A Cervejaria Ramiro tem pessoas à porta por volta das onze da manhã. Por vezes antes. As portas abrem ao meio-dia e a partir daí começa o cenário comum para quem passa regularmente pelo número 1-H da Almirante Reis: aquele pátio forçado no meio da rua torna-se numa sala de espera ao ar livre, com self-service de imperiais durante as doze horas seguintes.
É o dia-a-dia da Cervejaria, a espera é menor do que o número de pessoas sugere e há um sistema de chamadas muito bem montado. A maioria da clientela nos últimos anos faz-se de turistas, contudo, a Ramiro fecha em agosto. É um gesto que ignora tudo em volta, a lógica do negócio, e é também um que mantém um elo com uma Lisboa que está a desaparecer: aquela lembrança de um mês de agosto em que a maior parte dos estabelecimentos estavam fechados.
“Ramiro”, o mais recente filme de Manuel Mozos, que tem a sua estreia na sessão de abertura do Doclisboa (19 de Outubro, Grande Auditório da Culturgest às 21h30) e que depois passará pela Viennale e pelo Festival de Cinema de Sevilha, é descrito como “uma comédia delicada”, não é um filme sobre a cervejaria mas é um retrato dessa Lisboa confortável e naturalmente ordenada (sabe-se lá como e porquê) que está a desaparecer. “Ramiro”, com o mesmo nome da cervejaria, é uma ficção, uma história em volta de um alfarrabista (António Mortágua) que também é um poeta com um livro editado e que está há anos num processo de bloqueio criativo.
A vida de Ramiro é do mais pacato que pode existir. Vive entre a loja, os copos e alguma televisão que consome em casa. À sua volta estão Daniela (Madalena Almeida), uma adolescente, boa aluna, que está grávida, a dona Amélia (Fernanda Neves), avó de Daniela, que sofreu um AVC recentemente, José (Américo Silva), um tipo que passa a vida na loja de Ramiro e que nunca compra livros, Patrícia (Sofia Marques), companheira de copos de Ramiro, com quem flirta recorrentemente e, entre alguns outros, há Alfredo (Vítor Correia), pai de Daniela, que está preso.
A dada altura, quando estas e outras personagens estão totalmente integradas na história, é inevitável sentir um clima de telenovela no argumento de Mariana Ricardo e Telmo Churro. Mas é um com as suas próprias regras e sugerido pelos momentos em que Ramiro está no seu sofá a beber do horário nobre da televisão portuguesa.
A caracterização do protagonista é um retrato real da Lisboa atual. Um contacto entre o velho e o novo, entre aquilo que existe e o que aos poucos está a desaparecer. A profissão de alfarrabista é o primeiro dado, fala por si mesmo; o segundo é o modo como dirige a sua loja. É uma rotina, Daniela e José estão frequentemente lá a ajudar, como amigos, José folheia livros, pergunta por preços mas nunca compra. Aliás, Ramiro é dotado de uma certa teimosia militante que, por vezes, o faz ser menos agradável para não vender livros que não quer. Ou a pessoas que não quer.
É uma atitude comum num certo tipo de lojas em Lisboa, num certo tipo de negócios. É uma coisa de velha guarda que, se pode ser irritante, também tem o seu encanto: a atitude de quem parece que está a fazer um favor em vender algo ou prestar um serviço. E à medida que o filme se desenrola há elementos que mostram como isto está a desaparecer: um dos mais marcantes é a carrinha de Ramiro, estacionada eternamente à porta da sua livraria e que um dia tem de sair de lá. Um sinal dos tempos em mudança.
Fora da loja, Ramiro frequenta tascas, gosta das suas imperiais e das suas bifanas. Alguns dos seus amigos também têm profissões que lentamente caem na decadência, como Fernando (Ricardo Aibéo), um tipógrafo. Há um momento em que Ramiro é forçado a procurar um outro sítio para beber copos, uma das suas tascas habituais fechou. Vai para um bar com música, onde a imperial é mais cara e onde não há bifanas: há tapas e bocadillos. Há gente a dançar, jogos, diversão. Há barulho. Numa noite com Fernando este diz que não consegue estar ali. O ruído dos novos sítios é diferente do ruído dos hábitos antigos. Barulho não é só barulho.
O que Mozos diz é que os sítios que fecham, os sítios antigos, também dispersam e isolam as pessoas. Ramiro continua a ir ao sítio dos bocadillos mas não tem companhia. Em “Ramiro” há qualquer coisa de “Ruínas” (2009), também de Mozos, um documentário sobre espaços/edifícios em Portugal que caíram em desuso e foram deixados ao abandono. Deixaram de servir o seu propósito e deles apenas resta a memória, não encontraram espaço no presente para existirem. São provas físicas de como o tempo passa e de como ele nem sempre é justo.
“Ramiro” não é um documentário, nem quer ser, mas faz todo sentido abrir este Doclisboa. A ficção toca numa realidade que está bem presente em Lisboa neste momento. Não são só as lojas, sejam elas históricas ou não, alguns tipos de negócios, que estão a fechar, são as pessoas que nelas trabalham e que as visitam que também estão a desaparecer. “Ramiro” fica como um retrato do presente, um filme que condiciona nos seus 100 minutos a discrição e a subtileza desse desaparecimento. Mais do que “uma comédia delicada” (até porque tem momentos hilariantes), “Ramiro” é uma reflexão corajosa sobre Lisboa, os seus lugares e as suas pessoas.