Há para o menino e para a menina. E vai continuar a haver. Depois de uma análise aos conteúdos dos livros de exercícios que ficaram no centro de uma polémica, a Porto Editora concluiu que não há discriminação e, num relatório do conselho editorial, divulgado esta terça-feira, apresenta argumentos para desmontar as objeções apresentadas pela Comissão para Igualdade de Género, ponto por ponto, e retomar a venda dos polémicos livros.

Mas antes disso faz questão de mencionar que a edição dos livros ficou a cargo de duas mulheres, os “conteúdos foram concebidos por uma educadora de infância, mulher”, “a sua execução foi acompanhada por uma coordenadora editorial, mulher, e a parte gráfica ficou a cargo de três mulheres: uma designer e duas ilustradoras”.

“Obviamente que o objetivo de todas estas mulheres com estas publicações não foi nem reforçar a segregação de género; nem reforçar estereótipos de género e, muito menos, diferenciar o grau de dificuldade das atividades, apresentando as dos meninos mais complexas do que as das meninas, como se pode verificar através da análise objetiva” dos livros, lê-se no relatório.

Sobre a segregação de género

A Comissão para a Igualdade de Género (CIG) defendeu que, pelo facto de haver um bloco para rapazes e outro para raparigas, ficam vedados a elas os exercícios deles e vice-versa. E acrescenta que o bloco dos rapazes “não prevê interação com as meninas e vice-versa”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A editora refuta, argumentando que “a compra destes produtos é livre” e que “os blocos dos rapazes estão também disponíveis para serem comprados pelas meninas e vice-versa”. Acrescenta ainda a editora que já existem no mercado “blocos únicos, indiferenciados para meninos e meninas, garantindo diversidade de escolha e liberdade de opção de pais e crianças”.

Diz ainda a Porto Editora que “é errado afirmar que, nos blocos, não existe interação entre meninos e meninas”, exemplificando com “as atividades 13 e 14 do bloco dos meninos em que surgem crianças de ambos os sexos”.

À esquerda o exercício 13 e à direita o 14, onde se pode perceber que há meninas e meninos juntos

Sobre os estereótipos de género

A CIG considera que os livros reforçam os estereótipos de género, pelas ilustrações escolhidas num e noutro casos: desde a escolha das cores rosa para meninas e azul para rapazes, à escolha de atividades mais exteriores para os rapazes e interiores para as meninas, passando ainda pela imagem de maior “passividade/recato” das meninas por oposição à imagem de “ação e movimento físico” dos rapazes.

Também este ponto é refutado pela Porto Editora. Embora reconhecendo que “há uma pequena diferença no número de atividades de exterior entre o bloco destinado aos rapazes (cerca de 19) e o das meninas (cerca de 15)”, sublinha que na maioria dos casos essa diferença nem se coloca.

Por que razão é que bolas, carros e berlindes são elementos mais pragmáticos e de realização no espaço exterior do que bonecas e peluches? As crianças não brincam com bonecas e peluches no exterior? Não brincam com carros, bolas e berlindes no interior? Além disso, estes elementos não surgem exclusivamente associados a um dos géneros. Existem bolas no bloco das meninas e peluches no dos meninos.”

E pega noutro exemplo apresentado pela CIG: “Por que razão se considera que a primeira atividade do livro dirigido às meninas apresenta imagens ligadas a atividades domésticas? Leite, manteiga, iogurte, alface e maçã são alimentos. Porque não se considera que se relacionam com a alimentação?”

No relatório recorda-se, sem citar, alguns dos exemplos dados pelo humorista Ricardo Araújo Pereira para demonstrar que “há várias situações que contrariam a análise feita pela CIG”. “Na atividade 3, enquanto a Sara vai a um museu, o Pedro está simplesmente na rua a olhar para um prédio; na atividade 4, a Marta gosta de ler (atividade mais complexa), enquanto o Guilherme brinca com carrinhos.”

Na atividade 4, no livro das meninas a Marta gosta de ler (atividade mais complexa). Já no livro dos meninos, o Guilherme brinca com carrinhos

Uma observação integral de ambos os blocos permite facilmente aferir que são muito semelhantes na maioria das atividades, desde logo nos enunciados, distinguindo-se apenas pelo traço das ilustrações.”

A editora acha ainda “muito exagerado considerar que a realização deste tipo de blocos de atividades de alguma forma condicione, no futuro, as opções pessoais e profissionais das crianças”.

Grau de dificuldade das atividades

A Comissão refere que há também diferenças no grau de dificuldade entre o livros dos rapazes e o das meninas. De acordo com a análise feita pela CIG, há seis exercícios mais difíceis no bloco dos rapazes, contra três mais exigentes no das meninas. O que “poderá reforçar a ideia de que há desigualdade nas capacidades cognitivas” entre os géneros.

Também neste ponto a editora discorda. “É discutível a análise feita pela CIG.”

E apresenta uma conclusão diferente, com base na auscultação da “maior parte dos educadores e professores” consultados: “10 atividades de resolução mais complexa no livro destinado às meninas e sete as atividades de resolução mais complexa no livro destinado aos rapazes, sendo que as restantes 47 possuem o mesmo grau de dificuldade”.

“Assumindo a subjetividade que possa existir de ambas as partes nesta classificação e até considerando que nas duas análises (da Porto Editora e da CIG) existe uma diferença de apenas três atividades, quando comparando a dificuldade entre os dois blocos, discordamos, em absoluto, que tal facto, num universo de 64 atividades, reforce a ideia de que há desigualdade nas capacidades cognitivas de meninos e meninas.”

O Observador questionou a Porto Editora sobre o número de professores e educadores consultados, mas fonte oficial escusou-se a responder. “O relatório vale pela análise que apresenta, não pelo género, etnia, ideologia ou qualquer outro ‘parâmetro’ relativo às pessoas envolvidas, incluindo a respetiva quantidade.”

Livros estão de novo à venda e Comissão para a Igualdade de Género “lamenta”

Com base neste relatório, em que conclui não haver “qualquer discriminação”, a Porto Editora voltou a pôr à venda os livros de atividades para rapazes e meninas, que tinha anteriormente decidido suspender na sequência de fortes críticas de discriminação e de um parecer da Comissão para a Igualdade de Género (CIG) que elencava os elementos que considerava serem promotores de segregação de género, de estereótipos de género e de diferenciação por sexo do grau de dificuldade das atividades, recomendando a retirada dos mesmos.

Porto Editora volta a colocar à venda livros de atividades para rapazes e raparigas

“Tendo-se concretizado os objetivos pretendidos e comprovado a não existência de qualquer discriminação, põe-se fim à suspensão da venda daqueles livros no quadro do exercício pleno da liberdade de expressão da autora e das ilustradoras, bem como da liberdade de edição, respeitando estes valores fundamentais”, afirma a empresa.

Questionada sobre a decisão da Porto Editora, a presidente da CIG diz que a Comissão “lamenta esta decisão porque, como ficou claro no nosso Parecer Técnico de 23 de Agosto, as imagens veiculadas por este Blocos são reprodutoras de estereótipos de género discriminatórios, o que tem particular importância quando o público alvo são crianças entre os 4 e os 6 anos”.

Mas acrescenta que a Comissão está sempre disponível “para trabalhar com todas as instituições em prol de uma sociedade em que mulheres e homens exercem uma cidadania plena” e que se mantém disponível “para colaborar com a Porto Editora no desenvolvimento de conteúdos que fomentem uma educação promotora de igualdade de oportunidades e do desenvolvimento das diferentes capacidades e talentos de todas as crianças”.

Revelado parecer que levou à retirada dos livros da Porto Editora: “Reforçam a segregação de género”

No final de agosto, a CIG recomendou à Porto Editora que retirasse do mercado os dois livros de atividades, um com capa azul para os rapazes e o outro em cor de rosa para as meninas, por terem exercícios distintos consoantes o género. A Porto Editora acabou por seguir a recomendação mas, no relatório agora divulgado, agradece o parecer da CIG, sublinhando que o mesmo não consubstancia “matéria objetiva e relevante que justifique a sua primeira recomendação de retirada dos livros dos pontos de venda”. “As liberdades artística e criativa da autora, ilustradoras e editora não podem ser condicionadas por questões de gosto, no mínimo, subjetivas e discutíveis”, remata a editora.