássico de 1976, seguia eu e o meu amigo Henrique Ramos, incansável na assistência ao trabalho.
Chegámos e estudámos todos muito bem os lugares a saltar. Não resisti em acompanhá-los de perto uma vez mais. Deixei-me levar pelo seu entusiasmo e trepei pelas rochas delicadas até encontrar o meu lugar. Num primeiro momento saltaram todos de uma primeira escarpa mais baixa. Os pescadores que prestam serviços turísticos com as suas embarcações naquela zona foram logo contagiados com a energia dos quatro aventureiros e ficaram incrédulos com o que viram, aplaudindo e assobiando os saltos que acabavam de ver.
Por fim André propõe um último salto, o derradeiro salto. Um salto que guarda com respeito e que fará sozinho enquanto os outros ficam estrategicamente distribuídos, controlando o tráfego de embarcações e garantindo que nenhuma embarcação passa no momento do salto.
Quando André chega finalmente ao topo da falésia de onde ia saltar ficámos todos sem palavras. Nem o fato azul de surf que leva vestido torna evidente o seu posicionamento na parede gigante. Nesse momento foi como se a adrenalina que lhe corria nas veias passasse diretamente para todos nós e ninguém conseguiu descolar os olhos do André. Nenhuma embarcação à vista, tudo a postos. André lança-se da escarpa em direção ao mar e um novo silêncio invade a encosta até ao momento em que chega finalmente à água. Mais um salto que todos nós vamos guardar na memória e que nos deixa vontade de viver mais. Porque afinal ninguém nos para.
Finalmente a alegria estampada na cara de todos era um misto de felicidade por todos os momentos que viveram juntos em mais um dia de aventuras e de alívio por tudo ter corrido como esperavam, sem incidentes. Foi mais um dia que lhes ficará na memória. Por isso carregámos a caixa térmica até ao topo de um dos montes da Ponta da Piedade. Abrimos as merecidas Minis e celebrámos a vida com vista privilegiada para esse Mar que André sente e conhece como se fosse o seu quintal.
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