A prescrição de canábis com fins terapêuticos, nos países onde isso é permitido, constitui um desafio para os médicos. Na passada semana, três publicações — uma no Canadá e duas na Austrália — alertaram para esta questão e forneceram sugestões quanto ao seu uso. Ao mesmo tempo, em Portugal, foi aprovada a moção temática apresentada por Ricardo Baptista Leite sobre a legalização da canábis.

A moção apresentada pelo deputado e médico defende que a legalização da canábis — neste caso para fins recreacionais — permitirá “reduzir a oferta e o consumo de drogas no nosso país”. Além da proibição da publicidade a estes produtos, a moção prevê um controlo de toda a cadeia de produção e distribuição, assim como que a venda seja feita nas farmácias. Tendo cada farmácia uma base de dados dos compradores seria possível assegurar “uma vigilância analítica dos padrões de consumo, particularmente para detetar precocemente eventuais tentativas de compra para posterior venda ilegal”.

O PSD que assumiu que votaria contra os projetos de lei de legalização da canábis medicinal apresentados em janeiro pelo Bloco de Esquerda e pelo PAN, vinculou-se agora à ideia da legalização da canábis com a aprovação da moção no congresso. Estas duas propostas e o projeto de resolução apresentado pelo PCP têm dois meses para serem discutidos na comissão de especialidade e depois voltarem ao Parlamento para votação.

Canábis: legalizar a planta ou os medicamentos com base nela?

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No Canadá, um grupo de médicos criou um conjunto de linha orientadoras em relação ao uso de canábis nos cuidados de saúde primários. De forma geral, as recomendações são para um uso limitado de canabinóides, ainda que reconheçam o uso potencialmente benéfico em certas condições: nos cuidados paliativos e de fim de vida, na dor neuropática (dor crónica resultante de lesão nervosa), nas naúseas e vómitos provocadas pela quimioterapia e no tratamento dos espasmos musculares associados à esclerose múltipla. Estes são os casos em que existe alguma evidência científica que apoia o uso e, mesmo assim, os benefícios são modestos.

Apesar do entusiasmo do uso de canábis medicinal ser muito forte para algumas pessoas, a investigação de qualidade não conseguiu chegar a esse nível”, disse Mike Allan, coordenador do manual e diretor de medicina baseada em evidência da Universidade de Alberta. “É preciso melhor investigação: ensaios clínicos controlados e aleatórios que sigam um grande número de doentes por longos períodos de tempo. Se o tivéssemos, isso podia mudar a forma como olhamos para o problema e orientar as nossas recomendações.”

O documento lembra que, em geral, os ensaios clínicos com canábis medicinal são muito limitados ou inexistentes, o que faz com que não haja certezas sobre a sua utilização na maioria das condições clínicas. Já os efeitos secundários são bem conhecidos, frequentes e melhor documentados. A utilização de canábis, sobretudo entre adolescentes e jovens adultos, afeta o desenvolvimento cerebral, provocando psicoses e sintomas semelhantes à esquizofrenia. O consumo de canábis pode implicar uma diminuição do desempenho motor e da capacidade de realizar tarefas, como conduzir. A inalação dos fumos da canábis também pode provocar danos nas vias respiratórias, inflamação dos pulmões e fraca resistência a infeções.

Uma das grandes questões sobre o uso de canábis — e sobre a legalização da canábis medicinal — é que não estão a ser seguidos os passos normalmente necessários para a aprovação de um medicamento. Normalmente, as moléculas com interesse farmacológico são isoladas, purificadas e testadas em laboratório, primeiro em células vivas, depois em animais. Para seguir para ensaios clínicos com humanos, os ensaios pré-clínicos têm de ser validados e a passagem à fase seguinte tem de ser aprovada pela entidade reguladora. A primeira fase dos ensaios clínicos permite testar a segurança do fármaco. A segunda fase permite demonstrar se o fármaco realmente traz benefícios para humanos e na terceira vem a confirmação de que o novo fármaco é tão bom ou melhor do que os tratamentos já existentes.

“Se não houver ensaios clínicos, não há novos medicamentos”

“O ritmo e dimensão da introdução de canábis medicinal não tem precedentes e levantou desafios aos profissionais de saúde, não tanto por causa das propriedades aditivas ou psicoativas conhecidas, mas porque a sua introdução não seguiu os procedimentos de investigação de segurança e eficácia habituais”, escreveu um grupo de médicos em representação do Real Colégio dos Médicos Australasiático (RACP, na sigla em inglês) na revista científica The Medical Journal of Australia. “Os processos habituais de regulamentação, desenhados para proteger os doentes de danos graves, estão incompletos para os canabinóides medicinais e a evidência da sua eficácia para muitas condições médicas é, neste momento, limitada.”

Saltar passos na investigação e aprovação de canabinóides medicinais pode comprometer a investigação do potencial terapêutico das moléculas mais relevantes desta planta e da eficácia do uso prolongado deste tipo de tratamento. Sem investigação aprofundada, não haverá base científica que permita recomendar com segurança o uso destes produtos. No artigo, os médicos em representação do RACP lembram que, numa situação semelhante, o uso de opióides no tratamento de dor crónica em doentes que não tinham cancro sem uma base científica sustentável foi associado a mortes por overdose sem resultados visíveis na diminuição geral da dor.

Fact check. Canábis para fins medicinais: o que dizem os partidos é o que diz a ciência?

Os relatos pontuais de pessoas que sentiram melhorias depois de consumirem canábis ou os parcos trabalhos publicados em revistas científicas têm feito com que a opinião pública e os doentes pressionem os decisores políticos e os profissionais de saúde. Mas “a percepção pública e a excessiva promoção pelos media deve ser moderada pela evidência clínica”, defendeu uma equipa de médicos do Hospital Pediátrico de Sydney (Austrália), na revista científica The Medical Journal of Australia.

Uma das áreas que preocupa esta equipa é o uso de canabinóides na epilepsia pediátrica, em particular pelo potencial de uso nas formas intratáveis de epilepsia, as formas que resistem a pelo menos dois medicamentos atualmente existentes. “São precisos melhores tratamentos e mais ensaios clínicos de elevada qualidade para avaliar a eficácia”, escreveram os médicos. “Os ensaios clínicos demonstraram que o canabidiol [a molécula presente na canábis com mais interesse para os fins medicinais] pode ter efeitos no tratamento da epilepsia nos doentes com síndrome de Dravet. Contudo, carece de replicação [repetição da investigação para confirmar resultados].”

“Há vários assuntos que requerem resolução antes de se aumentar o acesso à canábis médica, incluindo a necessidade de mais evidência de segurança a longo prazo; eficácia, doses e indicações; garantia de qualidade alta e consistente do produto; e redução das preocupações relacionadas com o uso médico de uma droga com potencial aditivo.”