O próximo terramoto europeu está por perto, à distância de uma promessa eleitoral falhada. Após garantir durante a campanha que não faria nenhuma coligação com qualquer partido, o Movimento Cinco Estrelas (M5E) tornou-se no maior partido de Itália, com mais de 30% dos votos nas duas câmaras do parlamento italiano. Agora, se quiser governar, terá de quebrar a sua promessa eleitoral e estender a mão a outras forças políticas que a possam levar a uma maioria no parlamento. Por essas contas, pode passar uma aliança com a extrema-direita eurocética, o que pode colocar a Europa à beira de um ataque de nervos.
Depois das eleições deste domingo o M5E, liderado por Luigi Di Maio, está na mó de cima em qualquer negociação para chegar a um novo governo. Com o centro-direita e a soma dos partidos do bloco central (Força Itália e Partido Democrático) a ficar aquém de uma maioria absoluta, o M5E tornou-se no pivot da política italiana.
Foi já com esse novo status quo no horizonte que Alessandro Di Battista, deputado do M5E, disse: “As outras forças políticas devem vir falar connosco, utilizando os nossos métodos: transparência, correção e credibilidade, baseados em propostas e soluções que queremos garantir a este país”.
Horas depois, Ricardo Fraccaro, também deputado do M5E, tornava a insistir na mesa de negociações — e na posição dominante do seu partido. “Ninguém pode governar sem o M5E. Só um governo do M5E pode dar um programa real de governo a este país”, disse. “A coisa mais bonita dos próximos dias é que vamos falar com todas as forças políticas sobre o conteúdo. Sobre coisas de que o país precisa. Nós estamos prontos.”
O M5E está, afinal, disposto a falar. Mas com quem? Este domingo, nada ficou fechado. Porém, já há algumas pistas.
Do Partido Democrático (PD), liderado por Matteo Renzi, as declarações que surgiram foram de reconhecimento da derrota. O bloco do centro-esquerda ficou em terceiro nestas eleições, atrás do M5E e do centro-direita. O facto de ser o segundo maior partido é, neste contexto, um fraco consolo para o PD. “Com estes números vamos para a oposição”, disse o deputado do PD Emanuele Fiano, próximo de Matteo Renzi. O vice-presidente do partido, Maurizio Martina, admitiu que este é um resultado “muito claro na sua negatividade”. De Matteo Renzi não se ouviu nenhuma palavra, mantendo-se a dúvida em torno de uma possível demissão da liderança do partido.
Entre os partidários do Força Itália (FI), de Silvio Berlusconi, o silêncio foi regra. O centro-direita, coligação pré-eleitoral da qual faz parte do FI, foi o maior bloco das eleições. Porém, o desfecho não favorece o partido de Silvio Berlusconi. O FI e Il Cavaliere tinham nestas eleições uma aposta complicada: Silvio Berlusconi, condenado por evasão fiscal e aos 81 anos, liderava o seu partido apesar de ser estar legalmente impedido de desempenhar cargos políticos. Aliou-se, como de costume, a partidos do centro-direita da extrema-direita, entre os quais o Liga. No final, os eleitores do centro-direita demonstraram que preferiram a Liga ao FI. Assim, invertendo o que era uma constante no centro-direita, a Liga passou a ser o maior partido deste bloco — e essa mudança não é de somenos.
O que fará a Liga com esta prestação? Do lado do FI, o desejo parece ser o de que não deserte o bloco do centro-direita. “Não acho que a Liga vá fazer um acordo com o M5E, o acordo com o centro-direita é forte”, disse Paolo Romani, líder da bancada do FI no Senado, na tertúlia eleitoral da RAI1.
No entanto, independentemente do wishful thinking dos correlegionários de Silvio Berlusconi, o partido de Matteo Salvini foi ambíguo nas declarações que fez na altura de avaliar os resultados. Em conferência de imprensa, Giancarlo Giorgetti, vice-presidente da Liga, disse: “Naturalmente, primeiro falaremos com os nossos aliados”. Giancarlo Giorgetti deixou então claro que o seu partido vai falar com o Força Itália primeiro, mas será que depois vai sentar-se à mesa com o M5E? Numa conferência de imprensa sem direito a perguntas dos jornalistas, ficou tudo por esclarecer. Apenas disse: “Sabemos o que devemos fazer. Vemos o futuro com grande tranquilidade e serenidade”.
Mais tarde, outro dirigente da Lega, Lorenzo Fontana, tornou a deixar uma mensagem que pode insinuar uma aproximação ao M5E e um afastamento do FI, pondo fim ao bloco de centro-direita. “Começou a revolução do bom senso, graças à democracia e aos nossos cidadãos, que finalmente perceberam que o mainstream e os grandes poderes não defendem os seus interesses”, disse. Haverá político mais mainstream e homem mais representativo dos “grandes poderes” italianos do que Silvio Berlusconi? A pergunta é retórica, mas as palavras de Lorenzo Fontana deixam pouco espaço para dúvidas.
Da parte de Matteo Salvini, não houve discursos. Apenas um tweet: “A minha primeira palavra: OBRIGADO!”.
La mia prima parola: GRAZIE! pic.twitter.com/DRXiWVAHQp
— Matteo Salvini (@matteosalvinimi) March 4, 2018
Ao M5E e à Liga pode ainda juntar-se o Irmão de Itália (IdI), partido de extrema-direita eurocética que também fez parte do bloco do centro-direita.
Em todas as projeções, a soma das percentagens previstas para estes três partidos eurocéticos e populistas ultrapassavam os 50%. E, mesmo que isso não se traduza em assentos parlamentares — na nova lei eleitoral italiana, um terço dos deputados são eleitos em círculos uninominais —, isso não esconde o facto de metade dos italianos terem votado em partidos anti-sistema, que já defenderam a saída de Itália, a quarta maior economia da Europa, tanto da UE como do euro.
Euroceticismo, imigração, impostos: o que une e separa M5E e Liga
Entre os dois partidos, há vários pontos em comum. Um deles, diz respeito a um dos principais temas destas eleições: o combate à imigração. Tanto um partido como o outro pretende diminuir a imigração — mas em graus diferentes, com métodos distintos. O M5E quer simplificar (leia-se, facilitar) o processo de deportação de imigrantes clandestinos e prometeu a contratação de 10 mil funcionários públicos que terão a missão de determinar quem sai e quem fica em Itália. Já a Liga prometeu expulsar todos os imigrantes clandestinos de Itália — um fim que poderá passar pelos meios propostos pelo M5E.
Depois, a União Europeia e o euro. Nestes dois temas, ambos os partidos já demonstraram posições mais aguerridas do que aquelas que levaram para a campanha eleitoral. Ainda assim, a Liga quer discutir um regresso ao tempo pré-Maastricht — o que implicaria uma saída do euro — e o M5E não descarta essa ideia. Na prática, os dois partidos podem chegar a um consenso que passaria pelo recrudescimento da mensagem de Itália para Bruxelas — onde a crise migratória, que se sente em Itália como em nenhum outro país europeu à exceção da Grécia, seria um factor importante.
Até no combate às vacinas os dois partidos estão em acordo. Os dois querem baixar de 10 para 4 o número de vacinas obrigatórias para menores de 16 anos. Por isso, com algum exagero, há quem chame a este hipotético acordo uma aliança anti-imigração, anti-Europa e anti-vacinas.
Mas também há diferenças entre estes dois partidos. A maior, tem a ver com a política fiscal que cada um defende. A Liga, liberal no que toca à economia, quer implementar um sistema de flat tax, onde todos os cidadãos pagam os mesmos 15% de impostos sobre o rendimento. Já o M5E, cujo crescimento é feito através da sedução de eleitores do centro-esquerda, não acredita nesse modelo. Luigi Di Maio disse até que a flat tax é uma solução “inconstitucional”.
Para já, o espetro de um governo populista e eurocético em Itália é ainda distante — e não é certo que se venha a concretizar. Este só se concretizará se o M5E demonstrar flexibilidade para negociar com outros partidos — algo que se gaba de nunca ter feito nos seus quase 9 anos de existência — e se a Liga e os IdI estiverem dispostos a sair debaixo do telhado do Força Itália, de onde nunca verdadeiramente saíram, no que toca à política nacional.
Os próximos tempos serão marcados por negociações entre partidos, com os quais o Presidente, Sergio Mattarella, estará reunido. Será a ele que caberá a tarefa de indigitar o candidato a primeiro-ministro, que terá depois de ser aprovado pela maioria das duas câmaras do parlamento italiano: o Senado e a Câmara dos Deputados. Desde 1992, em média, os governos italianos tomaram posse 51 dias depois das eleições.
Since 1992 it's taken an average of 51 days to form a new government in Italy. Nice chart from JPMorgan. Thanks @abdroma on https://t.co/uEYsxU153s #ItalyElection2018 pic.twitter.com/7Tf1Ur6Eui
— Agnese Ortolani (@Agnese_Ortolani) March 5, 2018
Seja como for, a noite de 4 de março foi de gáudio para alguns dos eurocéticos mais ilustres da Europa. O antigo líder do UKIP e uma das personalidades mais conhecidas da campanha de 2016 pelo Brexit, Nigel Farage, deu os “parabéns” aos seus “colegas” do M5E.
Congratulations to my colleagues in the European Parliament @Mov5Stelle for topping the poll tonight.
— Nigel Farage (@Nigel_Farage) March 5, 2018
Também Marine Le Pen, líder da Frente Nacional, em França, assinalou com felicidade as primeiras projeções em Itália. “A União Europeia vai ter uma noite má… :D” , escreveu Marine Le Pen, no Twitter.
L’Union européenne va passer une mauvaise soirée… ???? MLP #Italie???????? #Elezioni2018
— Marine Le Pen (@MLP_officiel) March 4, 2018
Outro eurocético que acompanhou as eleições italianas — neste caso, deslocou-se mesmo até Roma — foi o antigo chefe de estratégia da Casa Branca de Donald Trump, Steve Bannon. Numa entrevista publicada na manhã de domingo no Corriere Della Sera, o antigo diretor do Breitbart falava sobre a possibilidade de uma coligação governativa do M5E e da Liga: “Uma coligação entre todos os populistas seria fantástica. Iria perfurar o coração de Bruxelas, ia meter-lhes um medo tremendo”.