“Não são as portas do céu que se abrem. São as portas do inferno.” A mulher de cabelo branco sentada na primeira fila referia-se à construção da nova igreja no terreno designado “Lote K0”, situado na esquina entre a Rua José Escada e a Rua Hermano Neves, em Telheiras, na freguesia do Lumiar, em Lisboa. Mas podia muito bem referir-se ao ambiente do auditório da Biblioteca Municipal Orlando Ribeiro, onde esta quinta-feira se realizou uma sessão de esclarecimento sobre o projeto da nova igreja, que ficou marcada por momentos de exaltação. “Qual paróquia? Temos a paróquia ocupada pela Opus Dei!“, “Não chega já o Sporting?” ou “Isto é uma palhaçada!” foram algumas das expressões ouvidas no auditório de tal forma cheio, que os moradores que conseguiram entrar tiveram de se sentar no chão ou no palco.

Esta sessão durou quatro horas, terminou por volta da 1h00 da madrugada mas não deverá ser a última. A próxima deverá contar com a presença de um representante da Câmara Municipal de Lisboa. Ainda não se sabe quando vai realizar-se, mas sabe-se já o que se vai discutir: alternativas de terreno para a construção da igreja, a “primeira e prioritária opção”, segundo o presidente da Junta de Freguesia do Lumiar, Pedro Delgado Alves, em declarações ao Observador, no final da sessão.

É aquela [opção] que as peticionárias preferem, aquela que nós preferimos e aquela em que trabalharemos para já”, disse Pedro Delgado Alves ao Observador.

O presidente da Junta de Freguesia do Lumiar não deixou de alertar que “os espaços disponíveis são muito escassos“, adiantando que uma das opções seria construir a igreja no recreio na zona traseira da Escola Básica nº1 de Telheiras e, por sua vez, construir o recreio no Lote K0. “A resposta é claramente não. O que nós queremos preservar é o quadrado verde”, explicou uma das promotoras da petição. Pedro Delgado Alves confirmou que “há possibilidade de se fazer uma permuta” de terrenos e que é a “solução que está em cima da mesa”. Só depois de discutida se poderá ponderar o projeto em si, sobre o qual tem “as maiores reservas” — embora reconheça que não tivesse havido oportunidade na sessão para o discutir, apesar da apresentação da arquiteta Maria Alexandra Baptista.

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O Lote K0 está na esquina entre a Rua José Escada e a Rua Hermano Neves, em Telheiras, na freguesia do Lumiar, em Lisboa.

O presidente da Junta de Freguesia do Lumiar adiantou ainda que mantém a mesma posição que defendia há cerca de duas semanas, quando questionado pelo Observador. “Estamos a considerar a discussão naquela utilização de espaço, mas consideramos o mesmo: aquele espaço deve manter-se como está“, disse Pedro Delgado Alves não deixando de acrescentar que percebe “a posição da Câmara que quer honrar um compromisso que fez”. No final da sessão, o padre da Paróquia de Telheiras, João Paulo Pimentel, deixou o alerta: “Se não há alternativas de terreno, o que é que eu faço?”. A pergunta ficou por responder.

João Ferreira: “A iniciativa dos pais criou uma preocupação que devia ter sido da Câmara”

O discurso do vereador do PCP na Câmara Municipal de Lisboa foi um dos menos interrompidos. “Vive no Lumiar? Está aqui a fazer o quê?”, ouviu-se de alguém que estava no auditório. João Ferreira, a rir-se, respondeu que sim, que vive no Lumiar e prosseguiu com a sua intervenção, explicando que “fazia parte do executivo municipal quando a decisão da proposta foi tomada” — em 2016, a  proposta para o contrato-promessa que cedia o direito de superfície do Lote K0 ao Patriarcado foi aprovada em Assembleia Municipal com 12 votos a favor e dois contra, do PCP.

Relembrando que o PCP foi “a única força a votar contra”, João Ferreira apontou na sessão como principal motivo o facto de o Lote K0 ter parecido “desadequado”, quando “existiam alternativas”. Já na altura da aprovação da proposta, segundo a ata a que o Observador teve acesso, João Ferreira tinha questionado se foram apresentados “outros locais alternativos” ao jardim. O padre Rui Rosas, que esteve na paróquia durante 12 anos, esclareceu ao Observador que o Patriarcado não aceitou outros espaços por uma razão: “Este [Lote K0] era o único com espaço suficiente”. João Ferreira reconheceu, no entanto, que “existem poucos [espaços alternativos], mas existem”.

Mas o vereador apresentou ainda outro motivo: “Era necessário saber o que queria a população antes de ser tomada uma decisão” — o que, segundo ele, não aconteceu. “Foi a iniciativa destes pais que criou uma preocupação que devia ter sido da Câmara antes de tomar qualquer decisão”, disse. João Ferreira garantiu também que o PCP não se opôs à cedência da Câmara do direito de superfície ao Patriarcado em “condições muito vantajosas como o fez”. Recorde-se que a cedência do terreno, avaliado em mais de um milhão de euros, foi feita pelo “preço (simbólico) de cinco euros”. O vereador esclareceu que “o que esteve em causa foi aquela porção de terreno” que, defende, “mesmo para a função que hoje tem, pode ser melhorado”.

Não há nenhuma situação que possa ser considerada irreversível. Temos de arranjar uma solução. A Câmara não é insensível e creio que o patriarcado também não seja”, apontou ainda.

Já Maria Emília, líder da bancada do PSD na Assembleia de Freguesia, não vê a situação como irreversível: “Palavra dada é palavra honrada”. A líder alertou para a necessidade de se respeitar os contratos e que, entre opiniões, “há uma coisa que é verdade: a proposta foi aprovada na assembleia”. Maria Emília disse estar “estupefacta” com a situação e questionou “porque é que se esteve tanto tempo calado” – pergunta à qual uma das promotoras da petição respondeu: “Não sabíamos que [a igreja] ia ali ser construída”. A comunidade de Telheiras só se apercebeu mais recentemente, quando em fevereiro foi anunciado o projeto vencedor e foi divulgado na página da Paróquia.  “Quem vem à missa já sabia deste projeto há mais tempo”, aponta o padre João Paulo Pimentel ao Observador, acrescentando que tem pedido “sugestões aos paroquianos que vão à missa”.

Moradores de um lado, Igreja do outro, Câmara de Lisboa no meio. Pode uma capela mortuária ser construída ao lado de duas escolas?

A sessão desta quinta-feira acontece dois dias depois de a petição contra a intervenção urbanística neste terreno — que conta até à data de publicação deste artigo com 2.782 assinaturas — ter sido entregue em Assembleia Municipal. No mesmo dia, quer a Associação de Pais de Telheiras, quer a Associação de Residentes de Telheiras emitiram um comunicado a marcar a sua posição: ambas contra a construção da igreja.

Na sessão foi claro: mais pessoas se mostraram contra a construção. Mas a nova igreja também tem apoiantes. Um dos problemas apontados pela petição era o trânsito na tomada e largada de crianças nas escolas. Um dos intervenientes defendeu que esse argumento era “falacioso” e que essas questões não se colocam uma vez que “a missa é ao domingo e as aulas são de segunda a sexta”. Outro interveniente não concordou: “Não chega já o Sporting?” — referindo-se às dificuldades que diz ter em estacionar nos dias em que há jogo no Estádio de Alvalade.

O quadradinho verde com “vida própria”

“Descobri que o quadradinho verde tem uma vida própria. É uma personagem.” Quem descobriu foi Ana Contumélias, socióloga que fez uma tese de mestrado sobre a apropriação do espaço público naquela zona e que marcou presença na sessão desta quinta-feira. Garantindo que acha “o culto importante”, Ana Contumélias pouco se adiantou. A sua intervenção durou um minuto e meio: afinal, tudo o que defende já está escrito na sua tese, intitulada “Quadradinho Verde”.

Lá, alerta que o desejo de se criar uma “horta pedagógica” no Lote K0 já vem de 1998, quando encarregados de educação e vários elementos da Associação de Pais decidiram tomar a iniciativa de enviar uma proposta de usar aquele terreno que na altura estava preenchido por mato.

Assim, propomo-nos promover a boa utilização deste espaço com a instalação de uma horta pedagógica no espaço disponível, cercada por sebes vivas com possibilidade de associação a vários programas educativos”, podia ler-se na proposta.

Mas a história do “quadradinho verde” prolongou-se durante anos. A polémica existe, agora mas não é de agora. Começou em 2003, quando foi celebrado um contrato-promessa entre o Patriarcado de Lisboa e a Empresa Pública de Urbanização de Lisboa (EPUL) — uma empresa que auxiliava a Câmara Municipal nas questões de urbanismo. O contrato-promessa era relativo àquele terreno, o Lote K0.

Para contextualizar: a EPUL era a “dona legítima possuidora” do Lote K0, segundo o documento a que o Observador teve acesso, bem como do Convento da Nossa Senhora da Porta do Céu — que a EPUL expropriou ao dono do imóvel, em 1983, contava o jornal Público em 2015, uma vez que o convento se encontrava abandonado e arruinado. Apesar de pertencer à EPUL, foi a Paróquia de Telheiras — na altura Fábrica de Igreja Paroquial do Lumiar — que ocupou, durante vários anos, o convento para atividades e armazenar bens.

O contrato-promessa de 2003 previa o seguinte: a Paróquia de Telheiras desocupava o convento e, em troca, a EPUL cedia o direito de superfície do Lote K0 pelo valor de cinco euros e, ainda, fazia obras na Igreja da Porta do Céu, no valor de 497 mil euros. Esse contrato previa a cedência do direito de superfície exclusivamente para a “construção e manutenção de um edifício, para exercício de culto católico e fins assistenciais e culturais conexos com múnus apostólico do Patriarcado de Lisboa” no Lote K0. Com a celebração deste contrato-promessa, a Paróquia de Telheiras comprometia-se  a “não exceder o prazo máximo de 60 meses, para iniciar o funcionamento do equipamento religioso a construir no lote de terreno”. Ou seja, aquele terreno só podia ter como fim a construção de uma igreja e as obras teriam de ser começadas e concluídas em cinco anos, a não ser que o a EPUL prolongasse o prazo, ou seja, 2008. No contrato, é também apontada a razão que justifica essa construção:

A Urbanização de Telheiras está carenciada de mais uma Igreja Católica e de um Centro Social e Cultural conexo com o múnus apostólico da Igreja Católica, de qualidade, que permita dar uma resposta adequada às crescentes necessidades da população católica de Telheiras, em matéria prática da sua religião”.

O Patriarcado via então realizado o pedido de cedência desse terreno, que tinha feito dez anos antes, em 1993, para ali construir a igreja. Ou não. De facto, a paróquia desocupou o convento, a EPUL realizou as obras na Igreja, mas as obras no Lote K0 não foram concretizadas. A escritura que se devia “celebrar no prazo de dois anos” também não foi celebrada, embora a EPUL tenha dito que pediu ao Patriarcado os documentos necessários para o fazer, mas não os recebeu.

O Lote K0 continuava nas mãos da EPUL. Já o convento acabou por ser vendido à SOCEI — uma cooperativa ligada à Opus Dei que é dona do Colégio Mira Rio — em 2011. O convento acabou por ser parcialmente demolido e integrado no Colégio. De acordo com o jornal Público, só em 2012 a Paróquia de Telheiras contactou a EPUL e o presidente da Câmara, António Costa, para marcar a celebração da escritura. No ano seguinte, chegou a resposta da EPUL: uma vez que as obras no lote K0 não foram concretizadas no prazo estipulado, o direito de superfície extinguiu-se “automaticamente”. E o Lote K0 continuava nas mãos da EPUL.

Após uma tentativa da EPUL de vender aquele terreno e várias outras do Patriarcado de conseguir a cedência do direito de superfície, estamos em 2014, a EPUL é extinta e os terrenos passam a pertencer à Câmara Municipal de Lisboa. Explica o presidente da Junta de Freguesia do Lumiar que, “desconhecendo o histórico anterior e tendo havido ausência de novas diligências para a Igreja, os serviços da CML optaram por usá-lo para expansão das hortas urbanas do bairro — um pedido antigo da população. Mesmo que transitório, seria sempre uma “solução de um uso coletivo” — um uso que veio despertar os desejos do Patriarcado que, “verificando que o terreno que lhe estava contratualmente prometido desde 2003 estava a ter outro uso, retomou o assunto e exigiu a celebração do contrato definitivo”.

Tal viria a acontecer em 2016, quando a autarquia decidiu fazer novo contrato-promessa que ia buscar as condições assinadas em 2003, e que tinham sido entretanto revogadas. “É da intenção do Município honrar o contrato anteriormente celebrado pela extinta EPUL”, pode ler-se no documento a que o Observador teve acesso, que começou a ser preparado em outubro de 2015 — pouco depois de ter sido construído um jardim no Lote K0.

O vereador João Ferreira questionou ainda a razão pela qual foi feito um investimento na construção de um jardim para, dois anos depois, vir a ser destruído. Num artigo publicado em 2016, pelo jornal Público, a Câmara Municipal esclareceu que a construção do jardim foi feita para “benefício a população até que seja iniciada a construção” da igreja. O jardim deverá permanecer intacto até 2019 já que o contrato-promessa de 2016 prevê que as “construções e ocupações atualmente existentes até à data em que se venha a iniciar a construção por um período nunca inferior a 2 anos” sejam mantidas.