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O padre Ivan Petliak em casa com a família, na Quinta do Conde
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O padre Ivan Petliak em casa com a família, na Quinta do Conde

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

O padre Ivan Petliak em casa com a família, na Quinta do Conde

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

O celibato obrigatório devia acabar na Igreja? Três padres casados contam a sua história

Padres católicos são obrigados ao celibato, mas há exceções à regra. Os padres Jonathan, Ivan e Nazar, que são casados, contam a sua história — mas avisam que não é a solução para a falta de vocações.

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— Ide em paz e o Senhor vos acompanhe.

— Graças a Deus.

São quase 18h quando termina a missa de quarta-feira na igreja de Nossa Senhora da Boa Água, na paróquia da Quinta do Conde (concelho de Sesimbra, distrito de Setúbal). O padre Ivan Petliak, um ucraniano de 49 anos grisalho e bem-disposto, despede-se dos paroquianos à porta da modesta igreja, que ocupa um dos quarteirões da povoação dividida a régua e esquadro em quadrículas. Depois de todos se irem embora, pega no carro, estacionado nas traseiras da igreja, e segue caminho. Tem onde estar daqui a cerca de 20 minutos, no final de mais um dia de trabalho: à porta da escola básica para ir buscar o filho Roman, de 8 anos.

Ainda vai fazer dois desvios para apanhar outros dois filhos: Maria, de 14 anos, e Demian, de 17. Em dias normais, iriam para casa de transportes públicos ou a pé, mas a chuva torrencial que cai esta quarta-feira torna a tarefa mais difícil e o pai dá-lhes uma ajuda. Antes das 19h, Ivan e os três filhos já estão em casa, onde os espera Zenovia Petliak, a professora de educação física de 47 anos com quem Ivan casou em 1997, depois de se conhecerem nos escuteiros ucranianos.

“Durante alguns anos, fui o único padre em Portugal com mulher e filhos”, conta Ivan, na sala de estar da casa onde mora com a família e onde aceita receber o Observador para contar a história desta circunstância extraordinária. “Pelo menos, legal”, acrescenta a rir-se.

O padre Ivan Petliak durante a missa de quarta-feira às 17h na igreja de Nossa Senhora da Boa Água, na Quinta do Conde

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Ivan Petliak é padre da Igreja Greco-Católica Ucraniana, uma das 24 igrejas que compõem a Igreja sob a autoridade do Papa (a latina e as 23 Orientais). Chegou a Portugal em 2016 e instalou-se na diocese de Setúbal no ano seguinte, com a missão de dar apoio pastoral à vasta comunidade de imigrantes ucranianos que vivem na península de Setúbal. Ao contrário do que acontece na Igreja Católica de rito latino (maioritária em Portugal e na generalidade do Ocidente), em muitas Igrejas Católicas Orientais o celibato não é uma obrigação transversal a todo o clero: há padres celibatários e monges, mas também há padres que casam e constituem família.

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Quando veio para Portugal, o padre Ivan Petliak trouxe consigo dois seminaristas, com o objetivo de completarem a sua formação na Universidade Católica Portuguesa, serem ordenados padres e ficarem no país a servir a comunidade ucraniana. Um deles voltou para a Ucrânia ao fim do mês, mas o outro, Nazar Kruk, ficou: casou-se em Setúbal em setembro de 2023 com a mulher que conheceu por uma story do Instagram, e foi ordenado padre no verão passado, no Santuário de Fátima. Ao mesmo tempo que acompanham as comunidades ucranianas, estes padres colaboram com as dioceses portuguesas (onde faltam padres) no serviço às paróquias do rito romano.

Encontramos o padre Nazar Kruk, 29 anos, na companhia da mulher, Tetiana Antish, da mesma idade, numa esplanada em Setúbal com vista para o rio Sado e a península de Tróia. Estamos a menos de 100 metros da igreja de São Sebastião, no centro da cidade — não só a igreja onde Nazar e Tetiana se casaram, mas também a igreja onde, alguns meses depois, Nazar foi ordenado diácono numa celebração inédita em Portugal, realizada no rito bizantino, tradicional desta igreja ucraniana.

Depois da ordenação sacerdotal de Nazar, passou a haver em Portugal dois padres católicos legalmente casados. Mas Nazar e Ivan são uma ínfima exceção entre os milhares de sacerdotes que vivem e trabalham em Portugal. São católicos, partilham a fé e a pertença eclesial com os católicos portugueses, celebram os mesmos sacramentos e estão igualmente sob jurisdição do Papa Francisco — mas não estão obrigados à disciplina do celibato e vivem abertamente com as suas famílias.

Como é possível? Ambos já ouviram esta pergunta muitas vezes, embora tenham experiências diferentes. Ivan Petliak não esconde que já foi alvo de críticas, tanto de fiéis como de outros padres. “Por vezes, os padres católicos da Igreja Romana pensam que estão acima de nós. Que escolheram um caminho melhor, a que se dedicam totalmente, que fazem mesmo sacrifício, enquanto nós dividimos a nossa vida”, admite Ivan, sentado à mesa junto da mulher e dos filhos, na sala de jantar da sua casa. “Algumas pessoas conservadoras têm um olhar que não querem mudar. Algumas não me aceitaram, não queriam rezar comigo. É a sua escolha. Eu faço a minha parte.”

A experiência de Nazar é diferente. À entrada da igreja de São Sebastião, o padre e a mulher são recebidos entusiasticamente por duas funcionárias da paróquia. “Padre Nazar, há tanto tempo! Tetiana! Como está? Já está a passar um aninho desde o casamento, não é?”, pergunta uma delas, enquanto distribui beijos e abraços pelo casal e nos abre a porta para que possamos visitar a igreja e fotografar Nazar e Tetiana no interior.

O padre Nazar Kruk com a sua mulher, Tetiana Antish, na igreja de São Sebastião, em Setúbal, onde casaram

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

“As pessoas perguntam sempre como estamos, mandam beijinhos. São muito gentis. As pessoas em Portugal são muito gentis”, garante Tetiana. Nazar reconhece que os portugueses acham “estranho” perguntar a um padre pela esposa, mas assegura que nunca sentiu discriminação, nem da parte dos católicos portugueses com quem se cruza, nem da parte dos jovens portugueses com quem partilhou os corredores do seminário de Almada durante vários anos: curiosidade por uma realidade diferente, sim, mas nunca olhares desconfiados.

A realidade com a qual Nazar Kruk cresceu é, de facto, radicalmente diferente daquela a que estamos habituados no contexto da Igreja Católica em Portugal. Até ir para o seminário, já com 18 anos, Nazar só conhecia padres casados e não fazia ideia da existência de padres celibatários. Para o jovem natural de Brody, na região ocidental da Ucrânia, a imagem clássica de um padre era a de um homem como qualquer outro, com o seu emprego e com a sua família.

Sacerdócio e casamento são “obviamente compatíveis”

Uma brevíssima pausa nas histórias de Ivan e Nazar para tentar responder à pergunta que, por esta altura, estará na cabeça de muitos leitores: afinal, na Igreja Católica pode haver padres casados? Então mas o celibato não é obrigatório para os padres católicos?

Ao contrário daquela que poderá ser a ideia generalizada, o celibato dos padres não é um dogma da fé católica e não é considerado uma verdade revelada por Deus. É, na verdade, uma regra disciplinar da Igreja Católica — e nem sequer foi sempre assim. Um olhar pela história da Igreja mostra que a disciplina do celibato para os membros do clero foi gradualmente introduzida na instituição e não estaria presente nos primeiros tempos do Cristianismo. Sem fugir sequer do estrito âmbito dos textos canónicos, os evangelhos, por exemplo, referem a dada altura que Jesus Cristo curou a sogra de Pedro — uma passagem que é habitualmente invocada como a demonstração de que até São Pedro, o homem que se tornaria no primeiro Papa, foi casado.

Acredita-se que a primeira referência formal ao celibato dos padres surja num documento que resultou do concílio de Elvira (a atual Granada, em Espanha), no início do século IV, que determinou que os membros do clero deviam “abster-se completamente das suas mulheres e não gerar filhos” — o que leva a crer que, até ali, essa era a prática habitual. Aquele, porém, não foi um concílio universal e os seus documentos não produziram uma legislação aplicável a toda a Igreja. Essa determinação só surgiria vários séculos mais tarde, em 1139, no Segundo Concílio de Latrão, que decidiu formalmente que os padres estavam proibidos de casar e de ter qualquer relação íntima e sexual.

Esta regra perdura até hoje na Igreja Católica. O Catecismo da Igreja Católica é explícito quando diz que “todos os ministros ordenados da Igreja latina, à exceção dos diáconos permanentes, são normalmente escolhidos entre homens crentes que vivem celibatários e têm vontade de guardar o celibato ‘por amor do Reino dos céus’”.

"Dois sacramentos não podem, simplesmente, ser interpretados como mutuamente exclusivos. Não são ideias: são dons da mesma pessoa, Cristo."
Jonathan Goodall, padre católico e ex-bispo anglicano

“Chamados a consagrarem-se totalmente ao Senhor e às ‘suas coisas’, dão-se por inteiro a Deus e aos homens. O celibato é um sinal desta vida nova, para cujo serviço o ministro da Igreja é consagrado: aceite de coração alegre, anuncia de modo radioso o Reino de Deus”, justifica o Catecismo.

Esta é, aliás, a justificação mais comum apresentada pela Igreja para a necessidade do celibato dos padres: os sacerdotes renunciam a uma vida familiar tradicional para se entregarem por completo a Deus e à Igreja. Juram obediência ao bispo, que os pode enviar para qualquer lugar e para qualquer missão — e abdicam de uma vida familiar que lhes poderia limitar essa vida. Contudo, aquela não é a única explicação para o celibato dos sacerdotes. Os historiadores não têm hesitado em referir também uma justificação material: a Igreja tinha interesse em impedir os padres de casar e de ter filhos, para que, quando morressem, os seus bens revertessem a favor da Igreja em vez de serem herdados pela família.

Não se tratando de um dogma de fé, a regra disciplinar do celibato pode ser alterada a qualquer momento pela hierarquia da Igreja Católica. E, nos últimos anos, tem-se intensificado o debate dentro da Igreja sobre a possibilidade de esta disciplina vir a ser revertida. Muitos acreditam que pode estar no fim do celibato obrigatório a chave para a crise de vocações sacerdotais que a Igreja atravessa, mas outros desconfiam de uma solução fácil para um problema estrutural. Em 2019, no contexto do Sínodo dos Bispos sobre a Amazónia, a cúpula da Igreja chegou mesmo a ter em cima da mesa a possibilidade de abrir exceções ao celibato sacerdotal, mas a ideia não avançou. Agora, no contexto do novo Sínodo dos Bispos sobre a sinodalidade, uma eventual revisão do celibato obrigatório está entre os temas estudados por um dos grupos de trabalho criados pelo Papa Francisco.

Porém, tudo isto diz respeito apenas à Igreja latina. Quando a disciplina do celibato foi formalizada, no século XII, já tinha ocorrido o grande cisma de 1054, que dividiu o mundo cristão ao meio, entre católicos (fiéis a Roma) e ortodoxos (fiéis aos patriarcas orientais). Enquanto a disciplina do celibato se cristalizou na Igreja latina, nunca foi adotada nas igrejas ortodoxas — onde os padres sempre puderam escolher casar ou permanecer celibatários.

Nos séculos que se seguiram ao cisma, fruto de cisões dentro do mundo ortodoxo, algumas igrejas orientais decidiram romper com a autoridade dos patriarcas orientais e submeter-se à autoridade do Papa — mas pediram a Roma para manter as suas tradições ancestrais, incluindo a possibilidade de celebrar no rito bizantino, as suas hierarquias internas e também a ordenação sacerdotal de homens casados. Foi neste contexto que, em 1596, nasceu a Igreja hoje conhecida como Greco-Católica Ucraniana, a que pertencem os padres Ivan Petliak e Nazar Kruk: mantém a tradição bizantina que preservou durante séculos, mas encontra-se em comunhão com a Santa Sé.

Atualmente, existem 23 Igrejas Católicas Orientais, que, em conjunto com a Igreja Católica latina, formam o grupo de 24 igrejas sob jurisdição do Papa Francisco. No clero destas igrejas orientais há milhares de sacerdotes casados e com filhos.

Mas não é só no contexto das igrejas orientais que é possível encontrar, dentro da Igreja Católica, padres casados.

O caso chegou às páginas dos jornais britânicos em setembro de 2021: Jonathan Goodall, bispo anglicano da diocese de Ebbsfleet e antigo secretário particular do Arcebispo de Cantuária, anunciara a sua intenção de se converter à Igreja Católica e ser ordenado padre católico. Como muitos padres e bispos da Igreja Anglicana, Goodall é casado e tem filhos. Contudo, naquele ano, Goodall juntou-se a um grande número de padres e bispos anglicanos que tomaram a decisão de deixar a Igreja de Inglaterra e entrar em comunhão com a Santa Sé — em grande parte por discordarem da política anglicana de admitir a ordenação sacerdotal de mulheres.

Em 2009, sob a liderança do Papa Bento XVI, e perante uma grande onda de conversões de anglicanos à Igreja Católica, o Vaticano publicou uma norma legal que abriu as portas a mais uma exceção: os padres e bispos anglicanos casados que quisessem converter-se ao Catolicismo podiam ser, excecionalmente, admitidos à ordenação sacerdotal na Igreja Católica mantendo-se casados. No documento, Bento XVI fez questão de sublinhar que a exceção “não significa qualquer mudança na disciplina da Igreja sobre o celibato sacerdotal”, mas tinha como objetivo contribuir para a unidade dos cristãos.

Aproveitando esta exceção, Jonathan Goodall foi ordenado padre católico em 2022 e, atualmente, é o pároco da paróquia católica de São Guilherme Fitzherbert, em Stanmore, no norte de Londres. A mulher do padre Jonathan, Sarah, também se converteu ao Catolicismo. Em declarações ao Observador por escrito a partir do Reino Unido, o sacerdote católico defende que o sacerdócio e o casamento são “obviamente compatíveis”.

“Dois sacramentos não podem, simplesmente, ser interpretados como mutuamente exclusivos”, afirma o sacerdote, que é pai de dois filhos, de 30 e 35 anos. “Não são ideias: são dons da mesma pessoa, Cristo.”

À esquerda, Jonathan Goodall como bispo anglicano (DR); à direita, a ordenação de Goodall como padre católico pelo cardeal Vincent Nichols (Catholic Church England and Wales/CC BY-NC-ND 2.0)

“Não tive de escolher entre ser padre e ser casado”

Como a maioria dos britânicos, Jonathan Goodall nasceu, em 1961, em Yorkshire, numa família anglicana, pertencente à Igreja de Inglaterra — que rompeu com a autoridade do Papa no século XVI para se tornar numa igreja independente da influência da Europa continental, sob a autoridade do Rei de Inglaterra (e, num plano mais mundano, para permitir que o Rei Henrique VIII se divorciasse para casar com Ana Bolena).

“Fui criado numa família anglicana. Evangélica, mas bastante formal do ponto de vista litúrgico. Os meus pais também experienciaram, em parte, o movimento carismático durante a minha adolescência e eu tive alguma exposição a ele”, recorda Jonathan ao Observador, sublinhando que esse contacto com diferentes realidades cristãs na infância contribuíram para formar a sua consciência. “Alertaram a minha jovem mente para levar a sério a doutrina e a presença do Espírito Santo”, resume.

A ideia de um dia se poder vir a tornar a padre amadureceu muito gradualmente na cabeça de Jonathan. “O discernimento de uma vocação para um ministério ordenado pode ser muito prolongado”, reconhece. “No meu caso, o que começou com algumas conversas com padres na minha adolescência (e início da adolescência, em alguns aspetos) desenvolveu-se durante a universidade.”

A vocação, contudo, não se afirmou de imediato. Depois do ensino regular, Jonathan mudou-se para Londres, onde estudou música no Royal Holloway College da Universidade de Londres. Foi lá que conheceu Sarah Hicks, “filha, neta, bisneta e por aí fora de uma longa linhagem de clérigos anglicanos que se estende até ao século XVII”, explica. “Conhecemo-nos na universidade, em Londres, como estudantes de música. Mas foi só uns anos mais tarde, quando ela estava em Londres a trabalhar na BBC, que a nossa relação evoluiu para o casamento.”

Depois da universidade, Jonathan Goodall ainda teve dois empregos: trabalhou na área das publicações académicas e também como cantor profissional. Mas “a esperança e o desejo de ser padre” sempre lá estiveram, revela. Em 1986, aos 25 anos de idade, o jovem Jonathan mudou-se para a Universidade de Oxford, para começar os estudos em Teologia que lhe permitiriam um dia ser ordenado padre.

Ao contrário do que acontece a um jovem católico neste processo de discernimento, Jonathan não se viu dividido entre a vocação sacerdotal e a vontade de casar e ter uma família. “Não tive de escolher entre ser padre e ser casado”, explica o sacerdote, reconhecendo, contudo, que teria de escolher, dentro da vida sacerdotal, se queria ser padre ou monge (aí, sim, teria de ser celibatário). Antes do seminário, Jonathan já tinha tido namoradas — e, durante o tempo de seminarista, namorou com Sarah, com quem pretendia casar um dia. Para ele, nada disto era incompatível.

“Na Igreja de Inglaterra, ‘todos [os clérigos] podem, mas nenhum tem de casar’. No início da minha vida adulta, a minha atitude era muito parecida à de muitos ortodoxos. Sabia que a minha vida seria vivida em algum tipo de comunidade com votos, mas ainda tinha de testar se seria uma vida monástica ou familiar”, recorda. Jonathan reconhece que também sentia uma “forte atração pela vida monástica” e que, ao longo da sua vida, sempre se manteve “próximo de várias comunidades” de monges. Contudo, Jonathan e Sarah queriam casar.

“No final da década de 1980, a meio da minha formação no seminário, tive de pedir permissão ao meu bispo diocesano para casar”, relata. “Ele concordou, felizmente, porque eu queria seguir a prática do Novo Testamento e casar antes de ser ordenado diácono e padre.”

"O sacerdócio tem de ser capaz de demonstrar que consegue empatizar com os desafios e pressões experienciadas na vida familiar contemporânea, tanto como forma de cuidado pastoral na Igreja, como de apelo missionário além dela."
Jonathan Goodall, padre católico e ex-bispo anglicano

Jonathan e Sarah casaram-se em 1987. Dois anos depois, em 1989, Jonathan Goodall foi ordenado diácono — e em 1990 foi ordenado padre. Seguiram-se anos intensos numa carreira eclesiástica que levaria Jonathan a ser ordenado bispo e a trabalhar no gabinete do arcebispo de Cantuária, o líder espiritual da Comunhão Anglicana. Conciliar tudo isto com a vida familiar foi “por vezes difícil, mas nunca impossível”, admite o agora padre católico.

“Ela nunca quis casar com um padre”, lembra Jonathan. Mas, apesar disso, “no geral, acho que não se arrependeu”, acrescenta o sacerdote. “Embora ela pudesse ter seguido uma carreira a tempo inteiro na música (como intérprete ou na rádio), eu e os nossos filhos estamos-lhe eternamente gratos pela dedicação altruísta da maior parte das suas energias à nossa vida familiar.”

“Depois do meu primeiro trabalho como pároco, tive alguns anos extremamente atarefados na Abadia de Westminster, depois dos quais tive três funções (na diocese na Europa, no Palácio de Lambeth e como bispo) que implicaram viagens frequentes e extensas, muitas vezes ao estrangeiro”, conta o sacerdote. “Mas, graças a Deus, quando estava em casa, a falta de obrigações paroquiais permitiu à vida familiar florescer”, acrescenta, destacando que os seus filhos cresceram “sem ressentimentos para com a Igreja”, como acontece com “os filhos de muitos clérigos”.

Apesar de, na Igreja Anglicana, não existir uma exigência disciplinar relacionada com o celibato clerical, a verdade é que, à semelhança do que sucede na Igreja Católica, é esperada dos membros do clero uma entrega total da sua vida ao serviço da Igreja — o que levanta problemas óbvios. Como conciliar a vida familiar com as muitas exigências profissionais da vida clerical é apenas uma, que os membros do clero partilham com outras profissões igualmente exigentes. Mas os votos de obediência ao bispo, por exemplo, levantam questões de ordem prática: quando um padre é enviado para uma nova missão ou paróquia, a vida profissional da mulher e a vida escolar dos filhos são tidas em conta? Numa Igreja que tem ensinamentos tão específicos sobre a vida familiar, o que é esperado da família de um sacerdote? Deve a vida familiar do padre estar à vista dos seus paroquianos? Onde reside a lealdade de um padre quando houver um conflito entre as posições da Igreja e as posições da família?

Desde o século XVI, explica Jonathan Goodall, o clero da Igreja Anglicana tem sido composto por uma mistura de padres casados e padres solteiros. Mas, acrescenta, as questões da vida familiar e sexual, fundamentais para a formação de um sacerdote, estão praticamente ausentes dos seminários.

“Sempre achei curioso e algo arriscado que o modo de vida de um padre (casado ou solteiro/celibatário) não seja um aspeto mais sério e programado da formação individual”, considera. “Penso que contribuiu para um certo grau de indiferença sobre o significado do casamento ou do estado de solteiro na vida e na abordagem ministerial do clero anglicano, quando, na verdade, sobretudo no mundo de hoje, é imensamente importante.”

De acordo com Jonathan Goodall, estes temas são habitualmente relegados para o “foro interno”, ou seja, para a direção espiritual — o acompanhamento individual que cada seminarista tem com um padre —, em vez de serem considerados como “características da vida institucional” da Igreja.

“A Igreja tem de demonstrar que a vida familiar não é estranha ao sacerdócio”

Durante os 32 anos de sacerdócio anglicano, Jonathan Goodall teve vários cargos de relevo na hierarquia da Igreja de Inglaterra. Em 2005, assumiu o cargo de secretário ecuménico do arcebispo de Cantuária, auxiliando diretamente o líder da Comunhão Anglicana nos seus esforços de diálogo com as outras denominações cristãs, incluindo a Igreja Católica (que representará perto de 10% da população britânica) e as Igrejas Ortodoxas. Goodall não esconde que sempre se sentiu relativamente próximo da Igreja Católica, tanto que não descreve a sua adesão ao Catolicismo em 2021 como uma “conversão”, que classifica como um conceito “superficial”, mas sim como uma “conclusão, uma realização, uma vocação”.

Em 2013, Goodall foi ordenado bispo na Igreja Anglicana e nomeado bispo de Ebbsfleet — um cargo destinado a supervisionar as paróquias anglicanas mais tradicionalistas, que não aceitaram a ordenação sacerdotal de mulheres e se mantiveram mais próximas das práticas originais católicas.

Mais de três décadas depois de ter sido ordenado padre na Igreja Anglicana, o bispo Goodall decidiu juntar-se ao grupo crescente de padres e bispos anglicanos que estavam a trocar a Igreja de Inglaterra pela Igreja Católica — uma onda de conversões que se intensificou em 2010, depois de a Igreja Anglicana ter decidido abrir a ordenação episcopal a mulheres.

“Era um passo que, durante 33 anos como ministro anglicano, eu sabia que o Senhor me podia chamar a dar. Mas até me encontrar numa encruzilhada, também sabia (e outros, nem todos anglicanos, confirmam que também sabiam) que era chamado a estar onde o Senhor me tinha colocado, e trabalhei arduamente tanto para a minha igreja como para a Comunhão Anglicana, e atrevo-me a dizer que trabalhei arduamente para outras e todas as igrejas, especialmente as Igrejas Católica e Ortodoxa, já que a minha vocação tinha desde o início uma dimensão ecuménica e internacional”, conta Goodall ao Observador.

O agora sacerdote católico garante não ter qualquer ressentimento relativamente à Igreja de Inglaterra. “Reconheci o que o Senhor me estava a pedir”, lembra, sublinhando que a decisão foi tomada numa “fase extremamente exigente do ministério episcopal”. A garantia de uma “continuidade perfeita” no ministério sacerdotal — assegurada pela norma legal aprovada em 2009 pelo Papa Bento XVI — foi um dos fatores que levaram Goodall a sentir-se “atraído pela integridade da comunhão católica” e a abordar o cardeal Vincent Nichols, arcebispo de Westminster e principal líder católico do Reino Unido.

O padre Jonathan Goodall com o cardeal Vincent Nichols no dia da sua ordenação como padre católico

Catholic Church England and Wales/CC BY-NC-ND 2.0

Jonathan Goodall garante que se sentiu mais “puxado” pela Igreja Católica do que “empurrado” pela Igreja Anglicana.

O anúncio, porém, abateu-se com estrondo sobre a Igreja Anglicana. “A dada altura, o anúncio (o primeiro de um bispo anglicano em mais de uma década) estava em terceiro lugar nas trends do Twitter. E em 26 jornais estrangeiros”, recorda Goodall. “Soube, naquele momento, que cada relação, pessoal e profissional, estava a ser transformada, de uma vez, renovada ou aprofundada, ou mesmo ferida ou destruída.”

Goodall sabia que, como bispo, tinha “uma responsabilidade maior de não causar escândalo com uma decisão destas”. A decisão, admite, não foi motivo de alegria para todos. “Mas não acho que tenha causado um escândalo, apesar de ter sido um grande choque para muitos.”

Na carta que enviou aos padres e diáconos da diocese que liderava, em setembro de 2021, Goodall classificou a decisão como “difícil” e admitiu sentir “um misto de emoções”, mas garantiu que estava “confiante” de que estava a “responder à vontade de Deus” ao dar aquele passo. O arcebispo de Cantuária, Justin Welby, publicou um comunicado em que confirmou que tinha aceitado a renúncia de Goodall “com pesar”.

Alguns meses depois, em março de 2022, Jonathan Goodall foi ordenado padre católico na Catedral de Westminster pelo cardeal Vincent Nichols. Ao abrigo da disposição legal aprovada em 2009 por Bento XVI, Goodall pôde excecionalmente ser admitido no clero católico mantendo-se casado com Sarah Hicks.

Ao Observador, Goodall lembra que foi acompanhado pelo gabinete do cardeal Nichols durante aqueles meses — mas que o facto de, durante vários anos, ter trabalhado como secretário ecuménico do arcebispo de Cantuária ajudou, já que conhecia o cardeal há vários anos. “Eles ‘sabiam de onde eu vinha’”, explica.

Quando, em 2009, Bento XVI aprovou aquela constituição que permitiu a conversão de membros do clero anglicano à Igreja Católica com uma dispensa excecional da disciplina do celibato, o padre Goodall trabalhava no gabinete do arcebispo de Cantuária e ajudou-o a preparar uma análise ao documento, na altura classificado pelos anglicanos como “uma resposta pastoral imaginativa para as necessidades de alguns”, mas sem “nenhuma inovação eclesial”. “Se essa foi ou não uma resposta prematura e quão fiel é a um património e a um método teológico anglicano mais completo, é discutível. Mas [o documento] tornou-se uma parte muito valorizada da vida católica aqui na Inglaterra, e estou muito grato por isso”, comenta hoje.

A mulher de Jonathan, Sarah, “tornou-se católica algumas semanas antes de mim”. Os filhos, por seu turno, “vão fazer o seu próprio caminho”.

Desde que foi ordenado padre na Igreja Católica, Jonathan Goodall tem trabalhado como pároco na paróquia de São Guilherme Fitzherbert, em Stanmore, no norte de Londres. É um padre católico casado — uma exceção à disciplina do celibato que, no Reino Unido, não é assim tão excecional. “Os casos de clérigos casados no trabalho paroquial católico são mais frequentes na Inglaterra e no País de Gales do que talvez seja óbvio para si e para os seus leitores”, diz o padre Goodall ao Observador, referindo-se aos muitos clérigos anglicanos que optaram pela conversão ao Catolicismo.

O historial de padres anglicanos que se converteram à Igreja Católica contribuiu para consolidar a ideia de que “antigos clérigos anglicanos casados, devidamente testados, têm dons que a Igreja Católica pode receber e distribuir sem controvérsia”.

Em Stanmore, um bairro residencial nos arredores da capital britânica onde vivem mais de 20 mil pessoas, o padre Goodall garante que o facto de ser um sacerdote casado e com filhos nunca representou qualquer obstáculo à sua atividade pastoral. “Na minha paróquia, o assunto quase não foi mencionado, a não ser num sentido pastoral positivo. Longe de ser um obstáculo ao trabalho pastoral, é facilitação”, assegura. “O sacerdócio tem de ser capaz de demonstrar que consegue empatizar com os desafios e pressões experienciadas na vida familiar contemporânea, tanto como forma de cuidado pastoral na Igreja, como de apelo missionário além dela.”

“Creio que a disponibilidade de alguns padres casados permite aos jovens identificarem-se com um padre”, sintetiza.

A vida de um padre casado não é, contudo, isenta de complicações — mitigadas pelo facto de Jonathan Goodall já ter 63 anos. “Se a nossa família fosse mais jovem ou maior (os nossos filhos já têm 35 e 30 anos e estão os dois casados), as coisas que são importantes no início de uma vida familiar (lugar, salários, educação, etc.) podiam representar para a Igreja uma verdadeira dor de cabeça”, reconhece.

“Uma coisa é muito clara: os recursos que são disponibilizados ao clero anglicano são moldados com base na possibilidade do casamento e da vida familiar, tal como os recursos disponibilizados ao clero católico são moldados com base no requisito do celibato”, explica o sacerdote. Caso a Igreja Católica decidisse permitir a ordenação sacerdotal de homens casados, “o modelo teria de ser repensado e adaptado a novas circunstâncias”, defende Jonathan Goodall.

Casos como o de Jonathan Goodall e de muitos outros sacerdotes britânicos (dados de 2014 davam conta de quase 400 padres anglicanos que se converteram ao Catolicismo) mostram que é possível a existência de padres casados na Igreja Católica. “A nível jurídico, claro que é possível”, reforça Goodall, questionado sobre se os exemplos dos antigos padres anglicanos podem ajudar a Igreja Católica a repensar, no futuro, a disciplina do celibato. “O Papa pode sempre dispensar uma pessoa, como a mim, do voto do celibato obrigatório, embora, se a minha mulher for chamada pelo Senhor antes de mim, eu fique imediatamente sujeito à mesma lei do celibato que qualquer outro padre.”

"A Igreja tem de ter alguma capacidade para demonstrar que a vida da maioria das pessoas, em torno de um lar familiar, não é algo estranho ao sacerdócio, a Cristo. Numa altura de grande tensão sobre as redes familiares, sobretudo nas sociedades ocidentais, os sacerdotes casados também têm o seu carisma e testemunho."
Jonathan Goodall, padre católico e ex-bispo anglicano

“O celibato tem muitas virtudes, bem como muitas vulnerabilidades — e a mente da Igreja não deve ser alterada com demasiada facilidade”, comenta o sacerdote. “Tal como a vida monástica, um sacerdócio celibatário demonstra a toda a Igreja que a vivência do evangelho e a promessa de ajudar na missão do bispo com obediência e sem distrações não é uma aspiração impossível.”

Para Goodall, o celibato “deve ser apreciado pela sua promessa missionária”, mas isso não pode significar que os membros do clero sejam “missionários solitários”, tal como Jesus não foi. “Acredito, tal como as igrejas orientais também acreditam, que a Igreja tem de ter alguma capacidade para demonstrar que a vida da maioria das pessoas, em torno de um lar familiar, não é algo estranho ao sacerdócio, a Cristo. Numa altura de grande tensão sobre as redes familiares, sobretudo nas sociedades ocidentais, os sacerdotes casados também têm o seu carisma e testemunho.”

O sacerdote lamenta também o clima de intolerância entre cristãos que continua a existir apesar dos esforços de diálogo ecuménico. “Um século de ecumenismo parece não ter retirado da cabeça dos cristãos a ideia de que uma Igreja diferente é uma Igreja deficiente”, sublinha.

“Quando recebemos aqueles que Deus, pela sua graça, chama para a nossa comunhão, naquilo que é frequentemente uma jornada difícil e desafiante, temos de nos lembrar que Deus já estava a trabalhar naquela pessoa, e através dela, antes de nós a conhecermos”, destaca Jonathan Goodall. Por isso, uma atitude de discernimento, criatividade e imaginação tem de ser trazida para este processo se queremos perceber porque é que Deus nos juntou e o que é que Deus nos deu através delas. Basta dizer que é algo em que a Igreja precisa de trabalhar.”

O celibato “é uma lei dos homens, não de Deus”

À porta da igreja de Nossa Senhora da Boa Água, na Quinta do Conde, José Lourenço (71 anos) e Ana Lourenço (68), que acabaram de sair da missa presidida pelo padre Ivan Petliak, protegem-se da chuva miudinha que dentro de poucos minutos vai dar lugar a um temporal. Vivem em Azeitão, ali perto, e foi lá que conheceram o padre ucraniano de 49 anos, quando, há uns anos, Ivan Petliak se instalou na diocese de Setúbal e assumiu a função de vigário nas paróquias de Azeitão e Quinta do Conde.

De acordo com Ana e José, a situação familiar do padre Ivan nunca foi segredo para ninguém. “Soubemos logo”, comentam com o Observador, recordando o momento em que o sacerdote ucraniano foi apresentado às comunidades pelo anterior bispo de Setúbal, José Ornelas. “Falava-se, era um pouco estranho, mas todos aceitaram. Ele é muito bem aceite. É um padre normal.” Os paroquianos reconhecem que “realmente é estranho” conhecer um padre com mulher e filhos — quando chegou a Portugal, Ivan era caso único no país —, mas também asseguram que, “passado pouco tempo, foi ultrapassado sem nenhuma dificuldade”.

À exceção das dificuldades com a pronúncia ucraniana, intensificadas pelo fraco sistema de som da igreja, os dois paroquianos não apontam qualquer crítica ao sacerdote. “Gosto muito dele”, diz José. “Muita gente gosta de se confessar com ele.”

Perguntamos se o exemplo do padre Ivan demonstra que o celibato podia deixar de ser obrigatório para os sacerdotes católicos. “Até antes de o conhecer já achava que [o celibato] podia acabar”, responde José Lourenço. “É uma lei dos homens, não de Deus.”

Ana e José dizem que não é habitual verem o padre Ivan acompanhado da mulher e dos filhos nas paróquias. “Penso que ele separa um bocadinho. Só os vi fora do ambiente daqui”, diz Ana, que concorda que o caso de Ivan pode servir de exemplo e inspiração para mudanças na Igreja. Na verdade, como nos conta a família Petliak, Zenovia e os filhos costumam frequentar a missa em rito bizantino, aos domingos, nas comunidades ucranianas de Setúbal e do Montijo — e não as missas latinas que Ivan celebra nas duas paróquias em que colabora. Demian, o mais velho dos filhos que vivem em Portugal, é até o chefe dos acólitos na comunidade ucraniana.

Ivan Petliak é padre da Igreja Greco-Católica Ucraniana
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Veio para Portugal em 2016 para acompanhar a comunidade ucraniana
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Em contrapartida pelo acolhimento na diocese de Setúbal, colabora nas paróquias de Azeitão e Quinta do Conde
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Na igreja de Nossa Senhora da Boa Água, os paroquianos elogiam o padre Ivan
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Apesar de ser um padre casado e com quatro filhos, celebra missas na paróquia como qualquer outro padre
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Recebeu uma autorização do Vaticano para poder celebrar em rito romano
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Ivan, Zenovia e os filhos Demian, Maria e Roman abrem uma exceção no dia em que recebem o Observador em casa — e falam em português. Habitualmente, o português está proibido dentro de casa, num esforço de Ivan e Zenovia para que os filhos não percam o domínio da língua ucraniana (já que os três falam um português praticamente perfeito no dia-a-dia, na escola). A família não esconde as saudades da Ucrânia: sentem-se separados do seu povo, apesar de estarem objetivamente em melhores condições do que estariam num país em guerra. Na casa da família, há uma bandeira ucraniana junto a um oratório encabeçado por um crucifixo.

O rosto de Ivan fecha-se quando lhe perguntamos pela guerra na Ucrânia, o país que deixou há quase uma década para responder ao apelo de uma missão em Portugal. A comunidade ucraniana em Setúbal e no Montijo tem-se organizado para angariar fundos para ajudar o país-natal e pelo menos duas famílias ucranianas que fugiram da guerra já foram acolhidas pela comunidade. “Putin aproveitou quando o nosso país estava mais fraco”, comenta Ivan.

Para o padre, a repressão imposta por Putin à Ucrânia evoca outros tempos, em que o país — e também a Igreja — viveu sob o jugo pesado de Moscovo. Ivan Petliak nasceu em 1975 perto da cidade de Ivano-Frankivsk, na União Soviética. Num Estado oficialmente ateu, a Igreja Greco-Católica Ucraniana vivia “escondida”, celebrando em “casas fechadas, com as janelas fechadas”. A queda da União Soviética e a independência da Ucrânia trouxeram também a libertação e a expansão da Igreja — e, com ela, uma grande necessidade de novos sacerdotes.

Ivan tinha 15 anos e a ideia de ser padre não lhe passava pela cabeça. “Era um rapaz que não pensava muito nesta área eclesial”, conta o padre. Mas conhecia, na sua aldeia, um fascínio pela Igreja Greco-Católica Ucraniana, que substituiu a Igreja Ortodoxa como principal confissão religiosa. “Fui lá às celebrações com amigos da escola, era uma coisa nova, parecia um espetáculo”, diz Ivan Petliak.

“No fim da escola, houve um grande pedido para os jovens rapazes irem para o seminário”, lembra. Os projetos de Ivan eram outros: pensava tornar-se professor de língua ucraniana. “Tinha boas notas na língua e na literatura”, recorda. Mas o incentivo de uma professora acabaria por fazer efeito: “Dizia-me: ‘Ivan, há muitos nessa área, mas agora é preciso aqui, é melhor que vás para o seminário.’”

"Podemos perguntar se esta mudança pode multiplicar o número de rapazes que querem entrar para o seminário, mas não sei. Não é só este o problema pelo qual eles não querem ir para os seminários."
Ivan Petliak, padre da Igreja Greco-Católica Ucraniana

No final da escola, acabaria por entrar no seminário de Ivano-Frankivsk — um seminário que estava ainda a tentar reerguer-se depois do período soviético. Nos primeiros dois anos, nem havia um edifício. “Arrendávamos, na cidade, salas grandes onde os professores nos davam as aulas de teologia e filosofia”, lembra Ivan. Só mais tarde a Igreja recebeu um terreno onde construiu um templo e um seminário, onde o jovem Ivan passou a viver.

Tal como no caso de Jonathan, e ao contrário do que acontece no mundo católico latino mais conhecido dos portugueses, para Ivan aquela perspetiva não acarretava a difícil escolha entre casar e ser padre. É certo que na Igreja Greco-Católica Ucraniana também há padres celibatários: os membros do clero podem optar por casar antes da ordenação ou, então, por guardarem o celibato (e só estes segundos é que podem, mais tarde, prosseguir os estudos para serem doutores em teologia e chegar a bispo).

“No nosso seminário, existia sempre esta ideia de tentar direcionar os rapazes que depois podiam complementar o seu estudo em Roma e chegar a doutores de teologia, bispos, etc.”, recorda Ivan, que explica que no seu grupo de seminaristas houve de tudo: alguns casaram e ficaram como párocos, outros mantiveram-se celibatários e tiveram outros caminhos na hierarquia eclesiástica, outros ainda entraram em mosteiros.

Ivan decidiu cedo que o seu caminho passava pelo casamento. Conheceu Zenovia, então com 16 anos, nos escuteiros, “naqueles campos, nas aventuras”, e namoraram durante três anos. “Gostei dele porque era muito organizado e inteligente, fazia o meu tipo”, comenta Zenovia, com umas palavras em ucraniano e outras em português, ajudada na tradução pela filha Maria. “Ia muitas vezes almoçar e jantar à minha família.” O padre contextualiza: “O seminário ficava perto da casa dos pais dela na cidade e eu aproveitava para passar lá e comer uma comida boa, porque no seminário a comida era assim… Aproveitei logo a comida da minha futura sogra!”

Quando começaram a namorar, Ivan já era seminarista — o que não fazia qualquer confusão a Zenovia. “Não tinha problema nenhum. Não pensava muito no futuro, em como seria ser casada com um padre, mas não via nisto nenhum problema”, conta. “Tinha muitas amigas que já estavam a casar com seminaristas, era uma coisa normal.”

Casaram em 1997: Ivan tinha 22 anos, Zenovia tinha 20. A primeira filha, Iryna, nasceu no ano seguinte — hoje, com 26 anos, é enfermeira, vive na Ucrânia e já deu a Ivan e Zenovia dois netos. Como manda a regra, Ivan só foi ordenado diácono e padre depois do casamento — na verdade, na Igreja Greco-Católica Ucraniano, os padres não podem casar; o que acontece é que homens casados podem ser ordenados padres, pelo que o casamento tem sempre de acontecer primeiro.

Ivan e Zenovia casaram-se em 1997. Ele tinha 22 anos, ela tinha 20. No rito bizantino, os noivos são coroados durante a celebração do casamento

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“Claro que os nossos bispos apresentam sempre os dois lados da moeda”, reconhece Ivan. “Chamam um seminarista, antes do fim do seminário, e explicam. Dizem, por exemplo, ‘tu tens boas notas, vemos em ti um bom futuro para a nossa diocese, estamos prontos para te pagar estudos na Itália, na Áustria ou Estados Unidos’.” No fim, a decisão cabe ao seminarista, que tem de pedir ao bispo autorização para o casamento. “Ele tem de assinar em como não tem nada em contrário e que dá a sua bênção. Vamos lá com a namorada, apresentamos, ‘esta é a minha namorada’, escrevemos tudo e apresentamos ao bispo. Antes, ele diz-nos ‘pensa bem, porque isto não é brincadeira’. A vida de um sacerdote é diferente, podemos passar primeiro pelas paróquias mais pequenas, ter dificuldades de dinheiro. O bispo não esconde nada.”

Ivan Petliak foi ordenado padre em março de 2000, com 25 anos de idade, casado e já com uma filha. A primeira atribuição como padre foi uma pequena paróquia rural, para onde Ivan, Zenovia e a pequena Iryna se mudaram. O ambiente era diferente do da grande cidade de Ivano-Frankivsk onde viviam. “Numa paróquia pequena e distante das cidades grandes é outra vida. É mais calmo, é difícil fazer projetos grandes, mas por outro lado aprendes a viver e a conviver com aquela gente, que tem a sua espiritualidade”, lembra Ivan.

Foi na primeira paróquia, onde Ivan esteve durante cinco anos, que nasceu Demian, hoje com 17 anos. Na segunda paróquia, onde o padre esteve durante cerca de dez anos, nasceram Maria e Roman. As nomeações, ditadas pelo bispo, obrigaram a família a mudar-se atrás de Ivan — e é aí que reside um dos problemas habitualmente apontados à possibilidade de os padres casarem. “É um desafio para eles, que mudam de casa, de área, de amigos da escola”, reconhece Ivan, embora não veja nisso um drama maior do que aquele por que passam outros profissionais, como militares ou professores, colocados em lugares longe de casa.

Ivan Petliak nos seus primeiros anos como padre. Numa das fotografias surge na primeira comunhão da sua primeira filha, Iryna

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No caso das escolas, o processo foi simples. Ao contrário do que aconteceria mais tarde com a mudança para Portugal, houve sempre vagas para todos os filhos de Ivan e Zenovia nas escolas das povoações para onde o padre foi enviado. Também para Zenovia, formada em ensino da educação física, teve possibilidade de encontrar emprego em escolas e jardins de infância nas diferentes paróquias.

A nomeação de um padre para uma determinada paróquia ou função é feita pelo bispo num processo de diálogo com o sacerdote, em que as questões familiares são tidas em conta — mas, em última análise, a palavra do bispo prevalece. “Ninguém pergunta pelo trabalho da esposa, pela escola dos filhos”, afirma Ivan Petliak. “É ordem, é ordem. Vais para lá segundo a missão.” E, garante o padre, nada é escondido antes do casamento: quem casa com um futuro padre sabe que esta imprevisibilidade fará parte da vida familiar.

“No início, houve um desconforto entre os padres celibatários”

Quando Ivan já estava há quase uma década na sua segunda paróquia, a liderança da Igreja Greco-Católica Ucraniana lançou um desafio aos seus padres: eram precisos missionários para vários países onde existem comunidades significativas da diáspora ucraniana. “A Igreja precisava, nalguns países, de pastores para o nosso povo”, explica Ivan, sublinhando que muitos ucranianos estão emigrados em países onde a tradição cristã é diferente (como é o caso português, onde a Igreja latina é maioritária) e que, sem a presença de padres ucranianos, podiam perder a ligação à sua própria tradição religiosa.

Os padres que aceitaram ponderar o desafio foram chamados para um curso, onde aprenderam sobre os principais desafios que podiam encontrar nos países de missão. Ao fim de três ou quatro sessões do curso, os padres puderam escolher os destinos para onde queriam ser enviados — numa decisão que, no limite, caberia ao bispo de Kiev. Ivan chegou a equacionar Israel ou os países bálticos, mas acabou por lhe calhar Portugal. “Não conhecia este país, que era longe”, admite.

Ivan começou por vir sozinho para Portugal, em 2016. “No início, ninguém leva a família. Eles sabiam que eu vinha sozinho. Foi uma separação que doeu, aos filhos, à esposa, para quem foi muito difícil dar conta de tudo. Não é fácil”, admite.

Depois de uma primeira passagem pelo Porto, o sacerdote viria a fixar-se na diocese de Setúbal, onde era necessário um padre para acompanhar as comunidades ucranianas de Setúbal e do Montijo. O esquema é simples e assenta numa colaboração mútua entre bispos: as pequenas comunidades ucranianas em Portugal não têm meios para se sustentarem, para formarem paróquias sólidas, para terem um templo próprio e para terem o seu próprio padre. Ao mesmo tempo, faltam padres em Portugal. Como solução, os bispos ucranianos estabelecem uma parceria com o bispo da diocese onde é necessária essa presença: a diocese de Setúbal recebe um padre ucraniano, contribui para o seu sustento e dá-lhe condições para fazer um acompanhamento pastoral dos imigrantes ucranianos; em contrapartida, o sacerdote integra-se no clero da diocese de Setúbal e colabora nas paróquias portuguesas onde há necessidades.

Foi com base nesta parceria que o padre Ivan Petliak chegou a Setúbal em 2017: além do acompanhamento dos imigrantes ucranianos, recebeu também a atribuição de vigário paroquial na Quinta do Conde e em Azeitão. As paróquias ajudaram o sacerdote a pagar uma casa para si e para a família, que se juntou a ele em 2019.

O padre Ivan Petliak na sua casa na Quinta do Conde
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A filha Maria (14 anos), a esposa Zenovia (47 anos), o filho Roman (8 anos), o padre Ivan (49 anos) e o filho Demian (17 anos)
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Na casa a família tem um oratório com a bandeira da Ucrânia
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Para poder celebrar nas paróquias portuguesas, Ivan teve de receber uma autorização especial da parte do Vaticano para, sendo da Igreja Greco-Católica (de rito bizantino), poder celebrar missas no rito romano — uma declaração de birritualidade. Aos domingos de manhã, podemos encontrar o padre Ivan a celebrar missas em rito bizantino, na língua ucraniana, nas comunidades de Setúbal e Montijo; nos restantes dias, é fácil encontrá-lo a celebrar em português, no rito romano, em Azeitão e Quinta do Conde.

Nos primeiros tempos, Ivan Petliak foi acolhido no seminário de Almada juntamente com dois seminaristas ucranianos que vieram com ele para Portugal (um deles foi o agora padre Nazar Kruk). Ali, o grupo de ucranianos teve possibilidade de conhecer melhor a realidade da Igreja Católica em Portugal — e, crucialmente, de aprender português.

A adaptação foi mais difícil para a família de Ivan. Demian, por exemplo, tinha 13 anos quando se mudou para Portugal. “Não foi fácil habituar-me à nova vida, mas também há outras oportunidades”, diz, tímido, ao Observador. Manteve o contacto com “dois melhores amigos” que tem “desde o jardim de infância” e era o único dos filhos que já tinha alguns conhecimentos de inglês, o que ajudou no início. Juntou-se a um grupo de miúdos que jogava futebol quase todos os dias no campo da Quinta do Conde, onde fez alguns amigos.

Maria era mais nova quando veio para Portugal: tinha ainda 10 anos e não falava inglês. “Na minha idade, não me preocupava com o facto de saber inglês, porque pensava ‘para que é que vou precisar de inglês se estou na Ucrânia?’ Depois, cheguei cá, não sabia inglês, as outras crianças também não sabiam inglês, e não conseguia comunicar com a professora”, lembra a adolescente, que, um mês depois de chegar à escola portuguesa pela primeira vez, foi para casa devido à Covid-19. Já tinha, entretanto, concluído que havia uma “grande diferença” entre os dois países: “Na Ucrânia, a matéria é muito mais complicada e mais avançada”, diz, sublinhando que no 4.º ano na Ucrânia já dava matéria que em Portugal só chega no 6.º ano.

Gradualmente, começou a integrar-se e aprender português. “Tive uma professora que me ajudava a aprender, fazia exercícios do 1.º ou 2.º ano e era bué fácil. Com o tempo, fui aprendendo a escrever”, recorda. Os amigos que fez foram essenciais no processo. “Começaram a ter curiosidade, a perguntar como era, e foi mais com os amigos que aprendi o português.”

Roman, o mais novo, tem menos memórias da mudança de país, que fez com 4 anos de idade. Uma memória — verdadeira ou reconstruída pelos relatos dos pais, quem sabe — leva-o para o momento da despedida: “A última coisa que disse na Ucrânia foi ‘adeus’. Foi tudo o que eu disse na Ucrânia. Depois a minha mãe fez uma fotografia, os meus olhos estavam muito vermelhos.” Lembra-se vagamente das “lojas ucranianas”, que lhe dão saudades do país natal, e relata alguns “brinquedos antigos” esquecidos na Ucrânia.

"No início, houve um desconforto entre os padres celibatários. Eles têm esta formação forte, mas também sabem que existe este outro pulmão da Igreja, que é a Igreja oriental."
Ivan Petliak, padre da Igreja Greco-Católica Ucraniana

Quando chegou a Portugal, entrou no pré-escolar. “Toda a gente estava a olhar para mim, estava muito aterrorizado”, lembra a criança, prestes a completar 9 anos. “Ele chorava, coitado. Dizia ‘não vou para lá amanhã, não percebo nada’”, conta o pai. Roman lembra-se de “brincar sozinho” por não conseguir falar com as outras crianças — e não se esquece da amiga Taciana, a primeira com quem conseguiu falar português. Quando falou com o Observador, já falava português tão bem como qualquer criança nascida em Portugal.

Ivan Petliak, por seu turno, teve de enfrentar os olhares desconfiados dos padres portugueses da sua geração. “No início, houve um desconforto entre os padres celibatários”, lembra, lamentando os sentimentos de superioridade que viu em alguns colegas. “Eles têm esta formação forte, mas também sabem que existe este outro pulmão da Igreja, que é a Igreja oriental.”

Muitos padres celibatários, diz Ivan Petliak, acreditam que só eles é que fazem a opção de vida certa, com a dose certa de sacrifício e abnegação. “Mas também temos de dizer que a vida familiar é um sacrifício, até porque não podes pensar só por ti mesmo. Tens de cuidar de mais alguém que está perto de ti. Também é uma oportunidade e um desafio para mostrar a outras famílias, para um exemplo de fé, de oração, de vida familiar.”

Da parte dos fiéis, Ivan também recebeu alguns olhares desconfiados, sobretudo dos mais “conservadores”, que “não querem mudar”, mas garante que tudo já está serenado. “Os padres que me acolheram aqui em Azeitão e na Quinta do Conde contaram logo às pessoas. O D. José Ornelas, quando me apresentou pela primeira vez como vigário de Azeitão, disse tudo abertamente. Não quis esconder nada, porque não há razão”, lembra. Agora, são muitos os que lhe perguntam pela esposa e pelos filhos quando o encontram na rua. “E não há nada de mal.”

Na igreja de Nossa Senhora da Boa Água, na Quinta do Conde, há vários elogios ao padre Ivan

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Já os filhos e a mulher de Ivan garantem que nunca sentiram qualquer tipo de discriminação por causa da sua especificidade familiar — até porque, pelo menos nos primeiros tempos, eram poucos os que sabiam. “As pessoas não chegam e começam a falar da profissão do pai”, ri-se Maria. “Claro que, com o avançar do tempo e com uma amizade maior, as pessoas começam a perguntar, tu explicas e elas reagem super normalmente. Como há várias religiões, também há a nossa religião e está tudo bem.”

À porta da igreja da Quinta do Conde, os paroquianos Ana e José tinham comentado com o Observador que casos como o do padre Ivan Petliak — apontado como um exemplo positivo de um padre que desempenha as suas tarefas com esmero e competência mesmo sendo casado e com filhos — podiam inspirar a Igreja Católica a repensar a norma do celibato. Mas o próprio Ivan reconhece que a questão é “delicada” e destaca que o celibato sacerdotal é um pilar da Igreja Católica há muito tempo — que será “muito, muito difícil de mudar”.

“Cada revolução traz consigo muitas ruínas”, avisa Ivan, lembrando que esta discussão “já apareceu no horizonte” várias vezes e continua a surgir, mais recentemente no contexto do Sínodo dos Bispos.

“Podemos perguntar se esta mudança pode multiplicar o número de rapazes que querem entrar para o seminário, mas não sei. Não é só este o problema pelo qual eles não querem ir para os seminários”, diz o sacerdote, embora reconheça que na Ucrânia há “seminários cheios”. “Os jovens do nosso tempo já não pensam só na causa da família, muitos não estão prontos para criar uma família, estão concentrados em encontrar trabalho, uma carreira”, ilustra. “Não é uma questão de poderem ou não casar. É uma questão de época, do nosso tempo. Acho que a Igreja perdeu a autoridade e tem de ter uma nova posição na sociedade se quer aumentar este número”.

Em 2019, o arcebispo ucraniano Sviatoslav Shevchuk, metropolita da Igreja Greco-Católica Ucraniana, já tinha apresentado a mesma opinião: olhar para o fim do celibato como forma de resolver a crise de vocações seria procurar uma “solução fácil para um problema difícil”. Shevchuk lembrava que, apesar de na Ucrânia não haver falta de vocações, noutras geografias a Igreja Greco-Católica também tinha dificuldade em recrutar novos padres — o que demonstrava que a falta de vocações não se deve exclusivamente à imposição do celibato.

“Até entrar no seminário, eu só conhecia padres casados”

A verdade, contudo, é que os seminários ucranianos — onde o celibato não é exigido — estão cheios. Que o diga Nazar Kruk, que teve mesmo de fazer um exame de seleção para entrar no seminário, uma vez que havia mais candidatos do que vagas. Quando Nazar entrou no seminário de Ivano-Frankivsk, o mesmo onde Ivan Petliak tinha estudado 20 anos antes, a instituição tinha 180 alunos — trinta vezes mais do que os “seis ou sete” que o jovem seminarista encontraria, três anos depois, quando se mudasse para o seminário de Almada.

Filho único, Nazar nasceu em 1995 em Brody, pequena cidade na região ocidental ucraniana de Lviv, numa família católica. “Os meus pais, que ainda estão vivos, graças a Deus, sempre foram católicos, iam à igreja e levavam-me sempre”, conta Nazar ao Observador, sentado à mesa de uma esplanada no miradouro de São Domingos, em Setúbal, a poucos metros da igreja onde se casou com Tetiana e da casa episcopal onde vive o bispo de Setúbal, o cardeal Américo Aguiar — que até ao final deste ano o deverá nomear para trabalhar numa paróquia da região.

Como muitas crianças, Nazar resistia à ideia de ir à missa, mas foi convencido pelos pais, apesar das “lágrimas”, a ir à igreja todos os domingos. Quando o pároco local lhe confiou a tarefa de levar a cruz nas procissões, criou um “vínculo maior à paróquia e à igreja”, que se aprofundou quando se tornou acólito.

“Quando acabei o 9.º ano, fui para o Colégio Pedagógico, para ser professor. Estudei ali quatro anos e, no final dos estudos, tinha de escolher: ou continuo como professor ou mudou para outra coisa”, lembra o jovem sacerdote. Nessa altura de decisões, ecoaram em Nazar as palavras que tinha ouvido durante boa parte da infância e adolescência da boca de familiares e vizinhos: “Tu andas na igreja, gostas disto, pode ser que sejas padre.”

“Muitas pessoas me disseram isto. Viram em mim algo que as motivou a dizer ‘podias ser padre’ e eu escutava isso”, recorda Nazar. Por essa altura, o jovem não tinha pensado numa vocação sacerdotal. “Gostava muito disto. Quando ia à igreja, olhava para o padre, de volta do altar, com o turíbulo, o fumo, percebia que estava lá um mistério que não percebia nem podia explicar. Gostava disso. Mas ser padre, eu? Sabia que tinha de se ir para o seminário e olhava para o seminário como uma prisão.” Em plena adolescência, Nazar queria “sair de casa dos pais, ir para a universidade e sair com os amigos à noite”.

O padre Nazar Kruk fez metade dos estudos teológicos na Ucrânia e a outra metade em Portugal

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Em casa, recebeu o encorajamento da mãe e alguma desconfiança do pai: “O meu pai dizia-me ‘isto não é para ti’, sempre trabalhou na terra e dizia ‘tu também tens de ir trabalhar com a terra, ganhar dinheiro, fazer alguma coisa de agricultura’. Também era carpinteiro, se calhar queria que eu trabalhasse mais com a matéria-prima do que com as pessoas.”

Nazar acabou mesmo por ir para o seminário, que o surpreendeu pela positiva. Afinal, não era uma prisão. “Só pensava assim porque não tinha noção do que é o seminário. Tinha uma noção do que eu imaginava, mas não sabia como era na realidade”, diz. A abundância de candidatos ao seminário obrigou Nazar, então com 18 anos, a fazer exames de admissão: havia 50 candidatos, dos quais só 30 conseguiram entrar.

O jovem padre ainda se lembra de ter estado, com os colegas, a ouvir a lista dos nomes daqueles que tinham sido aprovados: “Estávamos todos à espera, chegou o reitor e leu a lista dos que entraram. Quem ouviu o seu nome, sabia que entrou. Quem não ouviu, podia voltar para o ano.”

“A minha visão do seminário mudou logo nessa semana dos exames”, garante. “Cheguei lá, conheci outros rapazes que também queriam entrar no seminário e fizemos logo amizades. E percebi que o seminário não era uma prisão. Era um ambiente bom, com amigos. Há horários para sair e para estudar, é uma vida sujeita a horários que, num primeiro momento, é um bocadinho difícil de aceitar, porque exige mudar radicalmente o meu estilo de vida anterior. Já não tenho o meu frigorífico, as minhas coisas, tenho apenas um quartinho. Mas, por outro lado, há esta convivência com os irmãos, com os seminaristas.”

Vários fatores pesaram na decisão de Nazar se tornar padre — mas a ideia de casar ou ficar solteiro não foi um deles. “Na infância, só contactei com o meu pároco, que era casado. Às vezes, num encontro de acólitos, foram lá outros padres que também eram casados”, recorda Nazar. “Até entrar no seminário, eu só conhecia padres casados. Só depois do seminário é que descobri que havia padres celibatários e padres monges.” Durante toda a infância e juventude, na cabeça de Nazar, a imagem de um padre correspondia à de um homem casado, com a sua família e a sua profissão — e não a uma figura impedida de ter uma vida familiar normal.

“A Igreja Greco-Católica Ucraniana tem esta opção. Quando alguém entra no seminário, poderá ser um padre casado, poderá ser um padre celibatário ou poderá ser um padre religioso”, explica Nazar. “São estes três caminhos de vocação e cada um tem de rezar e escolher um dos caminhos.”

Nazar Kruk entrou no seminário sem o dilema dos seminaristas que viria a encontrar em Portugal: casar ou ser padre?

O desafio chegou no início de 2017, quando Nazar estava no terceiro ano dos seus estudos superiores no seminário de São Josafat, em Ivano-Frankivsk. “Estávamos numa aula, entrou o vice-reitor e deu-nos a notícia de que havia a possibilidade de vir estudar para Portugal e quem quisesse tinha de se inscrever”, recorda o jovem padre. O objetivo era reforçar a equipa de clérigos que dava apoio à diáspora ucraniana em vários países da Europa. Os seminaristas iriam com um padre, completariam os estudos, seriam ordenados e ficariam pelo menos cinco anos ao serviço nesse país.

"Na infância, só contactei com o meu pároco, que era casado. Às vezes, num encontro de acólitos, foram lá outros padres que também eram casados. Até entrar no seminário, eu só conhecia padres casados. Só depois do seminário é que descobri que havia padres celibatários e padres monges."
Nazar Kruk, padre da Igreja Greco-Católica Ucraniana

“Eu sempre sonhei em ir para fora, ir para o estrangeiro, estudar outra língua, conhecer outra cultura, conhecer outro mundo. Sabia que o mundo era grande e queria conhecê-lo um bocadinho”, lembra Nazar. “Tinha esta vocação, este sonho, cá dentro. Quando ouvi a proposta, fiquei muito interessado.”

Inscreveu-se e escolheu Portugal. Outra opção era a Alemanha, mas não lhe pareceu tão boa ideia: “Eu sabia que o alemão é muito complicado, houve colegas que não conseguiram aprender o alemão. Senti que a Alemanha não era para mim. Quando ouvi Portugal, gostei, despertou algo em mim.”

Nazar chegou a Portugal em novembro de 2017, para iniciar um novo ano letivo. Foi acolhido no seminário de Almada, onde estudava menos de uma dezena de seminaristas — uma realidade totalmente diferente da abundância de vocações na Ucrânia. O início foi complicado, sobretudo devido à dificuldade linguística: falaram em inglês e por gestos até Nazar ter tido aulas de português suficientes para se desenvencilhar na língua, que hoje domina quase na perfeição. Também garante que não sofreu qualquer tipo de discriminação da parte dos colegas. “Fui super bem acolhido e bem tratado no seminário de Almada”, lembra. “Esta minha experiência, vindo de um país com uma tradição diferente da Igreja, também trouxe uma riqueza. Os outros não gozaram com isso, não disseram ‘tu és diferente’, não apontaram o dedo, mas foram também aprofundando esta riqueza da Igreja. Porque sabemos que a Igreja Católica são 24 igrejas.”

Depois de um ano dedicado a aprender português e a ambientar-se à Igreja latina e ao seminário de Almada, Nazar Kruk retomou as aulas em setembro de 2018 na Universidade Católica, em Lisboa. Obteve várias equivalências para as cadeiras que já tinha feito na Ucrânia, preencheu o horário com as que lhe faltavam e completou o curso de teologia em Portugal.

No seminário de Almada, Nazar era o único que podia ter uma namorada e casar um dia. “Isso foi sempre aceite de forma a não criar um problema, um dilema, uma contradição”, garante o jovem ucraniano. “Foi um momento alegre, perceberam que sou diferente, de uma igreja diferente. Quando conhecemos uma pessoa diferente, isso desperta-nos a curiosidade. Não encontrei um ‘tu és diferente, podes casar, isso não devia ser assim’, mas fizeram muitas perguntas, tinham curiosidade de conhecer este mundo.”

Nazar Kruk e Tetiana Antish no miradouro de São Domingos, em Setúbal
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Os dois casaram-se na igreja de São Sebastião, onde Nazar foi também ordenado diácono
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Nazar e Tetiana estarão em Portugal pelo menos nos próximos cinco anos
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Da story no Instagram do amigo padre ao pedido de casamento

Nazar já vivia em Portugal havia quatro anos quando conheceu Tetiana Antish. Apesar de ela ter vivido sempre em Ivano-Frankivsk, onde Nazar estudou, os seus caminhos nunca se tinham cruzado até ao Natal de 2021, quando Tetiana participou numa peregrinação a Međugorje, santuário na Bósnia e Herzegovina onde há relatos de aparições de Maria nas últimas décadas. “Foi como peregrina e quem acompanhou essa peregrinação foi um padre que era meu amigo do seminário”, lembra Nazar.

O jovem seminarista não foi à peregrinação, mas era amigo desse padre no Instagram e foi pela rede social que testemunhou essa peregrinação. “Vi as stories dele com a comunidade, vi a fotografia de todos e vi esta rapariga. Ela estava lá indicada no story e enviei-lhe um pedido de amizade”, recorda. Na altura, a história terminou por ali: Tetiana aceitou o pedido de amizade, mas durante um ano não falaram. Foi só um ano depois que Nazar decidiu meter conversa. “Isto parece estranho, mas qualquer coisa me dizia ‘manda-lhe mensagem, manda-lhe mensagem’. E já tinha passado um ano!” Em novembro de 2022, começaram a conversar com regularidade.

Entretanto, o país de Nazar e Tetiana já tinha mergulhado na guerra, depois de em fevereiro desse ano a Rússia ter invadido a Ucrânia. Tetiana mudou-se para Itália, onde a mãe já vivia há vários anos. Nazar, por seu turno, que tinha ido de férias a casa em janeiro de 2022, já não voltou ao país natal: se regressasse, não poderia sair devido à lei marcial.

Naqueles primeiros meses, Nazar também não podia ir a Itália. “Tinha o cartão de residência de estudante, que é anual e tinha de o renovar. Quando nos conhecemos, em novembro, já estava caducado e estava à espera de um novo. E não podia sair”, lembra Nazar. “Então convidei a Tetiana para vir a Portugal e combinámos ir a Fátima.”

“A primeira vez vim como amiga”, ri-se Tetiana. “Eu gosto de rezar, ia sempre à igreja aos domingos. Mas nunca pensei que ia casar com um padre.”

Depois desse encontro, começaram a namorar à distância, numa altura em que Nazar já estava a passar por um período de prática pastoral na paróquia da Quinta do Anjo. “Uma semana ela estava cá, noutro mês eu ia a Itália. Em maio, a mãe dela faz anos e eu fui a Roma aos anos dela”, recorda Nazar. “Foi muito rápido”, comenta Tetiana. A relação evoluiu em maio de 2023, por ocasião da peregrinação ucraniana a Fátima, que atrai ucranianos de toda a Europa para se reunirem no santuário. “Um padre que vai casar, antes de mais, tem de pedir a bênção ao bispo. Apresenta-se ao bispo com a futura esposa e pede a bênção”, explica. “Em maio, a Tetiana estava cá, e veio o bispo da Ucrânia, D. Stepan, que nos deu a bênção para casarmos. Eu falei com ele, porque não podia ir à Ucrânia.”

Na mesma semana, Nazar pediu Tetiana em casamento (“Mas já tinha falado com a mãe dela antes, quando estive em Roma!”) e dedicaram o verão a preparar o casamento. Casaram em setembro de 2023 na igreja de São Sebastião, em Setúbal, numa celebração que contou com a presença de muitos ucranianos, mas também de muitos portugueses que tinham conhecido o seminarista Nazar durante o seu estágio pastoral naquela paróquia, entre 2019 e 2021.

Nazar Kruk e Tetiana Antish casaram em setembro de 2023 na igreja de São Sebastião em Setúbal, numa celebração em rito bizantino

DR

“Fiquei muito feliz”, conta Tetiana, garantindo que não acha estranho o seu marido hoje ser padre. “Ele é um homem que eu amo, não o amo por exemplo por ser milionário, amamos a pessoa enquanto tal. Na Ucrânia, a maior parte dos padres são casados.”

No ano seguinte, já casado, Nazar foi finalmente admitido no clero: foi ordenado diácono em janeiro de 2024 na igreja de São Sebastião, a mesma onde tinha casado, numa celebração em rito bizantino. Em maio, foi ordenado padre no Santuário de Fátima, também numa celebração em rito bizantino. Por enquanto, está totalmente dedicado ao serviço da comunidade ucraniana de Setúbal e Montijo, enquanto espera que venha de Roma a autorização que lhe vai permitir celebrar em rito latino. O padre Nazar espera que isso aconteça ainda este ano — e quando a autorização chegar deverá ser nomeado pelo cardeal Américo Aguiar para trabalhar em paróquias da diocese de Setúbal.

Nazar Kruk foi ordenado padre em Fátima em maio deste ano

DR

A carreira eclesiástica do padre Nazar ainda é curta — e ainda não o obrigou a grandes mudanças de vida com impacto na família, que também ainda é curta. Mas o casal espera ter filhos em breve e sabe que Nazar pode ser enviado para qualquer lugar em missão.

“Não sabemos como vai ser. Pode ser que fique por aqui, pode ser que não. Eu e a Tetiana sabemos isto, hoje estamos cá, mas amanhã podemos não estar. No caso do padre casado, há de um lado esta dificuldade e do outro a abertura à vontade da Igreja”, resume Nazar. “É como, por exemplo, um militar. Hoje está aqui, amanhã dizem-lhe ‘tens de ir’.”

Na Ucrânia, Tetiana estudou Direito e chegou a trabalhar como jurista. Quando veio para Portugal, porém, as dificuldades com a língua e com as equivalências profissionais obrigaram-na a procurar trabalho, primeiro nas limpezas, e agora como baby-sitter para famílias ucranianas. Tudo indica que Nazar será colocado numa paróquia da diocese de Setúbal, que corresponde ao território da península de Setúbal — pelo que o trabalho de Tetiana não deverá ser afetado. “Posso morar num sítio qualquer e fazer a viagem até Lisboa”, explica. “Daqui a Almada, de uma ponta à outra da diocese, são só 40 quilómetros”, resume Nazar.

Para Tetiana, mudar de vida ao sabor das missões de Nazar não será um problema. “Temos uma expressão em ucraniano que é ser uma pessoa ‘leve de se levantar’. Há pessoas que não gostam de mudanças, mas para mim a mudança não é algo que crie conflito, dificuldade. Gosto de viajar, de conhecer sítios novos. A vida é mais interessante”, explica a jovem, garantindo que aceitou, desde o início, as especificidades da vida do marido. Nazar concorda: “Se o bispo um dia me mandar noutra missão, para outra terra, para nós vai ser um desafio que Deus coloca na nossa vida e estamos abertos a isso.”

O que poderá complicar este processo são os filhos. Se nascerem nos próximos anos, deverão entrar para a escola em Portugal — e será importante mudarem de escola o mínimo possível. Nesse caso, Nazar acredita que qualquer nomeação por parte do bispo será sempre feita “em diálogo” com o objetivo de garantir “o bem de todos”, ou seja, “o bem da família e o bem da Igreja”.

"[O fim do celibato] não vai resolver o problema das vocações, porque a base do problema não está nisto. Está, em geral, num mundo que está, cada vez mais, a virar costas a Deus. Num mundo que acha que é o próprio Deus."
Nazar Kruk, padre da Igreja Greco-Católica Ucraniana

Para já, enquanto aguarda pela autorização para celebrar no rito romano, Nazar Kruk está a tentar imprimir uma dinâmica maior à comunidade ucraniana em Setúbal e no Montijo. “Estou a preparar crianças para a primeira comunhão e estou a tentar começar um grupo de jovens”, exemplifica. Ao mesmo tempo, já ajuda os padres de Setúbal em celebrações como procissões e funerais — e garante que não sente olhares estranhos por ser um homem casado.

“O meu caminho sempre foi claro. Onde quer que eu fui apresentado, as pessoas diziam ‘este é um seminarista da Ucrânia que pode casar’. As pessoas que me conheceram sempre conheceram um seminarista da Ucrânia, de uma tradição diferente, as pessoas percebiam que eu poderia casar”, explica, embora admita que para muitos portugueses a situação não deixa de ser inusitada. “Acham estranho, porque é não normal dizer a um padre ‘como está a tua esposa?’, é uma coisa que não dizemos aos outros padres.”

“Casar ou não casar não está na raiz da falta de vocações”

Em Setúbal, já ninguém se sobressalta por ver o casal na rua. Mas Nazar e Tetiana não esquecem que a sua própria vida familiar está debaixo dos olhares atentos dos fiéis: o facto de os homens casados poderem ser ordenados padres faz com que os desafios da vida familiar não sejam alheios aos sacerdotes e traz responsabilidades ao casal. Os fiéis olham para o padre em busca de orientação espiritual — também no que toca à vida em família. “A minha vida com a Tetiana é isto. Posso andar a gritar que sou um padre casado, mas o mais importante é nós vivermos a nossa vocação, vivermos uma vida de santidade.”

A viver há sete anos em Portugal, Nazar sabe que a sua condição de padre casado é uma exceção absoluta no contexto da Igreja Católica portuguesa. Impõe-se uma pergunta: a Igreja em Portugal tem algo a aprender com o exemplo de um padre casado? Será que Portugal, onde a Igreja se queixa de falta de padres, está a perder bons candidatos ao sacerdócio por causa da proibição de casar?

Para já, Nazar Kruk tem estado totalmente dedicado à comunidade ucraniana em Setúbal e no Montijo

DR

“A palavra ‘perder’, para mim, não soa bem aqui”, diz Nazar. “Um padre não é algo que se ganha ou se perde. É um projeto de Deus e nós só vemos uma parte na nossa vida, mas a totalidade da história da salvação está a acontecer. Um padre é um instrumento nas mãos de Deus, é um desígnio de Deus que não conhecemos”, acrescenta, reconhecendo que na Igreja latina, apesar de tudo, já há muitas tarefas que podem ser desempenhadas pelos leigos e que os diáconos permanentes podem ser casados, pertencendo na mesma ao clero.

“A vocação é um caminho que é pessoal. Deus chama cada um de forma pessoal”, destaca Nazar, reconhecendo as diferenças nas regras entre a Igreja latina e as igrejas orientais. “É uma regra da Igreja. A Igreja, com a sua prudência, com o passar da história e do tempo, decidiu que a melhor condição de servir como padre é esta do celibato”, diz, admitindo, porém, que as igrejas podem aprender umas com as outras. “Na vida estamos sempre a aprender coisas novas”, afirma, embora avise que as traduções são diferentes em locais diferentes do mundo — e o que funciona para uns pode não funcionar para outros.

“Um padre casado na cultura ucraniana, na Igreja Greco-Católica, é um exemplo de como estão a decorrer as coisas nesta Igreja. Uma coisa boa para mim pode não servir para si”, diz. “Não é apenas uma questão de padres casados. Toca toda a tradição da Igreja. A formação nos seminários é neste sentido, tudo está organizado neste sentido na vida das comunidades e das dioceses.”

Nazar não acredita, sequer, que o celibato obrigatório seja a principal razão por trás da falta de vocações na Igreja latina. Fala, antes, de uma “falta de relação séria com Deus, como as pessoas tinham antigamente”. Isto porque, argumenta Nazar, não faltam só padres: também faltam cristãos, falta gente nas igrejas.

A propósito desse debate, o padre ucraniano conta a história de um dos bispos da sua igreja que, certa vez, participou numa oração ecuménica na Alemanha, com representantes católicos, anglicanos e protestantes. “Nessa oração estava uma mulher que era bispa da Igreja Anglicana. O meu bispo foi falar com ela depois da oração e disse-lhe: ‘Vocês, se calhar, têm muitas vocações, porque as mulheres podem ser padres.’ E ela disse que não, que também tinham falta de vocações.”

“Ele contou isto e percebi que, de facto, o casar ou não casar não está na raiz da falta de vocações. Na raiz está outra coisa, outro problema que temos hoje em dia”, considera o sacerdote. “Claro que, na Igreja Greco-Católica Ucraniana, o casamento é uma opção que se dá, uma vocação. Se na Igreja Católica também existisse esta opção, se calhar um ou outro também poderia ir para o seminário. Mas não vai resolver o problema das vocações, porque a base do problema não está nisto. Está, em geral, num mundo que está, cada vez mais, a virar costas a Deus. Num mundo que acha que é o próprio Deus.”

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