Já está em exibição nos cinemas portugueses “O Outro Lado da Esperança”, o mais recente filme do finlandês Aki Kaurismaki, vencedor do Urso de Prata de Melhor Realizador no Festival de Berlim (e Urso de Ouro no mesmo festival, para Melhor Filme). É a história de Khaled, um refugiado sírio ao qual é recusado asilo político na Finlândia e que foge do centro de acolhimento onde está instalado, para não ser extraditado. Khaled é então recolhido e ajudado por Wikstrom, um antigo vendedor de camisas que comprou um restaurante, homem impassível e de poucas falas mas com bom coração. Este é mais um típico filme de Kaurismaki, formal e tematicamente, passado num mundo duro e impiedoso, mas onde há sempre pessoas com decentes e com compaixão, mesmo que muito poucas e a comédia anda de braço dado com a tristeza. O Observador conversou com o realizador, que vive em Portugal durante parte do ano.
Tal como o seu filme anterior, “Le Havre”, e na verdade tal como quase todos os seus filmes, “O Outro Lado da Esperança” é sobre altruísmo em tempos difíceis. E nele parece dizer: “Não acredito na sociedade como um todo, nem sequer na humanidade em geral, mas uma pessoa, ou um punhado de pessoas decentes, ainda podem fazer a diferença.” Concorda?
Chaplin, Renoir e Vittorio De Sica são os meus mestres, e por isso concordo, naturalmente. O pessimismo manda neste nosso mundo moderno e maioritariamente plastificado (só os braços são de metal), mas não leva a parte nenhuma. A acção, mesmo que seja pouca, é necessária. As lições de moral também não ajudam e é por isso que eu uso a comédia neste filme sobre refugiados, mas faço notar que a comicidade está limitada às personagens finlandesas.
A personagem de Wikstrom, o dono do restaurante, incarna esta atitude. Ele é um homem duro, batido pela vida e pelo mundo, sem ilusões, mas com um coração bom e generoso. Quanto de Aki Kaurismaki é que há em Wikstrom?
Há alguma coisa.
Os seus filmes ambientam-se num mundo duro e frio, mas você nunca mostra violência explícita e há quase sempre comédia neles, a par com tristeza. Houve alguns críticos que escreveram que não devia haver comédia em “O Outro Lado da Esperança”, porque o tema dos refugiados é sério demais para tal coisa. Como reage a isto?
A comédia é uma arma muito poderosa e é por isso que os ditadores de todos os tempos a odeiam e temem. É também uma maneira de chegar ao coração e à cabeça do público. Todos sabemos que esta situação é terrível. Porque é que alguém iria ver um filme que insiste nisto? Houve reacções semelhantes quando os refugiados do contentor em “Le Havre” vestem as suas melhores roupas quando saem de casa. Os africanos têm sempre roupa limpa. Quaisquer que sejam as condições em que vivam. É um bocadinho tacanho ficar chocado se um refugiado tem um telemóvel. É o único elo que os liga a casa. Já agora, será que esses críticos que escreveram isso pensam o mesmo de “O Grande Ditador”, do Chaplin?
Há várias caras familiares de outros filmes seus em “O Outro Lado da Esperança”. Gosta de trabalhar sempre com os mesmos actores? Sharwan Haji, que interpreta Khaled, o refugiado sírio, é actor profissional?
Já trabalho com alguns deles há 35 anos. Com outros, há menos tempo. Mas quando são bons, porquê mudar? O Sharwan fez televisão na Síria, mas acho que nunca tinha feito cinema. Tem um talento natural e é um cavalheiro. Tive muita sorte em o encontrar.
Dirige os seus actores de forma diferente, dependendo deles serem profissionais ou não terem experiência de representação?
Não. E em geral, não os dirijo de forma clássica, de maneira nenhuma. Filmo logo o primeiro ensaio.
Os seus filmes têm uma personalidade inconfundível, imediatamente reconhecível, do visual às cores, ao tom, aos diálogos económicos e ao humor de cara fechada e à música. Vemos e sentimos logo que se trata de um filme de Aki Kaurismaki. É um realizador muito meticuloso, trabalha muito para conseguir este “Estilo Kaurismaki”?
É o único estilo que tenho. Nunca analiso o meu trabalho ou planeio mais do que um “take” de cada vez.
Aparecem muitos músicos finlandeses neste filme, tocando o tipo de música habitual neles. São todos seus amigos ou conhecidos?
A Finlândia é um país pequeno. Tenho o hábito de, dentro da ficção, documentar alguns músicos e algumas bandas para o futuro, porque o vento levar-nos-à a todos.
Já se pronunciou contra o uso do digital no cinema e disse que nunca rodaria um filme em digital. Não vê quaisquer vantagens ou méritos em filmar neste processo?
A película vem da luz (Deus) e o digital da electricidade (central nuclear). Além disso, sou suficientemente velho para morrer de botas calçadas.
“Le Havre” e “O Outro Lado da Esperança” seriam parte de uma trilogia, mas li que não haveria um terceiro filme e que este poderia ser o seu último. É verdade?
Não, porque não conheço nenhuma trilogia que só tenha duas partes. Mas esta pergunta está relacionada com a anterior. Será que daqui a três anos ainda haverá laboratórios que revelem película? E além disso, “O Outro Lado da Esperança” é o meu 19º filme. Ora 20 é um número mais redondo e mais fácil de lembrar frente ao pelotão de fuzilamento. De cara séria?