— Pai, sei que é a nossa floresta, mas parece que tudo mudou…
— Na verdade, tudo mudou!
Estas são das primeiras linhas de diálogo entre Kratos e o filho Atreus, no início da nova aventura do guerreiro de Esparta. A resposta enigmática do protagonista às palavras de preocupação e curiosidade do filho, são ao mesmo tempo uma resposta para os jogadores: nos primeiros minutos de jogo, Kratos confirma-nos que, embora seja o mesmo God of War, tudo está irremediavelmente diferente.
Em God of War III, vimos Kratos destruir o mundo para vingar a morte da mulher e da filha, destruindo o Olimpo e negando à deusa Atena o desejo, suicidando-se ao cair do pano. Mas a morte não chega com facilidade para um filho de um deus e a tranquilidade que o final da vida eventualmente traria, parece ser-lhe novamente negada. O capítulo III da saga acaba sem revelar o destino do personagem. Oito anos depois, vemos finalmente regressar Kratos e com ele uma das mais amadas séries de videojogos da era moderna com o lançamento, na próxima semana, do exclusivo da PlayStation 4 — God of War.
O jogo começa com Kratos a cortar uma árvore para servir de pira funerária à mulher, Faye, mãe de Atreus. Enquanto jogadores não sabemos porque Faye morreu – apenas vemos o seu filho a rezar aos Deuses sobre o seu corpo, enquanto Kratos prepara aquela que será a sua derradeira homenagem enquanto sussura: “Encontra o teu caminho para casa”. Faye, porém, deixou um último desejo: que as suas cinzas fossem espalhadas no cume da montanha mais alta de Midgard. É assim que iniciamos a nossa nova aventura.
Não são precisos mais de 30 minutos para nos apercebermos que estamos, muito provavelmente, perante o mais belo jogo desta geração. Tudo no design deste mundo faz com que nos sintamos em terras dos vikings — as florestas são verdes e resplandecentes, os riachos têm detalhe e cor, o horizonte parece ter vida e, quando fazemos zoom, tudo aparece quase com detalhe fotográfico. Enquanto jogadora nunca dei grande importância à qualidade gráfica – sempre a encarei como algo secundário à experiência –, mas é impossível ignorara qualidade gráfica ou a beleza fotográfica deste novo God of War. Mas a verdade é que a beleza deste jogo é apenas a ponta do iceberg.
Como tudo mudou
No início do jogo, Kratos diz-nos que tudo mudou e a nossa jornada neste novo God of War mostra-nos que é mesmo verdade. Este já não é um God of War no mundo violento de hack & slash dos tempos de outrora. O mundo evoluiu, os jogos e jogadores também. O velhinho género descendente das arcadas — marcado pelo repetitivo, mas muito divertido button mashing — acabou nesta série. Enquanto jogadores, estamos mais exigentes e os jogos, para cumprirem com as exigências de quem cresceu com esta indústria, foram também obrigados a evoluir. Já não podemos controlar Kratos através de três ou quatro simples botões. Já não se destroem inimigos através da mágica combinação tão familiar para os fãs da série do Quadrado, Quadrado, Triângulo.
God of War é agora um Action RPG e Kratos necessita que o jogador domine a técnica de combate, aprenda a controlar o seu fabuloso e imponente machado, e aprenda a estudar o seu inimigo. E dominar este machado Leviathan, requer tempo, paciência e acima de tudo, mestria. O sistema de combate, assumidamente inspirado na série Dark Souls e Bloodborne da produtora FromSoftware, permite-nos explorar as técnicas que melhor se ajustam ao nosso próprio estilo de combate enquanto jogadores. Sendo que, para mim, Bloodborne tem um dos mais bem conseguidos e fascinantes sistemas de combate de sempre, dar-me conta que God of War se inspirou neste já clássico recente é uma maravilhosa e refrescante surpresa. Os botões estão mapeados exatamente como em Dark Souls, sendo que os próprios ataques são eles mesmos personalizáveis. Com este sistema de combate, sinto-me mais na pele de Kratos do que alguma vez senti.
As lutas de Boss são constantemente novas e refrescantes, obrigando-nos a pôr em prática todas as técnicas com a magnitude e espetacularidade que são a imagem de marca desta saga. Kratos continua a ter o seu modo Rage e, quando o ativamos, vivemos a nostalgia do Kratos jovem e irascível que sempre conhecemos. Neste jogo, o personagem luta com os seus punhos quando está em modo Rage (ou Spartan Rage), e cada golpe é sentido na vibração do nosso comando.
Com a morte dos deuses da Grécia, Kratos disse adeus às suas Blades of Chaos, que trocou pelo poderoso machado viking Leviathan, que podemos lançar e chamar de volta como Thor com o seu Mjolnir. Lutar com este machado, dominar as suas técnicas e aprender a melhor forma de o usar, é provavelmente das experiências mais bem conseguidas de mecânica de jogo de que me lembro nos últimos anos. Podemos escolher simplesmente atacar com ele, atirá-lo, prender um inimigo à parede enquanto atacamos um outro, rodá-lo no ar e bater no chão, criando um ataque de área ou usá-lo como contra-ataque. Não interessa quantas horas jogamos: a experiência de usar o Leviathan parece sempre nova e essa constante novidade muito se deve ao fantástico design de som deste jogo. Todos os movimentos do machado são acompanhados por som.
Podemos personalizar o Leviathan como quisermos, utilizando uma das mais reconhecíveis características mecânicas de um genuíno RPG: a árvore de habilidades, moldando o machado ao nosso estilo. Esta personalização existe também para o escudo de Kratos, que é simultaneamente utilizado para defesa e ataque no protagonista (podemos mudar e melhorar o seu equipamento, colocar-lhe uma nova armadura, mandar o Ferreiro fazer algo novo, comprar ou simplesmente encontrar equipamento como espólios de guerra). E o mais maravilhoso é que toda esta experiência está imbuída de forma simbiótica e absolutamente fluída com a narrativa que estamos a viver.
A história de Kratos que é sobretudo de Atreus
O enredo é o catalisador principal de tudo. Esta é a história de Kratos, mas sentimos que é sobretudo a história de Atreus. Exploramos o mundo através dos olhos desta criança de dez anos, que perdeu a sua mãe e que tenta impressionar e criar uma ligação com o pai. Enquanto tenta desesperadamente entender o pai, Atreus parece ser o verdadeiro protagonista da história, apesar de Kratos ser a personagem que controlamos. É através dele que desbloqueamos pequenos tesouros — representados em forma de murais na parede em que podemos ver pintados — que nos revelam um pouco mais da História do mundo que nos rodeia, pedaços do passado de Midgard. Estes troféus e itens colecionáveis, ao contrário do que acontece em Uncharted, têm um objetivo e podem ser vendidos em troca de moedas que podemos depois trocar por melhor equipamento. Todos os detalhes da história e jogabilidade estão meticulosamente pensados para nos transportarem para a mitologia nórdica, sem criarem disrupção com a experiência de jogo.
Atreus não é uma personagem jogável, mas poderemos controlá-lo quando ataca um inimigo com o seu arco e flecha, complementando na perfeição a nossa estratégia de combate. Absolutamente essencial em lutas contra os trolls que vamos encontrando pelo caminho, Atreus é o nosso olhar em batalha, avisando-nos constantemente quando alguém está atrás de nós, nos lança projeteis ou nos vai atacar. Para além do arco e flecha, o filho de Kratos também pode participar no combate corpo a corpo, estrangulando um inimigo. A câmara, que agora está posicionada em cima do nosso ombro, já não permite a vista panorâmica e, mais vezes que o normal, damos por nós no centro de batalha, rodeados por inimigos enquanto tentamos sobreviver a qualquer custo. No final de cada luta, Atreus pergunta ao pai se desta vez esteve melhor em batalha.
Pai e filho caminham, lutam e aprendem um com o outro, num jogo que tem apenas um take. Não há cortes nem ecrãs de Load (a não ser que o jogador morra) e, como não existe qualquer diferença visual entre o jogo e a imagem cinemática, dei por mim a pressionar o botão de andar quando uma cena cinemática decorria sem me aperceber que o jogo caminhava já sozinho. Parece à primeira vista um detalhe meramente tecnicista, mas contribuiu para a fluidez da própria experiência. Mas, a verdade, é que os detalhes técnicos são secundários: o que efetivamente interessa é a história entre pai e filho, uma das melhores narrativas que alguma vez vi na indústria de videojogos. The Last of Us mostrou o quão eficaz pode ser um videojogo na experiência de uma história emocional, mas o novo God of War capitaliza esse meio de comunicação e traz-nos uma história familiar, de redenção e afeto como nunca tinha experimentado.
Cristopher Judge e Sunny Suljic, atores que dão a voz a Kratos e Atreus, respetivamente, dão dimensão e profundidade a estas personagens. Bear Macgreary, compositor da épica banda sonora, complementa tudo o que vivemos através de uma música que nos faz sentir que o ecrã não existe e que estamos em Midgard. Este é um produto meticulosamente preparado, desenvolvido, desde 2010, por uma equipa que claramente depositou tudo o que tinha na sua criação. Por essa razão, God of War é o jogo que sempre quisemos, mas é sobretudo o jogo que a indústria necessitava.