Matemática simples: o despacho de acusação da Operação Marquês tem 3908 páginas e a lei consagra à defesa 20 dias para analisar o documento e requerer, se assim entender, a abertura de instrução. Em teoria, isso significa que, por dia, um advogado teria de varrer quase 195 páginas e meia só para conseguir chegar ao final do despacho antes de esgotar os 20 dias — e isto sem contar com o tempo necessário para produzir o requerimento de abertura de instrução.

Na prática, nada é assim tão simples. De qualquer forma, pouco importa: a lei impõe um “limite máximo” de 50 dias — corridos, não úteis — para os advogados encontrarem falhas na acusação e requererem esse derradeiro passo antes do julgamento. É tempo que baste para essa tarefa? “Poderá não ser tempo suficiente”, diz António Ventinhas, presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP). “Não sei se isso não atenta contra o direito fundamental de defesa”, acrescenta a antiga bastonária da Ordem dos Advogados, Elina Fraga.

Primeiro, aquilo que diz a lei. “A abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento”, por arguidos, advogados e assistentes envolvidos no processo, lê-se no Código Processo Penal (artigo 287). Esse requerimento “não está sujeito a formalidades especiais”, mas tem pelo menos de deixar claras as “razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação”, tal como, “sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar”.

Os próximos passos da Operação Marquês

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O número de testemunhas está limitado às 20 pessoas por arguido mas o que importa, para o caso, é que os prazos só podem ser alargados por mais 30 dias, além dos 20 iniciais. Em que casos é que isso pode ser feito? O artigo 107 explica: “Quando o procedimento se revelar de excecional complexidade (…), o juiz, a requerimento do Ministério Público, do assistente, do arguido ou das partes civis, pode prorrogar os prazos (…) até ao limite máximo de 30 dias“. Ou seja, o alargamento dos prazos para requerer a abertura de instrução depende sempre de validação por um juiz.

Mesmo com 50 dias, esse prazo “poderá não ser suficiente” para as equipas de defesa analisarem um documento com quase 4000 páginas, como acontece com o despacho de acusação da Operação Marquês. Quem o diz é António Ventinhas, presidente do SMMP, que, em declarações ao Observador, sublinha ainda outra ideia: “há muito tempo” que os advogados de defesa “vão tendo acesso ao processo”.

Cai o segredo de Justiça interno. Sócrates vai ter acesso a parte do processo

Mais concretamente, há mais de dois anos, desde setembro de 2015. Foi nesse momento que o segredo de justiça caiu. A partir daí, os advogados de defesa — assim como os assistentes do processo — passaram a poder acompanhar documentos constantes do processo e até ao resultado das inquirições conduzidas pela equipa dirigida por Rosário Teixeira.

Pormenor: os prazos para que seja requerida a abertura de instrução só começam a contar a partir do momento em que o último dos arguidos acusados seja notificado desse despacho. Ainda que isso possa dilatar os 20 dias — ou, no máximo, os 50 –, a antiga bastonária da Ordem dos Advogados levanta dúvidas sobre a legalidade dos prazos em vigor. “Eu não sei se isso não atenta contra o direito fundamental de defesa que está consagrado na Constituição”, disse Elina Fraga na RTP, numa análise às primeiras informações sobre a acusação contra José Sócrates, Ricardo Salgado e outros 26 arguidos (num rol onde que também conta com nomes como os de Henrique Granadeiro e Zeinal Bava, antigos homens fortes da Portugal Telecom).

A antiga representante dos advogados sublinha ainda que, na fase processual que agora se deverá seguir, a de instrução, “têm de ser asseguradas aos arguidos, por pouca simpatia que nos mereçam, todas as garantias de defesa”. E considera que essas garantias “saem logo beliscadas com o prazo” disponível para analisar o “monstro” em que se tornou a Operação Marquês. Como é que um advogado, em tão poucos dias, pode “ser confrontado com uma acusação que tem 4000 páginas?”, questiona-se Elina Fraga.

Quatro anos para criar “um monstro”

Até que a acusação fosse apresentada passaram mais de quatro anos de investigação, foram ouvidas mais de 200 testemunhas e realizadas outras tantas buscas, segundo o comunicado divulgado pela Procuradoria-geral da República. O processo poderá, no entanto, ter ainda muito caminho para percorrer. O presidente do SMMP admite que, “provavelmente, até trânsito em julgado irá decorrer mais tempo do que aquele que decorreu até agora — é o que nos diz a experiência de processos anteriores”, recorda. Para António Ventinhas, não foi, no entanto, tempo a mais.

“O despacho fala por si, estamos a falar de processo com uma acusação bastante extensa, foram feitas muitas diligências de investigação, os factos descritos complexos” e, por isso, o tempo da investigação “está dentro de um prazo bastante aceitável, considerando também o número de arguidos e a ramificação internacional” do processo, defende o procurador.

Elina Fraga tem outra leitura do tempo que passou. A ex-bastonária da Ordem dos Advogados critica o “monstro” processual que se criou nos anos de investigação e defende que “todos estes processos podiam ter sido desapensados [separados e dado lugar a processos independentes], podia ter sido mais célere a investigação criminal se não se quisesse, como se quis, condensar tudo num só processo”. A opção do Ministério Público foi a de manter tudo num único processo e isso, defende, deu lugar à “criação de um mostro que está aqui à vista”.