Falar sobre alterações ao estatuto do deputado, sobre o aumento dos impedimentos e incompatibilidades dos deputados, ou, sobretudo, falar sobre apertar a malha à acumulação de certas atividades profissionais, como a de advogado, é controverso nos corredores de São Bento. Deputados a legislar sobre obrigações e restrições dos deputados, também. Tudo tem de ser medido com pinças, e quanto mais consenso houver, melhor. No entanto, até dentro de portas, nas próprias bancadas do PS e do PSD, esse consenso é difícil de alcançar. E se a “geringonça” aprovar sozinha normas no sentido de tornar a função de deputado mais exclusiva?
Nas jornadas do PS, que decorreram esta semana em Coimbra, as divergências estiveram à vista de todos; no PSD, o tema vai ser discutido esta quinta-feira de manhã na reunião da bancada parlamentar, que decorre à porta fechada. Mas sempre com um elefante na sala: embora o PSD não tenha maioria no Parlamento, e a esquerda possa aprovar alterações “sozinha”, qualquer decisão tomada pela atual direção da bancada do PSD vai ser depois colhida pela próxima direção (caso Rui Rio faça, como se espera, ajustes no xadrez político do Parlamento). Daí que a hipótese de pedir adiamento dos trabalhos esteja em cima da mesa.
“Estamos criar uma classe sacerdotal, de vestais”. O verniz estalou nas Jornadas do PS
A bancada do PSD é composta por 89 deputados, estando 52 em regime de exclusividade, e 37 a acumular funções com o exercício de outra profissão. Segundo apurou o Observador, depois de o verniz ter estalado na bancada socialista, o tema causou burburinho entre os sociais-democratas. Na tarde desta quarta-feira, um grupo de deputados terá mesmo sido convocado para uma reunião interna com a presença do líder parlamentar Hugo Soares, e com o coordenador do partido na comissão parlamentar onde as propostas vão ser votadas, Luís Marques Guedes. A posição da bancada social-democrata deverá ser “contra”, embora não haja disciplina de voto. Resta saber se o PSD vai ou não pedir formalmente um adiamento dos trabalhos, para esperar pela tomada de posse de Rui Rio. Questionado pelo Observador, o líder parlamentar Hugo Soares remeteu qualquer decisão para a reunião da bancada que vai decorrer na manhã de quinta-feira.
À semelhança do que aconteceu no PS, há entendimentos diferentes entre os sociais-democratas: há quem seja favorável ao caminho da exclusividade dos deputados, e quem seja contra a via restritiva apontada pelos projetos do PS.
“Está-se a caminhar de ano para ano para a exclusividade total dos deputados e isso é perigoso, porque é um discurso populista que cola muito facilmente”, diz um deputado social-democrata ao Observador, admitindo concordar com o socialista Sérgio Sousa Pinto, que foi muito aplaudido quando criticou o PS por se estar a “encaminhar para uma classe dissociada da sociedade, uma classe sacerdotal, de vestais, não no sentido biológico, mas no sentido da antiguidade clássica”. Para este parlamentar do PSD, que é advogado, “é muito importante os deputados terem contacto com a sociedade civil”, embora admita que deva haver “regras mais apertadas” para as sociedades de advogados a que os deputados pertencem — caso tenham litígios com o Estado.
Outro deputado ouvido pelo Observador apontou para o perigo de se estar a caminhar para a ideia de tornar o deputado um “funcionário público”, profissionalizando a atividade política. Outro membro do Parlamento, que exerce funções em regime de exclusividade, contudo, defende precisamente a via da exclusividade, porque com ela “vem a da responsabilidade”. Para este deputado social-democrata que não quer ser identificado, “se for preciso, há até mais gente no PSD a concordar do que a estar contra”, mas a posição que reina é contra as limitações e restrições. “No fundo, só os deputados de Lisboa é que saem verdadeiramente afetados, porque são os que estão ligados às grandes sociedades de advogados”, diz ainda, admitindo que a posição da sua bancada deverá ser contra estas alterações.
Atualmente, só os deputados-advogados que tenham processos contra o Estado é que incorrem numa incompatibilidade, pelo que é unânime que se alargue essa incompatibilidade aos deputados-advogados que tenham qualquer relação contratual com instituições do Estado, independente da prestação de serviço que for. Mas o PS quer ir mais longe, e é essa norma que está a causar maior discussão: além de os deputados-advogados não poderem representar o Estado em circunstância alguma, nem como consultores, o PS quer que o mesmo se aplique a todas as sociedades inscritas em ordens profissionais, independentemente do valor da sua participação social. Ou seja, se a norma for aprovada, um deputado-advogado não poderá integrar nenhuma sociedade que preste qualquer serviço, contra ou a favor, qualquer instituição da administração pública. No entender da maioria dos deputados ouvidos pelo Observador, é um “passo no sentido da exclusividade”.
Acordo de regime ao centro ou acordo apenas à esquerda?
Um outro parlamentar lembra que as questões sobre o estatuto do deputado e as regras de transparência são “matéria de regime”, pelo que deveria haver um entendimento entre as direções do PS e PSD sobre o assunto. Aritmeticamente, contudo, não é preciso. Sendo bloquistas e comunistas tendencialmente a favor da exclusividade (e tendo o BE um projeto de lei onde prevê a exclusividade dos deputados), basta o PS ter deputados suficientes para aprovar a proposta com os votos dos partidos mais à esquerda. Ao Observador, o deputado bloquista José Manuel Pureza admitiu que a proposta do BE que defende a exclusividade dos deputados possa não ser aprovada, mas que votará a favor daquelas que mais se aproximarem dessa via. “A não vencer a tese da exclusividade, deve ficar clara a incompatibilidade entre o exercício de funções de advogado e de deputado”, diz.
PS mantém projetos da transparência criticados e nega que sejam “excessivos”
A comissão eventual para o reforço da transparência no exercício de funções públicas reúne esta quinta-feira ao final da tarde, e, na ordem do dia, tem previsto o início das votações, artigo a artigo, das propostas dos vários partidos. Isto, se não for pedido um novo adiamento dos trabalhos. Questionado sobre se, caso seja pedido adiamento, os trabalhos são suspensos, o presidente da comissão, Fernando Negrão (PSD), passa a bola aos partidos: “A acontecer, os partidos discutirão e decidir-se-á na altura”.
O adiamento “dá jeito a todos, PS e PSD”, ouve o Observador de várias fontes, embora ninguém queira ficar com o ónus de empurrar o tema, sobretudo depois de aquela comissão, que já funciona desde abril de 2016, ter visto os seus trabalhos suspensos por duas vezes. Se ao PS dá jeito para concertar posições internas, ao PSD dá jeito para concertar posições com a nova direção do partido — que só toma posse no congresso de 18 de fevereiro. É praticamente certo, porém, que Rui Rio queira mudar a direção da bancada parlamentar, e, deputados que estiveram com Rio na disputa interna admitem que o próximo presidente do PSD “tende a ser a favor da exclusividade dos deputados”. Caso diferente é o das questões do lobby e do enriquecimento injustificado, que também estão em cima da mesa, mas onde Rio tem várias “reticências”.
Luís Marques Guedes, que coordena o PSD naquela comissão, está a ser apontado como o mais provável próximo líder parlamentar do PSD, e também ele defendeu, em maio do ano passado, o regime de exclusividade para todos os titulares de cargos políticos e altos cargos públicos com natureza executiva, incluindo autarcas. O objetivo não era apertar o cerco aos deputados-advogados, mas sim aos deputados que acumulavam funções de deputado com funções de presidentes de junta. Pode, por isso, fazer sentido esperar pela mudança formal no PSD para o partido se pronunciar sobre estas questões “de regime”. Mesmo que não haja adiamento dos trabalhos, e mesmo que se comece já a votar os artigos em sede de especialidade, a votação final global dos diplomas só acontecerá depois de 18 de fevereiro. Ou seja, já com Rio em funções.