A existência de uma unidade nacional em Portugal — ao contrário do que acontece em Espanha –, a necessidade de prestigiar a Justiça, para evitar os casos que se arrastam no tempo, e as garantias de segurança que o Estado deve dar aos cidadãos foram as principais linhas do discurso anual do Presidente da República nos Paços do Concelho de Lisboa, para assinalar as comemorações da implantação da República. Num discurso de balanço entre o que correu bem e o que correu mal ao longo do ano, afirmou aquilo que entende serem os vários aspetos de uma democracia que, no fundo, é o que se comemora no 5 de outubro. De forma mais crítica, três meses depois da tragédia dos fogos de Pedrógão Grande e Castanheira de Pera, onde morreram 64 pessoas como vítimas do incêndio, Marcelo Rebelo de Sousa apelou a “uma segurança interna que seja encarada como penhor de tranquilidade e previsibilidade por parte dos cidadãos no exercício dos seus direitos, sempre e, em particular, em momentos mais críticos.

[Que] tudo façamos para que as portuguesas e os portugueses saibam que as suas vidas e bens estarão mais seguros”, reforçava mais adiante, no discurso.

O Presidente da República, que focou grande parte do discurso em questões de soberania, pediu “uma Justiça que veja o seu estatuto devidamente prestigiado e se revele capaz de resolver os litígios em horizonte comparável ao dos parceiros europeus”. Não é difícil vislubrar aqui uma crítica às demoras nos casos que envolvem José Sócrates, o mais mediático de todos. E ainda reforçaria que o sistema de Justiça deve trabalhar para que a “inocência ou culpabilidade” não seja “um novelo interminável”.

Do ponto de vista político, talvez por o PSD estar a mudar de ciclo, Marcelo regressaria ao apelo que marcou o início do seu mandato. Pediu aos políticos que tivessem “grandeza de alma para fazer convergências no verdadeiramente essencial”.

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Por contraponto a estes apelos que podem ser vistos como críticos, Marcelo Rebelo de Sousa enalteceu o facto de Portugal ser um Estado nação sem tensões separatistas — no contexto da crise na Catalunha –, ao falar de “uma Democracia assente em antiga e sólida Unidade Nacional, razão de legítimo orgulho de todos nós”.

Se há meses tinha afirmado que depois das autárquicas se iniciava um novo ciclo, agora apela que se veja para além do ciclo político. Rebelo de Sousa gostava de ver uma democracia com “protagonistas capazes de olhar para o médio e o longo prazo, ultrapassando o mero apelo dos sucessivos atos eleitorais. Sendo certo que não há sucessos eternos nem revezes definitivos”. Um aviso para o Governo, para quem a bonança pode não durar sempre.

Para Marcelo Rebelo de Sousa, dias depois das eleições autárquicas, “uma democracia política” sã significa ter “um poder local forte e próximo das pessoas”. O Presidente elogiou a descida da abstenção, uma vez que tinha feito um pelo quase violento ao voto antes de domingo passado: “As eleições de há quatro dias devem ser encaradas com apreço, olhando às centena de milhar de candidatos e à redução do nível de abstenção. Os portugueses entenderam a importância do seu envolvimento cívico, bem como a urgência de começar a inverter um sintoma de aparente desinteresse pela coisa pública.”

Como um dos temas da campanha eleitoral recente passou pela polémica dos ciganos levantada pelo candidato do PSD em Loures, o Presidente deixou também a sua opinião sobre o assunto, de forma mais alargada: “Democracia política, sobretudo, com garantia dos direitos de todos. Sem discriminações de qualquer espécie, do sexo à raça, da idade à condição social, da situação física à orgânica ou atividade territorial ou socio-profissional.”

Mas para o Presidente, não apenas a estes aspetos se resume a democracia política. Não se esgota nas áreas e soberania e deve chegar “à economia, à sociedade, à cultura. O que impõe, desde logo, conjugação entre vitalidade económica, equilíbrio financeiro e preocupação social, condições para a salvaguarda da liberdade integral, não permitindo que as desigualdades ou as injustiças a esvaziem ou inviabilizem.”

O compromisso pela independência financeira

Numa data que serve para “um balanço do passado” e assumir “um compromisso com futuro”, Marcelo Rebelo de Sousa quis fazer o “balanço do que, no último ano, construiu ou fortaleceu a democracia e do que a corroeu ou enfraqueceu”. Neste domínio, falou sobretudo para o Governo: “Para que não esmoreçamos no percurso já feito e pugnemos por maior independência financeira, por maior criação de riqueza e de emprego, por mais justa distribuição do rendimento, por mais eficaz e, por isso, determinado mas realista combate à pobreza, às discriminações, às intolerâncias e segregações”.

O Presidente da República fez votos para que “a crise financeira e económica não regresse mais, que a educação – hoje bem presente neste dia especial para os professores – como a saúde e a segurança social não cavam fossos inaceitáveis”. Uma referência especial ao Dia do Professor, que também se comemora a 5 de outubro, e uma palavra — porventura involuntária — aos professores que se manifestavam entre as pessoas que assistiam à cerimónia.

Mais uma vez, referiu uma constante das suas intervenções, que tem a ver com a necessidade de haver alternativas políticas entre o Governo e a oposição, ao dizer que “os cidadãos dispõem de vários caminhos de escolha – sabendo que a existência de alternativa quanto à governação é sempre preferível às ambiguidades diluidoras, e que só reforçam os radicalismos anti-sistémicos –, mas que os seus responsáveis políticos e sociais têm a grandeza de alma para fazer convergências no verdadeiramente essencial mantendo as frontais e salutares divergências naquilo que o não é.”

“Eu acredito que somos capazes deste exercício de humildade cívica. De afirmar êxitos, sem complexos ou arrogâncias. De confessar fracassos, sem temores ou inibições. E de assumir que, no futuro, teremos de ser igualmente perseverantes no que fizemos de certo, e radicalmente melhores no que fizemos de errado ou insuficiente, ou, pura e simplesmente, não fizemos”, disse ainda o Presidente.