“Senhoras e senhores passageiros, estamos prestes a aterrar no Aeroporto de Tenerife Sul. Imagino que a maior parte de vocês esteja a caminho da cerimónia Michelin, por isso, desejo que tudo corra bem e que as vossas expectativas sejam cumpridas”. A poucos minutos da aterragem, foi esta a mensagem de despedida do comandante que levou o Observador até às Canárias.
A umas boas horas do início da Gala Michelin Espanha e Portugal 2018, toda esta pequena e árida ilha estava mergulhada na “febre das estrelas”. Depois de uma intensa disputa contra Lisboa (já vamos falar disso), Tenerife acabou por ser a cidade escolhida pela marca de pneus. Quando o relógio batesse nas 19h — o mesmo fuso horário que o de Portugal Continental –, a Península Ibérica ia conhecer os novos cozinheiros que passariam ter o seu nome inscrito no pequeno livro vermelho que tem tanto de polémico como de respeitado. “O que estaria reservado para a gastronomia lusa?”
Cheeseburgers e revelações
À semelhança do que acontece todos os anos, quando a data de lançamento do Guia se aproxima, começam as habituais especulações. Por muito que este ano não houvesse o turbilhão de apostas que caracterizou a edição anterior — com várias promessas de que Portugal ia assistir a uma “chuva de estrelas” –, era quase impossível não haver quem arriscasse expor uma ou outra teoria sobre quem podia ganhar.
Da “chuva de estrelas” ao chuvisco: Portugal tem dois novos restaurantes no Guia Michelin
Atiravam-se nomes ao ar: falava-se de possíveis segundos astros (no Feitoria, do chef João Rodrigues, ou no São Gabriel, de Leonel Pereira), de uns quatro ou cinco primeiros “macarons”, mas nada de concreto. A dúvida manteve-se até à chegada ao Hard Rock Hotel, a megalómana (tem mais de 600 quartos) e caricata unidade hoteleira onde a organização hospedou vários dos convidados.
Depois de um muito pouco espanhol bacon cheeseburger (já eram três da tarde e a fome apertava) viu-se o chef Daniele Pirillo a entrar no lobby do hotel de mala a reboque. O jovem milanês que lídera o Gusto by Heinz Beck, restaurante que o chef alemão abriu no luxuoso Conrad Algarve, vinha tímido, como sempre é, mas exalava uma felicidade quase de criança. Este seria, certamente, um dos novos nomes nacionais a entrar no Guia.
Poucos minutos depois é a vez de João Oliveira, chef do Vista, em Portimão, atravessar as portas de vidro do hotel, passar ao lado do fato de plumas do Elton John, e colocar-se na fila para fazer o check-in. Consolidava-se assim outra certeza em relação aos vencedores portugueses da noite. Apesar dos convidados para a cerimónia do Guia Michelin poderem não ganhar, a experiência diz-nos que são poucas as vezes em que o livrinho vermelho chama e não dá em nada.
Ficaria tudo por aqui? Teriam chegado mais chefs que, por alguma razão, podiam não estar neste mesmo hotel? Podia alguma estrela vir a ser entregue sem que o chef respectivo tivesse sido convidado (cenário bem mais comum do que pode parecer)? Estas dúvidas iriam manter-se por mais umas horas.
A hora da verdade
“O transporte está lá fora à vossa espera”, avisou um rapaz barbudo. Eram 17h45 e estava na hora de seguir rumo ao Ritz-Carlton Abama, o local escolhido para receber a Gala. Toda a gente — dezenas de espanhóis e uma mão cheia de portugueses — tinha trocado de roupa e apresentava-se muito mais elegante, cheirosa e bem apresentada: o evento assim o exigia. Até esta altura, as dúvidas ou falta de certezas sobre quem ganhava o quê mantinham-se, até que, a dez metros de se atravessar a cancela do hiper-seleto Abama, cai no e-mail a solução de todos os problemas.
“Ahí va el comunicado, en español y portugués”, lia-se no corpo da mensagem electrónica. Finalmente todas as questões eram respondidas. Nenhum dos que já tinham Estrela iria perder o seu astro e duas caras novas juntavam-se a esta elite: os chefs João Oliveira e Daniele Pirilo.
A fartura de 2016 — 7 novas primeiras estrelas e dois estreantes no mundo dos bi-estrelados — certamente habituou-nos mal, já que o desalento de ver apenas dois novos cozinheiros no Guia foi notório, ainda para mais porque nesse mesmo comunicado oficial via-se que “nuestros hermanos” iam ter um total de 24 novas estrelas (divididas por dois tri-estrelados, 5 com duas e 17 com uma). Mesmo assim, como diz a regra do espectáculo, the show must go on.
Tiago Bonito, o novo chef de um Estrela Michelin. “Somos como uma equipa de futebol”
[Nota: é importante ressalvar que estes resultados foram enviados apenas a jornalistas e na condição de não poderem ser revelados até às 20h30 locais. Chefs e público em geral não sabiam de nada]
“Gostava de agradecer a todos vocês pelo apoio e especialmente aos nossos inspetores, que levam uma vida muito dura”, começou por dizer Mayte Carreño, diretora comercial da Michelin Espanha Portugal. Atrás de um púlpito, em pleno palco montado numa das salas de conferência do Abama, a responsável introduziu Michael Ellis, o diretor internacional dos guias que, num espanhol macarrónico, começou por chamar os novos “uma estrela”. Daniele foi o primeiro a receber o prémio (que é entregue, simbolicamente, sob a forma de uma jaleca) e João Oliveira seguiu-o pouco tempo depois. Ficava assim arrumado o nervosismo e expectativas de toda a classe hoteleira de Portugal — era altura de ouvir os vencedores.
Digam de vossa justiça
“É uma satisfação muito grande, só penso em ligar à minha equipa, amigos, toda a gente! Isto é o resultado de um trabalho muito longo”, começa por explicar um ainda emocionado João Oliveira. Numa zona semelhante à das famosas flash interviews, o nortenho destacava o facto deste prémio não ir “mudar em nada” a mentalidade da sua equipa (“sem eles nada disto era possível”). “Continuamos muito fortes e focadas em fazer o melhor trabalho possível.”
Uma das respostas de João é subitamente interrompida: “Parabéns chef!” diz Daniele Pirillo, do Gusto, abraçando-o. Muito limitado pelo parco inglês que fala, Pirillo deixou Oliveira acabar de explicar que a estrela chegava numa altura em que o seu trabalho já estava mais sólido — era o seu terceiro ano à frente desta cozinha — e que todos “estavam mais maduros”. A palavra era agora passada àa Daniele.
“Felicidade, muita felicidade é aquilo que estamos a sentir agora”, afirmou o jovem chef que trabalha sob a alçada de Heinz Beck há 4 anos — um em Roma e os outros dois no Algarve. Por esta altura, o rapaz ainda não tinha conseguido falar com Beck. “Ele está em Tóquio neste momento. Ainda não o conseguimos avisar da vitória!” explica. Apesar disso, Daniele conta que este alemão mestre da comida italiana estava “um pouco expectante” em relação ao prémio, mas que tinha confiança de que tanto ele como a sua equipa tinham “trabalhado muito bem” ao longo do último ano. “Se tivéssemos ganho no ano passado acho que teria sido demasiado cedo”, vai explicando o rapaz calvo e com uma barbicha que tem tanto de fininha como de comprida. “Agora temos a certeza de que partilhamos os mesmos ideais de excelência que o Guia. Isso é muito bom de saber” , termina o cozinheiro que se desfaz em desculpas ao dizer que tinha de ir embora. “Tenho de falar com o chef Heinz!” conclui.
No meio de todas as fotos e azáfama que se gerou na saída da sala de conferências, jornalistas, fotógrafos e a mascote da Michelin acotovelavam-se uns aos outros. Na sala onde foram anunciados os prémios, porém, não havia quase ninguém tirando o chef Jordi Cruz, do ABaC, um dos dois novos três estrelas Michelin espanhóis (o outro foi o Aponiente de Ángel León). Foi com ele que se falou a seguir.
“Ainda não foi desta que Portugal ganhou o seu primeiro três estrelas, o que acha que falta?” foi a primeira questão atirada ao chef Jordi. “Sou cozinheiro há 25 anos”, começa por explicar o espanhol, “e passei os últimos 5 ‘à espera’ de ganhar a terceira”, remata. O homem que ontem se tornou responsável pelo segundo três estrelas de Barcelona (Lasarte, de Martín Berasategui, é o outro) explica que este patamar é “muitíssimo difícil de conquistar” e exige “a mais intensa das dedicações, tenacidade e rigor”, fatores que fazem deste percurso “uma maratona e não um sprint”. Apesar de tudo isto, Jordi Cruz afirma que “é uma questão de tempo” até Portugal chegar a este nirvana gastronómico.
¿Y Lisboa, chicos?
Depois de quase 45 minutos de perguntas, fotos e vídeos para o mundo inteiro, chegou a hora da descompressão. Os convidados fora encaminhados para uma zona à beira da piscina e começou uma espécie de cocktail/jantar voltante, preparado por vários cozinheiros da região. Mergulhados num vermelho pesado, todos relaxavam e celebravam com brindes e deliciosos canapés. No meio de todo o amontoado de gente, Ángel Pardo, o responsável pelas relações exteriores do Guia Espanha Portugal, fumava um charuto de copo na mão. Pareceu uma boa altura para falar da possibilidade de uma cerimónia deste género poder vir a realizar-se em solo nacional.
“Este ano estivemos muito perto de Lisboa”, explica o espanhol. Pelo que relata ao Observador, a candidatura lisboeta “era a mais forte de todas”, e chegaram a ser feitas visitas ao Pavilhão Carlos Lopes, na capital, numa altura em que já se sondavam possíveis espaços onde realizar o evento. Apesar disso, “existiram burocracias” a “atrasar muito” todo o processo, e isso acabou por demover os responsáveis do Guia. Aparentemente, “na proposta de Tenerife toda a gente estava mais unida, focada em trabalhar em grupo“ e isso acabou por fazer a diferença. Contudo, há esperança: “Não tenham dúvida de que para o ano que vem voltamos à carga com Lisboa”, termina Pardo. “Já é mais do que tempo de fazermos uma cerimónia com vocês, não acha?”. Resta esperar.