Marielle Franco, a vereadora do Rio de Janeiro que foi assassinada na quarta-feira e cuja morte está a chocar o Brasil, “falava daqueles de que ninguém fala” e denunciava as dificuldades de “ser negra, de ser mulher, e de ser uma mulher negra no contexto de racismo do Brasil”. Quem o diz é uma assessora que trabalha no gabinete do PSOL na câmara do Rio de Janeiro e que contactava diretamente com Marielle — e que prefere não ser identificada.

A assessora, que convivia quase diariamente com Marielle Franco, diz ao Observador, por telefone a partir do Rio de Janeiro, que “a perda dela é muito triste”, e explica como a vereadora se tornou num fenómeno dentro e fora do Brasil.

Vereadora brasileira, ativista e crítica da Polícia Militar, foi brutalmente assassinada

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“Ela era de um complexo de favelas, a Maré, que tem 16 ou 17 favelas. Nasceu e cresceu lá. Quando foi eleita aqui no Rio, trazia isso junto com ela: o facto de ser negra, de ser mulher, de ser uma mulher negra no contexto de racismo do Brasil. Na verdade, era uma ativista pelos que vêm de onde ela veio”, conta a brasileira.

“A polícia trata os jovens como bandidos e ela denunciava isso”

A maior luta de Marielle era precisamente o combate à violência policial nas favelas. “Aqui no Rio instaurou-se a intervenção federal para agir contra a violência. Mas mesmo com essa intervenção, todo o mundo sabe que existem muitas violações aos direitos dos moradores das favelas”, diz a assessora, explicando que a polícia “trata qualquer pessoa que viva numa favela como suspeita de um crime”.

“Uma coisa que acontece bastante é a polícia entrar na casa de alguém sem um mandado judicial, o que não acontece fora das favelas. Na cidade, ninguém entra numa casa, num apartamento, sem um mandado. Nas favelas isso acontece. Tratam as pessoas que moram ali como suspeitas de crimes, estigmatizam-nas. E são sobretudo trabalhadores negros que vivem ali”, sublinha.

A assessora de comunicação do vereador socialista do Rio de Janeiro lembra um mapa da violência publicado em 2016 que mostrava como “a cada 23 minutos, no Brasil, um jovem negro é assassinado violentamente”.

“A toda a hora recebemos um relato de alguém que morreu só por ser quem é. Na semana passada, um menino que estava a sair da igreja, no norte do Rio de Janeiro, foi simplesmente atingido por nada. Um outro caso, que para mim foi o mais triste que aconteceu, foi em 2015. Um adolescente tinha acabado de arranjar um emprego, estava a comemorar com mais cinco amigos, e foram mortos porque a polícia achava que eles eram bandidos”, exemplifica a brasileira.

“Transformou a vida dela a lutar por essas pessoas”

Segundo a assessora, que também é negra e também cresceu numa favela, a ação política de Marielle Franco nasceu das “muitas coisas que ela viu de perto”. “Isso sensibilizava-a. Transformou a vida dela a lutar por essas pessoas. Ela não quer que aquelas mortes sejam vistas como um crime qualquer. Não é uma fatalidade, é um extermínio. Ela também perdeu uma grande amiga por causa da questão policial”, lembra.

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Por isso, as suspeitas da morte de Marielle têm-se voltado para a própria polícia, sobretudo para as chamadas milícias, os polícias que têm esquemas de conluio com traficantes das favelas. Alguns dados contribuem para essa tese: as balas encontradas no local do crime são as mesmas que a polícia utiliza habitualmente e que não podem ser vendidas livremente à população; além disso, Marielle tinha sido recentemente designada como relatora de uma comissão destinada a avaliar a intervenção das forças de segurança no Rio de Janeiro.

“É óbvio que não foi um crime por acaso. Ninguém levou nada do que estava dentro do carro, simplesmente metralharam o carro. Aparentemente foi algo encomendado, e como ela tinha esta história de denúncias…”, diz a brasileira, rematando: “Eu tinha uma grande admiração por ela e pelas coisas que ela defendia. Além disso, aqui na câmara, era muito prestável, muito sorridente. Toda a gente está muito mobilizada neste momento em memória dela”.