(Artigo publicado originalmente a 7 de março de 2018, quando Paulo Gonçalves foi detido, e atualizado a 5 de setembro com informações da acusação formal do Ministério Público no caso E-toupeira)

É portuense. É aquela a cidade onde cresceu e ainda mantém casa. Mas é sobretudo portista dos sete costados. Ou terá sido. O antigo vice-presidente do clube, José Guilherme Aguiar, chegou mesmo a adjetivá-lo como “ferrenho e fanático” do FC Porto.

Paulo Casimiro de Jesus Leite Gonçalves, hoje com 48 anos, estudou Direito na Universidade Católica do Porto e, terminado o curso, em 1994, entrou depois para a sociedade de advogados Graça Moura. Próximo que era de Alexandre Pinto da Costa, o filho do presidente do clube, chegaria ao FC Porto em 1997, estando diretamente envolvido na constituição da SAD portista logo naquele ano, a 5 de agosto.

Dois anos volvidos, Paulo Gonçalves, desavindo, abandona o clube. Porquê? Alexandre Pinto da Costa e o pai, Jorge Nuno, estavam em conflito. Mas a amizade que, mesmo assim, Alexandre mantinha com Paulo Gonçalves não caiu bem à SAD e Gonçalves abandona-a, tendo-se incompatibilizado na altura com o administrador da sociedade anónima dos portistas, Adelino Caldeira, bem como com o presidente dos portistas, Jorge Nuno Pinto da Costa. O ano era o de 1999.

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Então, Paulo Gonçalves já exercia advocacia na sociedade de advogados Mário Campos Fontemanha, tendo iniciado também uma pós-graduação em Direito da Comunicação, agora na Universidade de Coimbra. Mas continuaria sempre ligado ao futebol.

O “Boavistão” e o Apito Dourado

Curiosamente, e tal como aconteceu aquando da efémera e atribulada passagem pelas Antas, Gonçalves ingressa no outro clube da cidade do Porto, o Boavista, a convite do presidente João Loureiro, quando a SAD dos axadrezados se começava a constituir. Paulo Gonçalves foi director-geral do Boavista entre 2000 e 2006.

O período coincidiu com o momento mais glorioso da história do clube do Bessa. Mas igualmente com o maior escândalo. O Boavista em que o director-geral era Gonçalves ganhou nos relvados o epíteto de “Boavistão” e, treinado por Jaime Pacheco, sagrou-se campeão nacional em 2001. Contudo, em 2004, o processo Apito Dourado envolve o clube em casos de corrupção desportiva e o Boavista é condenado à descida de divisão quatro anos depois.

Gonçalves deixa o Boavista antes, em 2006. Mas não sem antes estar envolvido numa curiosa história que importa aqui recordar. É que antes mesmo de sair do clube do Bessa, Paulo Gonçalves foi apontado como provável sucessor de Emanuel Medeiros no cargo de secretário-geral da Liga. E o Record escrevia mesmo, em janeiro de 2006, que Paulo Gonçalves reunia “amplo consenso entre os clubes”, sendo por todos considerado a “pessoa indicada” para o cargo no organismo presidido por Valentim Loureiro. Acabou por não ocupar o cargo de secretário-geral.

Mas, poucos meses depois, Gonçalves foi alegadamente convidado por Hermínio Loureiro para ser o diretor-executivo da Liga caso a candidatura de Loureiro (hoje vice-presidente da Federação Portuguesa de Futebol) vencesse as eleições. E venceu. Mas uma suposta ligação de Paulo Gonçalves ao Benfica e a contestação que chegou por parte do FC Porto quando soube que o seu ex-dirigente da SAD poderia vir a integrar a estrutura de Hermínio Loureiro, invalidou que exercesse o cargo directivo.

O presidente do Benfica, Luís Filipe Vieira, reagiu de pronto: “Não exigi nenhum Paulo Gonçalves [na Liga]. Não fui eu que estive em Óbidos a falar duas horas [nota: Vieira referia-se a uma alegada reunião entre Hermínio Loureiro e Gonçalves] com o senhor, não lhe prometi nada, nem que ele entraria na Liga. Aqui a brincadeira tem a ver com outros clubes e outros presidentes”. E concluiria o presidente dos encarnados: “Se o nome do senhor Paulo Gonçalves aparecer ligado ao Benfica outra vez, eu conto a verdade toda, não só dessa como de todas”.

Dele, Gonçalves, Hermínio Loureiro disse mais tarde: “É alguém com uma invulgar capacidade de trabalho. É um trabalhador dedicado e é um bom profissional, isso tenho que reconhecer”.

Em 2007, recém pós-graduado em Direito Desportivo, novamente pela Universidade de Coimbra, Paulo Gonçalves torna-se assessor jurídico da SAD do Benfica. Inicialmente tinha a incumbência de tratar de aspetos mais formais de transferências e contratos de jogadores. Mas rapidamente Paulo Gonçalves ascenderia (não tanto no cargo, mas sobretudo na importância no clube e na proximidade que tinha com Vieira) na estrutura encarnada.

O braço-direito do “presi” Vieira

Vive hoje em Santarém. E foi em Santarém, em casa, que Paulo Gonçalves foi detido a 7 de março de 2018, suspeito que é, enquanto assessor jurídico da SAD benfiquista, de corrupção a funcionários judiciais. Seis meses depois seria formalmente acusado. Ele, a SAD e os dois oficiais de justiça a quem ofereceu camisolas do Benfica, bilhetes para jogos e acesso privilegiado aos jogadores da equipa principal, por oito crimes, entre eles os de corrupção ativa e oferta indevida de vantagem.

Antes, no início deste ano, Gonçalves já tinha sido constituído arguido (é o único até agora) num outro processo, o caso dos “e-mails”, onde se investiga uma rede de corrupção alegadamente dirigida pelo Benfica nos órgãos com poder de decisão do futebol e, sobretudo, no sector da arbitragem. Recentemente, a Unidade Nacional de Combate à Corrupção da Polícia Judiciária optou por reunir todas as investigações relativas a este a caso a um anterior: o caso dos “vouchers”. Este foi um dos processos que, segundo a agora acusação do Ministério Público no âmbito do processo E-toupeira, o funcionário judicial José Silva acedeu 187 vezes a seu pedido. Estes autos continuam em investigação

Em comunicado, à data, a SAD benfiquista defendeu publicamente Paulo Gonçalves. O clube manifestou “confiança e convicção” na “legalidade dos seus procedimentos”. O Benfica confirmou também que pretende solicitar, “com urgência”, uma audiência à Procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal. Esta noite de quarta-feira, numa breve comunicação feita por Luís Filipe Vieira aos benfiquistas e simpatizantes, o presidente defendeu a SAD, mas não deixou uma única palavra relativamente ao responsável pelo departamento jurídico a quem, diz o despacho de acusação, nunca impediu que fizesse as ofertas que fez.

Luís Filipe Vieira repudia acusação contra SAD do Benfica

Luís Filipe Vieira e Paulo Gonçalves na reunião do Conselho de Presidentes da Liga em 2014

Mas recuemos um pouco na história para perceber melhor o percurso (e ascensão) do assessor jurídico no Benfica.

A verdade é que Alexandre Pinto da Costa voltou a ter influência na sua contratação. É que Alexandre era sócio de negócios de José Veiga — à época, 2007, ainda Diretor de Futebol do Benfica. Seara Cardoso havia abandonado o cargo de assessor jurídico da SAD e Paulo Gonçalves, especialista em direito desportivo, foi ventilado por Veiga para o cargo. O presidente Luís Filipe Vieira deu o seu aval à contratação.

Não tardou até que Paulo Gonçalves passasse, por exemplo, a representar o Benfica na Assembleia Geral da Liga. Tornou-se “visível”. Vieira tinha-o como de confiança e tornou-o um braço-direito no Benfica. Ao presidente, Paulo Gonçalves tratava-o somente pelo diminutivo “presi” — tal era a proximidade e confiança crescente entre ambos. As funções de Gonçalves no Benfica aumentaram. Não era somente o assessor jurídico que tratava de formalidades em transferências ou contratos de jogadores.

Recentemente, a revista Sábado revelou um e-mail enviado por Paulo Gonçalves a Luís Filipe Vieira, datado de 22 de outubro de 2015. E escrevia: “Presi, o juiz conselheiro Herculano Lima [ex-presidente do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol] solicita quatro convites para o jogo, que são para a filha. É bom que os peça… e é importante que nós os concedamos, quiçá com acesso ao lounge“. Não foi o primeiro pedido do género. Nem o último.

Bilhetes para jogos e merchandising do Benfica na origem da detenção de Paulo Gonçalves

Bilhetes, árbitros, “meninas” e ameaças

Gonçalves é suspeito de ter oferecido bilhetes para a zona VIP do estádio da Luz e lugar de garagem aos dois funcionários judiciais para todos os jogos de duas épocas. Ofereceu ainda mais de 200 euros em camisolas do Benfica e ainda deixou que um dos funcionários descesse ao parque de estacionamento reservado aos jogadores do Benfica e com eles tirasse fotografias. O agora coarguido no processo, o funcionário José Silva, ainda publicou essas fotografias no Facebook, mas acabaria por ser chamado à atenção pelo homem que agora o MP acusa de corrupção. Estava a dar nas vistas.

Toupeira acedeu mais de 600 vezes a processos criminais em segredo para ajudar o Benfica

No começo do ano, Francisco J. Marques, diretor de comunicação do FC Porto, divulgou no Porto Canal um e-mail alegadamente enviado por Gonçalves a Ana Zagalo, funcionária do Benfica. “Para além dos bilhetes que requisitei, preciso dos seguintes convites: Nuno Cabral, três; Ferreira Nunes, quatro; Júlio Loureiro, três.” O e-mail foi enviado a 27 de março de 2017, na véspera do clássico Benfica-FC Porto.

Antes, a 19 de setembro, Francisco J. Marques afirmava o seguinte no Porto Canal, ressalvando um nome: “Vocês lembram-se também do Júlio Loureiro, ex-árbitro, ex-observador, funcionário judicial e que, na sua condição de funcionário judicial, enviava notificações e informação antes de tempo, privada e em segredo de justiça, para o Benfica. Que se saiba estas coisas fazem-se em Portugal sem que nada aconteça, o que é especialmente grave. (…) A teia de poderes do Benfica fica também muito clara com estas coisas”.

Mas quem é, afinal, Júlio Loureiro?

De acordo com o comunicado da Polícia Judiciária emitido logo após a detenção de Paulo Gonçalves, foram esta terça-feira “realizadas trinta buscas nas áreas do Porto, Fafe, Guimarães, Santarém e Lisboa” que levaram à apreensão de “relevantes elementos probatórios”. Um dos locais das buscas pode ter sido o tribunal onde é funcionário Júlio Loureiro. Ele que foi anteriormente visado no caso dos “e-mails” por alegadamente ter enviado (era a isso que se referia Francisco J. Marques) para o assessor jurídico uma notificação do tribunal de Guimarães referente a uma audição do treinador do Benfica, Rui Vitória.

Na maior parte dos e-mails, incluindo aqueles em que Paulo Gonçalves solicita bilhetes, Luís Filipe Vieira surge em cc. E a acusação do Ministério Público dá conta disso mesmo. Luís Filipe Vieira autorizava as ofertas, sabia que elas existiam, mas nada fez para o impedir. Ainda assim, não recai sobre ele qualquer suspeita de crime.

Mas voltemos a Júlio Loureiro. Além de ser funcionário judicial, Loureiro, natural de Fafe, foi também árbitro (nunca chegou à principal categoria do futebol nacional) e observador de árbitros da Primeira Liga até à temporada 2015/16.

Nesse período, concretamente em 2014/15, Júlio Loureiro ficou conhecido por ter sido o observador encontro Braga-Benfica (2-1 para os minhotos), a 26 de outubro, que valeu ao árbitro Marco Ferreira a pior nota da temporada (2, muito insatisfatório). Esse jogo, onde os encarnados saíram com muitas queixas a nível técnico (grandes penalidades) e disciplinar (dualidade de critérios nos cartões), acabou por ter grande peso na surpreendente descida de divisão do madeirense — que em dezembro até foi sugerido pelo Conselho de Arbitragem para ascender a internacional e arbitrou a final da Taça de Portugal em maio.

Júlio Loureiro é agora um dos dois oficiais de justiça formalmente acusado, mas encontra-se em liberdade — enquanto José Silva está em prisão preventiva. É um dos coarguidos do processo e também terá beneficiado de bilhetes VIP para os jogos em troca de informações.

Mas e-mails há, envolvendo alegadamente Paulo Gonçalves, que não estarão diretamente ligados a corrupção. Em outubro, o diretor de comunicação portista, Francisco J. Marques, acusou o assessor jurídico das águias de ter escrito a Rui Gomes da Silva, advogado e ex-vice-presidente benfiquista, a dizer que se devia “partir a cara” ao ex-árbitro Jorge Coroado.

“No dia 25 março de 2014, o senhor Viriato Viseu (…) envia um e-mail para Rui Gomes da Silva que diz para se visionar um vídeo de Jorge Coroado, onde o antigo árbitro revela que os árbitros estrangeiros eram levados por dirigentes do Benfica a casas de meninas”, começou por dizer Francisco J. Marques. “O Rui Gomes da Silva, nesse mesmo dia, encaminha o e-mail para o Paulo Gonçalves e o João Gabriel [antigo diretor de Comunicação do Benfica]. Escreve ele: ‘Paulo e João, o que é que podemos dizer sobre isto?’ Que cartilheiro obediente era o Rui Gomes da Silva! A pedir instruções ao Paulo Gonçalves e João Gabriel”, acrescentou o diretor de Comunicação do FC Porto, antes de revelar a resposta de Paulo Gonçalves.

“A resposta foi a seguinte: ‘Eu não alimentava esta novela e partia-lhe a cara’. Ou seja, uma pessoa com responsabilidade na estrutura do Benfica, acha que se resolve o assunto partindo a cara ao Jorge Coroado. O Benfica quando ouve o Coroado a contar uma coisa que não gosta, acha que se resolve partindo-lhe a cara. Ao Pedro Proença partiram…”

Paulo Gonçalves foi detido em março, mas presente ao juiz de instrução saiu em liberdade. E foi em liberdade que foi notificado esta semana do despacho de acusação no processo E-toupeira.