(Este texto foi publicado em 15 de novembro de 2017. Recuperamo-lo agora, atualizado com a informação da morte de Robert Mugabe, que morreu nesta sexta-feira, dia 6 de setembro, aos 95 anos)

“O meu marido é o Presidente e eu sou a mulher do Presidente. Não posso ser vice-presidente? Não sou filha do Zimbabué?” Grace Mugabe fez este discurso em 2014, num comício do partido do seu marido, o ZANU-PF. A declaração não deixa margem para dúvidas das ambições acalentadas pela primeira-dama, até aqui mais discreta nas suas movimentações políticas. Foi o princípio de uma viragem, que culminou com o afastamento da família Mugabe do poder e a tomada de posse de um novo líder da nação, o também Zanu-PF Emmerson Mnangagwa, tudo isto à medida que a saúde do ex-presidente se degradava. Robert Mugabe acabou por morrer uns anos mais tarde, a 6 de setembro de 2019.

Nascida em 1965, Grace cresceu na cidade rural de Benoni, perto de Joanesburgo, para onde a família se tinha mudado para o pai arranjar trabalho na vizinha África do Sul. Quando Grace tinha cinco anos, a mãe quis regressar ao Zimbabué, à altura ainda Rodésia, com os seus cinco filhos. O pai continuou a trabalhar como imigrante no país vizinho. Estudante numa escola católica em Rusica, Grace acabaria por prosseguir os estudos como secretária — uma decisão que lhe alteraria a vida por completo.

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Em meados dos anos 80, já casada com um piloto da Força Aérea, Grace arranja trabalho como secretária na equipa do Presidente, Robert Mugabe. Este apresenta-se pessoalmente à jovem, quase de imediato. “Ele veio ter comigo e começou a fazer perguntas sobre a minha família. Se eu era casada, coisas assim… Não sabia que ele tinha outras intenções. Eu era muito tímida, muito tímida”, recordou a própria Grace numa entrevista dado ao jornalista sul-africano Dali Tambo, em 2013.

Foi com convites para tomar chá e scones, como explica o jornal The Guardian, que Mugabe fez a corte a Grace. “Eu olhava para ele como uma figura paternal. Não pensava que ele ia olhar para mim e dizer ‘gosto daquela rapariga’”, recordaria mais tarde a própria Grace. Ao Presidente, de pouco importaram obstáculos como a diferença de idades — Robert Mugabe é 41 anos mais velho do que Grace — ou o facto de ainda ser casado com a popular primeira-dama Sally Mugabe, oriunda do Gana, que à altura sofria com um cancro terminal.

Grace e Robert casaram-se em 1996, quatro anos depois da morte de Sally. Nessa altura já tinham dois filhos — uma terceira nasceria um ano depois. A cerimónia foi um verdadeiro casamento de Estado: contou com mais de 40 mil convidados (entre eles Nelson Mandela), terá custado mais de um milhão de dólares e o padrinho foi o ex-Presidente moçambicano Joaquim Chissano.

Descrita como tímida, muitos dos que rodeavam o Presidente nesse tempo não consideravam Grace uma ameaça política, arrumando-a antes na prateleira de primeira-dama inofensiva. Com apenas 30 anos, era vista como uma mulher que gostava de fazer compras e passear e que, certamente, não faria sombra ao marido. A imagem estendeu-se ao longo dos tempos, de tal forma que em 2007 um responsável da embaixada norte-americana a descrevia como alguém com “pouca ou nenhuma influência sobre o seu marido” e cujo “principal interesse era ir às compras”.

“Grace Gananciosa” vai às compras

No entanto, ainda nos primeiros anos de casamento havia sinais de que Grace podia ser mais do que uma dondoca deslumbrada com o dinheiro e influência do cargo. Robert Rotberg, académico e antigo presidente da Fundação pela Paz Mundial, recordou recentemente que membros do Governo do Zimbabué chegaram a referir-se a Grace como “Grace Gananciosa”, uma alcunha que não escondiam de Rotberg.

Mais famosas entre a população são as alcunhas de “Gucci Grace” ou “DisGrace” (desgraça, em inglês). A primeira-dama tornou-se conhecida pelo seu estilo gastador, razão pela qual também há quem lhe chame “primeira-compradora”. As notícias como a do mês passado, que dava conta de que Grace processou um libanês por este ter falhado a promessa que lhe arranjar um anel de 1,35 milhões de dólares para o seu aniversário de casamento, causam escândalo num país assolado por fomes, inflação e falta de numerário.

Ao longo dos anos, Grace não se limitou ao cargo de primeira-dama, tendo assumido a liderança de vários negócios como duas minas (que faliram) e uma quinta leiteira, expropriada aos antigos donos brancos da Rodésia durante a reforma agrária no país. “Mugabe mudou automaticamente. Foi tão dramático”, disse ao New York Times Margaret Dongo, ex-membro do ZANU-PF atualmente ligada à oposição, sobre o início do casamento. “Grace sabia que tinha chegado a altura de fazer dinheiro. O que quer que ela tenha feito, certamente que assegurou que beneficiava da situação.”

Talvez para melhorar os seus índices de popularidade, Grace dedicou-se também a vários projetos de caridade, entre eles um orfanato nos arredores de Harare, capital do país, mantido com financiamento vindo da China. Mas a primeira-dama teima em ser capa de revista, por vezes não pelas melhores razões. Em 2009, um fotógrafo britânico acusou-a de o ter agredido à porta de um hotel em Hong Kong. Desde então, têm-se repetido as acusações de agressões, a mais recente ainda este ano, na África do Sul, que provocou um ligeiro incidente diplomático. Grace Mugabe foi acusada por uma modelo de a ter atacado quando a encontrou com um dos filhos num quarto de hotel.

De acordo com a modelo, a primeira-dama do Zimbabué atacou-a violentamente com um cabo elétrico, razão pela qual as autoridades sul-africanas decidiram investigar o caso. O escândalo terminaria com Grace de regresso ao seu país ao abrigo da imunidade diplomática, muito embora formalmente não pudesse usufruir dela por se ter deslocado à África do Sul para tratamento médico.

De gastadora fútil a Lady Macbeth em apenas três anos

Se em 1996 Grace era vista apenas como uma mulher bonita que servia mais de adereço ao Presidente do que de conselheira, o tempo encarregou-se de alterar essa perceção. Em 2014, já muitos a apelidavam de “Lady Macbeth, a mão por detrás do trono”, como apontaram à altura as investigadoras Kate Law e Helen Garnett, referindo-se à peça de Shakespeare em que uma dama persuade o marido a matar o rei para chegar ao poder.

Esse foi um ano decisivo para cimentar as ambições políticas da primeira-dama, que começou a deixar claros os seus planos, como no discurso em que perguntava à multidão se também não é “filha do Zimbabué”. Primeiro, Grace conseguiu que o marido a nomeasse presidente da Liga das Mulheres do partido e membro do Politburo. Depois, ditou o afastamento da vice-presidente Joice Mujuru, uma antiga guerrilheira pela independência com o nome de guerra Teurai Ropa (“Derrama-Sangue”).

Ao mesmo tempo, Grace procurou ganhar respeitabilidade através de um doutoramento em Sociologia, que se tornou alvo de chacota por ter sido tirado em apenas três meses. A jogada política reforçou-se à medida que a primeira-dama foi consolidando o apoio do grupo conhecido como G40, liderado pela fação mais jovem do partido, contra o grupo liderado pelo vice-presidente Emmerson Mnangagwa, também antigo guerrilheiro que goza de respeito entre os militares.

Estes olham com desprezo para Grace. “O poder não se transmite sexualmente”, disse Jabulani Sibanda, presidente da Associação de Veteranos, acerca da primeira-dama. O afastamento de Mnangagwa do cargo de vice-presidente na semana passada pode ter sido o gatilho para a ação dos militares esta quarta-feira, assustados com a crescente influência de Grace nos últimos três anos. “Grace Mugabe é quem está a mandar”, disse um dia antes do golpe Alex Magaisa, um dos responsáveis pela elaboração da Constituição do Zimbabué em 2013, à Bloomberg.

Os primeiros rumores dão conta de que Grace estará agora na Namíbia. Se a ação dos militares for bem-sucedida, a primeira-dama poderá não regressar mais ao Zimbabué, afastada de vez das lides políticas. Mas é melhor não subestimar esta mulher: “Chamem-lhe manhosa, com sede de poder, ou digam que ela estava apenas ‘no lugar certo na altura certa’, mas a verdade é que esta secretária tornou-se um elemento crucial na política de sucessão no Zimbabué”, resumiu Marcellina Chikasha, líder do pequeno Partido Democrático Africano. Terá ainda Grace Mugabe alguma carta na manga?