Os incêndios que este domingo e segunda-feira mataram pelo menos 42 pessoas na região norte e centro do país, apenas quatro meses depois de os fogos de Pedrógão Grande terem tirado a vida a outras 65, dominaram o debate quinzenal desta quarta-feira. A demissão da ministra da Administração Interna, formalizada esta manhã, quase passou despercebida, com os partidos da direita a centrarem a discussão nas “falhas” comprovadas do Estado que servem de base à moção de censura ao Governo que se prepararam para aprovar. Se o PSD não conseguiu pôr Costa a lançar uma moção de confiança ao Parlamento, conseguiu pô-lo a fazer o pedido de desculpas que não tinha feito — mas só “enquanto cidadão”.

À esquerda, pediu-se mudança e, consequentemente, mais dinheiro para o fazer. Também nisso António Costa mostrou abertura. E o PS admitiu mesmo mexer no Orçamento do Estado, na especialidade, para dar mais dinheiro à reforma das florestas. Se o Governo está disposto a fazer aumentar o défice em prol disso, como pede o PCP, isso já é outra história.

Os recuos de António Costa

O pedido de desculpas e o peso na consciência. Demorou, chegou, mas só “enquanto cidadão”. O líder parlamentar do PSD, Hugo Soares, tinha desafiado António Costa a dizer claramente se pedia desculpas aos portugueses, e a resposta pronta de Costa esvaziou logo o argumento da direita. “Se quer ouvir um pedido de desculpas, eu peço, e se não o fiz antes não foi por sentir um menor peso na minha consciência”, disse. Mas depois deu um pequeno passo atrás: o pedido de desculpas era mais enquanto cidadão do que enquanto primeiro-ministro. “Reservo a palavra desculpa para a minha vida privada, enquanto primeiro-ministro prefiro responsabilidade. E sempre disse que assumiria todas as responsabilidades. Assumo as minhas responsabilidades como primeiro-ministro e peço sempre desculpa como cidadão”, disse.

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Aproveitando a maré, Costa recuou mais um pouco entrando quase em diálogo com Marcelo Rebelo de Sousa, que, no discurso duro que fez terça-feira à noite usou várias vezes as palavras “desculpa” e “peso na consciência” que contrastaram largamente com o facto de o primeiro-ministro não as ter usado uma única vez durante todo o processo. Costa corrigiria agora a mão. “Tenho a certeza que quem quer que fosse que estivesse nas minhas funções não teria outra coisa senão um enorme peso na consciência. E esse peso nunca vai passar. Viverei com este peso dia consciência até ao fim da minha vida”, disse, referindo também outros momentos em que, quando era ministro da Administração Interna, teve de lidar com outras mortes.

Indemnizações às vítimas. O Governo e o PS resistiram sempre à criação de um mecanismo extrajudicial para indemnizar as vítimas de Pedrógão Grande, acelerando o processo. O PSD tinha até uma proposta para que as indemnizações fossem tratadas de forma direta pelo Estado, sem passar pelos trâmites judiciais, para que fossem concedidas num prazo de seis meses. E não estava isolado, já que a esquerda assinava por baixo, numa coligação parlamentar pouco habitual. Mas o PCP acabou por passar para o lado do PS que defendia que essa agilização de indemnizações fosse apenas possível em casos onde houvesse responsabilidade do Estado.

No debate, Hugo Soares assinalou que Carlos César, na terça-feira, disse o contrário do que Costa acabou por fazer um dia depois. E isto porque antes de seguir para a Assembleia da República, onde tinha o debate quinzenal, o primeiro-ministro teve uma reunião com os representantes das famílias das vítimas e mostrou-se “disponível para agilizar a assunção das responsabilidades”. Depois desse encontro, a Associação dos Familiares das Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande revelou que “o Governo decidiu assumir as suas responsabilidades relativamente às vítimas mortais de Pedrógão Grande. O Governo pretende assumir um mecanismo extrajudicial de forma a compensar os danos pelas vítimas mortais, que será melhor apurado a partir de quinta-feira”, disse a presidente da Associação.

Demissão da ministra. Desde junho que António Costa arranjou uma espécie de mantra para defender a ministra da Administração Interna dos pedidos de demissão que se seguiram ao incêndio de Pedrógão Grande. Repetiu-os novamente, quando foi conhecido o relatório da Comissão Técnica Independente sobre aquela tragédia e agora depois dos incêndios do fim-de-semana. “É tempo de ação e não de demissão”. Chegou até a dizer que afastar a ministra seria “uma decisão infantil”. Mas o mantra não resistiu à declaração ao país do Presidente da República desta terça-feira. Durante a noite, a ministra pediu, segundo o gabinete do primeiro-ministro, a demissão e em termos que Costa “não podia recusar”. O mesmo gabinete divulgou também uma carta da ex-ministra onde consta que Constança Urbano de Sousa já tinha pedido a demissão em junho, com Costa a pedir-lhe que se mantivesse no cargo recusando ir “pelo caminho mais fácil”.

Mas agora a ministra considerou não ter condições políticas para se manter, alegando mesmo que continuar punha “em causa” a sua “dignidade pessoal”. No debate, o primeiro-ministro explicou afinal que a ideia seria manter Constança Urbano de Sousa até sábado, mas que não foi possível: “Não podia esperar pelo próximo sábado [dia de Conselho de Ministros extraordinário] depois do que aconteceu”. E que afinal só não foi demitida antes para “não perturbar o Verão e esperar que fossem apuradas as responsabilidades”. Garantiu que a reforma que será debatida no Conselho de Ministros de dia 21, já com o novo ministro da Administração Interna em funções, foi ainda preparada pela ex-ministra. E ainda que da um exemplo interno no Governo, aos outros ministros: “Quando estiverem em dificuldade, eu por mim, não lavo as mãos, dou a cara, assumo responsabilidade e apoio”.

Abrir os cordões à bolsa. Todos pediram mais dinheiro para a reforma das florestas, sobretudo à esquerda, e Costa foi obrigado a admitir que sim — depois de o PS já se ter mostrado disponível para o fazer em sede de Orçamento do Estado na especialidade. Mas o primeiro-ministro viu-se forçado a explicar o porquê de não ter ido mais longe na proposta inicial do OE 2018: entre o relatório sobre os fogos de Pedrógão apresentado no dia 12 de outubro e o Orçamento do Estado apresentado no dia 13, “não havia condições para introduzir as medidas propostas”. Mas agora, no debate, Costa diz que espera “executar ao longo do ano de 2018 aquilo que for possível e desejável”. Para já, o que está previsto é um reforço das verbas para os sapadores florestais num total de 20 milhões de euros, e 131 milhões de euros para investimento durante o ano de 2018 na prevenção dos fogos.

O PCP, contudo, quer ir mais longe e deixa um desafio ao primeiro-ministro: “Está na disposição de ainda na fase de debate do Orçamento de Estado alterar os compromissos da meta do défice para investir mais na floresta?”, perguntou Jerónimo de Sousa, dizendo que isso seria a “melhor homenagem aos que perderam a vida”. Antes já João Oliveira tinha lançado o mesmo desafio. Mas quanto a isso, Costa diz que as metas não têm te ser comprometidas. E cita Mário Centeno: “Não será o nosso empenho na consolidação orçamental que frustrará o que é prioritário para a floresta — isso posso aqui hoje assegurar”.

Os desafios lançados

Moção de confiança. PSD pede a demissão de Costa e desafia-o a apresentar uma moção de confiança ao Parlamento. Passos Coelho já tinha feito o primeiro take deste ato, ao dizer ao final da manhã que o Governo não merecia uma segunda oportunidade e que não tinha condições para ficar em funções. No debate desta tarde foi a vez de o líder parlamentar do PSD dar gás a essa linha. Hugo Soares, depois de ter dito que Costa “já não estava ali a fazer nada”, instou-o a provar se ainda tinha a confiança do Parlamento. “Tem ou não coragem para apresentar a este Parlamento uma moção de confiança? A floresta é a mesma de há cinco anos, o que falhou foi a vossa Proteção Civil, por isso traga a esta Câmara uma moção de confiança”, disse.

Mas a resposta de Costa esvaziou logo a intenção do PSD, dizendo que a votação de uma moção de censura (que o CDS já anunciou que vai ser votada na próxima terça-feira) tem o mesmo efeito prático que a votação de uma moção de confiança, por antítese: ou a queda do Governo, se for aprovada, ou a confirmação da confiança no Governo, se for chumbada. E ainda provocou o PSD com o facto de o CDS, “por mérito”, se ter antecipado (ou “ultrapassado”) aos antigos parceiros de coligação. Costa explicaria também porque é que não avança com uma moção de confiança: porque as “moções de confiança só as apresenta quem está inseguro”. E não é esse o caso. Na verdade, Bloco de Esquerda e PCP mostraram-se firmes na defesa do Governo no que à moção de censura diz respeito, com o PCP a apelidar de a proposta de mera manobra parlamentar, e com o BE a ir mais longe nos insultos à direita: “A moção de censura apresentada pelo CDS no primeiro dia de luto nacional é grotesco, e a exigência do PSD hoje de uma moção de confiança é de um ridículo intolerável”, disse Catarina Martins.

Recomendações do relatório técnico. Costa cola o PSD ao relatório em jeito de desafio para consensos. O trunfo de Costa em todo o debate foi colar o PSD e o CDS à necessidade de concretizar medidas para a reforma das florestas, para tirar do papel aquelas que foram as recomendações deixadas pelos peritos da comissão técnica independente e pelo professor Xavier Viegas, que enumeram nos relatórios o que devia ter sido feito e não foi para evitar o pior nos incêndios deste ano. “O que aconteceu não é normal e é inaceitável. N ão nos podemos conformar, mas convém não confundir o realismo com a aceitação da realidade”, disse Costa a dada altura para desafiar também o CDS para a necessidade de concretizar em medidas, e “tirar do papel as recomendações e conclusões” da comissão independente. Além de que, lembrou Costa várias vezes em jeito de provocação, foi o PPD/PSD que propôs a criação daquela comissão — logo, terá de se vincular às recomendações que dela constam. “Espero que os que concordaram com a comissão também estejam de acordo em pôr em pratica” as suas conclusões, disse.

Neste âmbito, o Bloco de Esquerda foi muito claro, com Catarina Martins a defender sobretudo a nomeação de outros responsáveis para a Proteção Civil, cuja impreparação do comando e a falta de hierarquia firme era uma das falhas mais apontadas nos relatórios. “Se tudo falha é porque tudo deve ser diferente, incluindo a Proteção Civil”, disse a coordenadora do BE.