Quase ninguém se apercebeu que, naquele jogo de pré-época entre os San Francisco 49ers e os Green Bay Packers, Colin Kaepernick já estava em protesto. Quando o hino norte-americano começou a tocar, o quarterback de 28 anos decidiu sentar-se no banco em vez de se levantar para se juntar aos colegas de equipa. Questionado pelos jornalistas sobre o que estava por detrás daquela atitude, Colin Kaepernick foi muito claro: “Não me vou levantar e defender o orgulho por um país que oprime as pessoas de cor. Para mim, isso é maior que o futebol e seria egoísta da minha parte olhar para o lado. Há cadáveres nas ruas”, explicou ele.
Foi assim em dois jogos da pré-época, e Kaepernick não entrou em campo e nem estava equipado. Mas aquelas palavras seriam a cruz que a National Football League, liga profissional de futebol americano, viriam a carregar até hoje: as audiências em dias de jogos diminuíram, Donald Trump haveria de adjetivar o protesto de desrespeitoso e os patrocinadores recuaram. Até Colin Kaepernick sentiria na pele o preço de se ter sentado naquela sexta-feira à noite em finais de verão: não encontraria nenhuma equipa onde atuar na última época e também perdeu patrocinadores. Nada que o preocupasse.
O que Colin Kaepernick fez naquela noite não seria apenas um protesto: viria a transformar-se num verdadeiro movimento, principalmente depois de o atleta norte-americano ter trocado o modo de protesto: em vez de se sentar no banco durante o hino, Kaepernick decidiu ajoelhar-se no jogo contra os San Diego Chargers a 1 de setembro de 2016. Dessa vez, não se manifestaria sozinho: o colega de equipa Eric Reid juntar-se-ia a ele, mesmo depois da ondas de críticas que arrebataram o atleta de 28 anos. Antes do strong safety dos San Francisco 49ers ter alinhado com Kaepernick, o quarterback já tinha respondido aos comentários:
“Isto não é sobre mim. Isto é porque eu estou a ver coisas a a aconteceram a pessoas que não têm voz (…). Tenho um grande respeito pelos homens e mulheres que lutaram por esse país. Tenho família, tenho amigos que lutaram e lutam por este país. E eles lutam pela liberdade, lutam pelo povo, lutam pela liberdade e justiça, para todos. Isso não está a acontecer”.
O ajoelhamento de Colin Kaepernick e Eric Reid não foi espontâneo. Foi pensado. Foi Nate Boyer, antigo jogador dos Seattle Seahawks que serviu o Exército no Iraque e Afeganistão, que admitiu ter influenciado os dois desportistas a ajoelharem-se em vez de se sentarem durante o hino. A 30 de agosto de 2016, duas semanas depois do primeiro protesto de Kaepernick, o Army Times publicou uma carta aberta enviada por Nate Boyer onde o jogador contava como se sentia de pé perante a bandeira dos Estados Unidos na única aparição que protagonizou nos Seahawks:
“Pensei no quão tinha chegado enquanto os homens com quem lutei nunca conseguiram chegar. Pensei nos estrangeiros que estavam a arriscar as suas vidas naquele momento. Pensava de forma egoísta sobre o que tinha sacrificado para chegar onde tinha chegado (…). Esse momento significou muito mais para mim do que mesmo jogar e, para ser sincero, se reparasse que o meu colega estava sentado no banco, isso ia magoar-me”.
Quanto à opinião que tinha sobre os protestos de Colin Kaepernick, Nate Boyer acrescentou:
“Não vos estou a julgar por defenderem aquilo em que acreditam. É vosso direito inalienável. O que estão a fazer implica ter muita coragem e mentiria se dissesse o que é estar na vossa pele. Nunca tive de lidar com preconceito por causa da cor da minha pele. Dizer que vos entendo é tão ignorante como alguém que nunca esteve em combate dizer que entende o que é estar na guerra”.
Depois de essa carta ter sido publicada, Colin Kaepernick e Eric Reid encontraram-se com Nate Boyer. “Conversámos com ele sobre como podemos fazer a mensagem voltar ao caminho certo e não excluir as forças armadas, não parar de lutar pelo nosso país, mas manter o foco nos verdadeiros problemas. E enquanto conversávamos sobre isso, levantamos um joelho. Porque há questões que ainda precisam ser abordadas e também foi uma maneira de mostrar mais respeito aos homens e mulheres que lutam por este país”, explicou Kaepernick depois de se ter ajoelhado durante o hino no jogo do início de setembro.
Ao The New York Times, Kaepernick ainda acrescentou que aquela forma de protesto nasceu de uma conversa “de umas duas horas” onde Nate Boyer os persuadiu a fazer daquele movimento” um protesto pacífico: “Escolhemos ajoelhar-nos porque é gesto respeitoso. Lembro-me de pensar que a nossa pose era semelhante à de uma bandeira em meia-haste para marcar uma tragédia”.
Por detrás dos protestos de Colin Kaepernick estavam as histórias de violência policial alegadamente cometida contra negros nos Estados Unidos, assunto que enchia as manchetes e abria telejornais no país. Eram essas as pessoas sem voz a quem o atleta queria dar palco. Surgiram vários vídeos que mostravam as autoridades norte-americanas a violentar homens desarmados e sem oferecer resistência. Todos tinham uma característica em comum: eram negros. Colin Kaepernick tornar-se-ia assim um dos símbolos maiores do movimento Black Lives Matter, que aliás protagonizou o intervalo do Super Bowl daquela época com Beyoncé a vestir-se em homenagem ao grupo extremista revolucionário Black Panthers. No dia em que Colin Kaepernick se ajoelhou para ouvir o hino norte-americano, também doou um milhão de dólares a instituições de caridade centradas em questões raciais.
Kaepernick tornava-se assim mandatário de um movimento que veio marcar toda a época da NFL. Na primeira semana da liga, já eram onze os atletas que tinham seguido o exemplo do quarterback dos San Francisco 49ers, embora nem todos tenham escolhido ajoelhar-se. Marcus Peters, dos Kansas City Chiefs, levantou o punho quando o hino começou a tocar, enquanto os colegas de equipa cruzaram os braços. Devin McCourty e Martellus Bennett, dos New England Patriots, fizeram o mesmo no Sunday Night Football. Pouco depois das eleições norte-americanas, Mike Evans dos Tampa Bay Buccaneers sentou-se antes de um jogo. Só na terceira semana da época, mais de 200 atletas participaram de alguma forma no movimento iniciado na NFL.
Barack Obama comentou o movimento de Kaepernick dizendo que o jogador estava “a exercer um direito seu” e dando-lhe os louros “por ter chamado a atenção para temas que precisam de ser debatidos”. Nem todos concordaram com o ex-presidente dos Estados Unidos. Logo a 29 de agosto, Trump opinava:
“Acho que não é uma coisa boa. Acho que é uma coisa terrível. Sabem, talvez ele devesse encontrar um país que seja melhor para ele. Deixem-no tentar. Nunca vai conseguir”.
Em poucos dias, dada a repercussão que o tema Kaepernick tinha ganho, Donald Trump tweetou pelo menos 25 vezes sobre o assunto. Mas não seriam as críticas de Trump que a dar dores de cabeça à NFL. Seriam os fãs.
A época de futebol americano ia a meio e as audiências dos jogos tinham baixado pelo menos 5%, estimava a Sporting News. A época não tinha recolhido mais de 14.772 milhões de telespectadores à oitava semana, um recuo de 5% nos valores da primeira metade da época de 2016 e muito abaixo dos 18.167 milhões que tinham assistido aos jogos em 2015. A suportar ainda mais esta estimativa está o inquérito feito pela Seton Hall University, que concluía que quase um terço das pessoas sondadas estava a assistir a menos jogos e que, entre aquelas que viam as partidas, 52% admitia estar menos motivado para o fazer por causa dos protestos dos atletas durante o hino nacional. Os fãs torceram o nariz ao movimento de Kaepernick e a bolsa seguiu a tendência: as previsões de ganhos para a CBS e para a FOX foram minguadas pelos especialistas de Wall Street, precisamente por causa das audiências mais baixas durante os jogos da NFL. Um deles até previa que a CBS, ESPN, Fox e NBC fossem sofrer um corte de 200 milhões de dólares nos ganhos amealhados com a NFL, menos 10% do que seria expectável.
A NFL começou a justificar estes números dizendo que a culpa estava nas eleições norte-americanas, que desviavam as atenções do desporto. A audiências realmente aumentaram em novembro, depois das eleições, mas depois as pessoas começaram a cancelar as subscrições dos canais de cabo, preocupando a liga e os patrocinadores: a ESPN chegou a dizer que tinha de recalcular as previsões de receitas face à resposta que estavam a receber dos clientes. Mais curioso é que a profusão criada por Colin Kaepernick estava a surgir de um movimento que as pessoas não viam realmente na televisão: o estudo da Seton Hall Sports Program, que chegou às mesmas conclusões que as outras duas sondagens, dizia que “as pessoas estão a reagir a algo que não veem, porque normalmente o hino nacional não é transmitido”.
Mas pode ser importante concentrarmo-nos neste estudo em particular, porque as conclusões que tirou podem não ser tão transparentes quanto parecem — e isso tem estado por detrás de quem argumenta que não são os protestos que justificam a quebra nas audiências da NFL. É que a sondagem do Seton Hall Sports Program não pergunta às pessoas porque é que elas deixaram de ver os jogos, mas sim porque é que elas acham que os outros deixaram de ver os jogos. Além dessa justificação, as pessoas também opinaram que as audiências baixaram porque as eleições distraíram os telespectadores, porque o baseball estava a ganhar terreno e porque estão menos tolerantes à violência (tanto em campo como nos casos de violência doméstica associados aos jogadores). Portanto, pode ser tudo mais relativo do que parece à primeira vista, até porque embora as audiências tenham diminuído, o número de visualizadores únicos aumentou ligeiramente de 166.4 milhões para 167.7 milhões. Ou seja, pode haver o mesmo número de pessoas a verem jogos da NFL, mas a passarem menos tempo a fazê-lo.
De uma maneira de outra, o annus horribilis da NFL é verdadeiramente uma dor de cabeça para entidades como a ESPN, que têm um acordo de 50 mil milhões de dólares a valer até 2020 com a liga, ou como quem comprou espaços de publicidade por 4 mil milhões de dólares a desembolsar aos intervalos. E é provavelmente uma dor de cabeça para Colin Kaepernick, um quarterback que ficou desempregado no fim da carrreira. Algumas personagens da NFL — entre os quais jogadores dos New England Patriots ou dos Kansas City Chiefs — admitiram concordar que a atual situação de Kaepernick se deve ao facto de ele estar a ser afastado dos circuitos do desporto por forças políticas. Donald Trump disse que Kaepernick está desempregado por medo de que ele usasse o Twitter para discutir com a equipa com quem ele assinasse. E a ESPN acredita que não há política nem causas sociais por detrás da situação de Kaepernick, mas sim “questões de contrato”.
Nada que o preocupasse, embora já tenha vindo dizer que a NFL está “a mexer cordelinhos” para o manter fora das equipas. É que, na entrevista dada a seguir ao primeiro protesto perante a “The Star-Spangled Banner”, Colin Kaepernick disse: “Não estou à procura de aprovação. Tenho de defender as pessoas que estão oprimidas. Se me tirarem os patrocínios, saberei que defendi o que está certo”.