O banqueiro angolano, cujo nome mais tem sido referido no julgamento do caso Fizz, chegou esta segunda-feira ao tribunal para ser ouvido no Campus de Justiça, em Lisboa, acompanhado por três advogados. Na primeira de quatro sessões de julgamento reservadas à sua audição, Carlos Silva recordou como conheceu o procurador Orlando Figueira, que está a ser julgado por corrupção, recusando algum dia ter-lhe oferecido um trabalho em Angola. Quando, então, confrontado com uma série de mails trocados com Paulo Blanco, entre eles uma minuta do contrato de trabalho celebrado com o magistrado, Silva negou algum dia ter recebido aquela informação.
O testemunho de Carlos Silva, que tem igualmente nacionalidade portuguesa, poderá ser fundamental no processo. Em tribunal, recordou que o também arguido, o advogado Paulo Blanco, lhe foi apresentado em 2008 na embaixada de Angola como advogado da República de Angola no processo “Banif” — que corria no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), em Portugal, e que estava nas mãos do magistrado Orlando Figueira. “Pediram-nos para colaborar com ele, quando ele precisasse”, disse esta manhã em tribunal.
Três anos depois, terá sido o próprio Blanco a dar-lhe um recado do procurador Rosário Teixeira, num episódio que o advogado já relatou em tribunal. Rosário Teixeira queria ouvir Carlos Silva enquanto testemunha e pedira a Blanco que falasse com o banqueiro para articularem uma data que lhe desse jeito, numa vinda a Lisboa. “O dr. Orlando Figueira chegou no final do interrogatório. Ficámos todos a conversar. Criou-se ali um clima destendido. Em 2011 Angola era um tema muito comum, eu não sabia como interromper, como sair daquela conversa informal e cortês do senhor magistrado. Então disse que tinha um compromisso, mas tinha muito interesse em continuar a conversa noutro dia”, recordou. Dias depois, estava a almoçar com Paulo Blanco e Orlando Figueira.
Na versão de Orlando Figueira, depois da inquirição de Rosário Teixeira, Carlos Silva teria dito que ele seria uma boa escolha para trabalhar com ele. No almoço que se seguiu, o banqueiro teria efetivado o convite. A testemunha, no entanto, garante que foi Figueira quem mais falou. E que apenas se falou em Angola. “Terá sido um almoço de hora e meia, de cortesia. No final ninguém trocou nem telefones, nem mails, não se falou de trabalho coisíssima nenhuma”, recordou, recusando o convite de trabalho.
O encontro que diz não ter acontecido
Quando lhe perguntaram sobre um alegado encontro em Luanda em abril de 2011, no Hotel Trópico, onde Blanco e Figueira ficaram alojados durante a Semana da Legalidade, a testemunha disse que nada disso aconteceu. “Só soube o que é a Semana da Legalidade quando começou o processo Fizz. E dizerem que fui de calções para um hotel de negócios… Há coisas que machucam um bocado”, disse.
Ainda assim, o banqueiro recorda-se que, já depois desse almoço em Lisboa, estava em Angola e foi contactado pelo advogado Paulo Blanco para saber se tinha algum “desafio” para o magistrado no seu banco. “Pareceu-me que foi um telefonema de alguém que queria ajudar alguém que estava a passar um problema pessoal… Sabe, recebo muitos telefonemas, às vezes percebo que é a chamada cunha, outros…”, respondeu à procuradora do Ministério Público, Leonor Machado. “Fui muito claro que no banco não tínhamos nenhum desafio”, reiterou, sublinhando que o assunto morrera ali.
Blanco, no entanto, voltaria a ligar-lhe pouco depois. E Carlos Silva sugeriu-lhe, então, que falasse com o advogado Paulo Marques, um português que trabalhava no departamento jurídico do Banco Privado Atlântico de Angola. Recorde-se que Orlando Figueira e Paulo Blanco já tinham mencionado o nome de Paulo Marques, entretanto falecido, nos seus depoimentos, argumentando que Orlando Figueira teria assinado um contrato de trabalho com Carlos Silva precisamente para o substituir. Um argumento que Carlos Silva considerou esta segunda-feira “absurdo”. “O Paulo Marques em 2011 era administrador e fundador e eu tenho a honra de continuar a ser sócio dos filhos dele. Ele tinha muito capital de experiência”, justificou.
Os mails que Carlos Silva não leu
Estes telefonemas terão acontecido em junho mas, no processo, existem vários registos de mails trocados entre Blanco e Carlos Silva. Num deles, o MP encontrou mesmo a minuta do primeiro contrato assinado por Orlando Figueira, com a Finicapital, que só depois seria mudado para a Primagest.
— Não se recorda?, perguntou-lhe a procuradora Leonor Machado.
— Não me recordo não, não li. O dr. Paulo Blanco tem um perfil muito próprio de interação, não sei o que estaria aqui…, disse.
A insistência da procuradora não avivou a memória do banqueiro. “A primeira regra de disciplina de um gestor é: mails são com uma assistente, a disciplina é ver os mails das pessoas com quem o gestor do banco interage”, respondeu, garantindo que a sua assistente era obrigada a conhecer todas essas pessoas. E reafirmando que tem quatro caixas de email e responsabilidades em vários países.
— Mas não acha estranho o Paulo Blanco ter enviado a minuta de um contrato. Apesar de poder ser uma pessoa insistente, tem que haver alguma coisa por trás?, interrompeu e insistiu o juiz presidente Alfredo Costa.
— Agora a esta distância… seria por a Finicapital ter uma parceria importante com o banco [BPA] na baía de Luanda e eu podia pressionar? Não sei, interrogou-se.
Já à tarde, foi a vez dos advogados de Paulo Blanco e Orlando Figueira insistirem com o banqueiro sobre a troca de mails, mostrando como o tom de Carlos Silva foi mudando e tornando-se cada vez mais próximo de Blanco. Mas Silva manteve a sua versão e até disse que o advogado tinha uma forma muito próprio de “interagir” com os outros e até de se impôr. Mais. Que a sua intenção seria ter uma avença com o Banco Privado Atlântico Europa.
— O dr. Paulo Blanco é advogado representante do estado angolano, eu tenho que saber gerir. Tenho uma porta aberta, uma licença bancária, tenho que gerir todos os mails institucionais, quando são temas do banco eu mantenho a minha postura de correcção, disse Carlos Silva.
A certa altura a juíza Ana Guerreiro da Silva perguntou-lhe, então, se quando recebeu um mail com uma minuta de um contrato, a assistente não respondeu a perguntar se seria um engano ou que teria feito. “Tudo o que são temas do banco vão a algum lado… eu recebo centenas de emails, o trabalho num banco é desafiante, eu trabalho em três. O que não é relevante não chega, não tem tratamento”, respondeu.
Nem sequer é amigo de Proença de Carvalho
Quanto ao advogado Proença de Carvalho, Carlos Silva disse que o BPA tem uma avença com a Uria, mas não com Proença de Carvalho. Reafirmou que a relação que mantém com o advogado é de “cortesia” e que não se pode falar em amizade “no verdadeiro sentido do termo”. Quando lhe perguntaram sobre um alegado acordo de cavalheiros, em que Orlando Figueira não falaria sobre o seu nome nem do de Proença no âmbito do processo Fizz, o banqueiro negou. E considerou “absurda” a tese de que teria pagado os honorários do advogado Paulo Sá e Cunha, quando esta era advogado de Orlando Figueira. “Então porque o envolvem nesta história?”, perguntaram-lhe. “Não sei”, respondeu.
A única ligação feita entre o advogado Proença de Carvalho e Carlos Silva em tribunal partiu do testemunho de Iglesias Soares, administrador do BPA, que garantiu que chegou a falar com o banqueiro a pedido do magistrado. Carlos Silva ter-lhe-ia dito para recorrer ao seu advogado, Proença de Carvalho. A partir daqui sucederam-se as reuniões entre o magistrado e o advogado, que Proença veio confirmar em tribunal servirem para cessar um contrato de trabalho que tinha celebrado com a Primagest.
As contradições entre as versões levaram a advogada de Figueira, Carla Marinho, a pedir uma acareação entre banqueiro e magistrado — como aliás já tinha acontecido com o advogado Proença de Carvalho e com a procuradora Cândida Almeida. O juiz decide na próxima sessão, que é já esta terça-feira, se o permite.
Recorde-se que, até agora, os arguidos Orlando Figueira e Paulo Blanco têm mantido a tese que por trás do contrato com a Primagest, que levou Orlando Figueira a abandonar a magistratura, estaria o banqueiro Carlos Silva. O Ministério Público (MP) acredita que o magistrado recebeu mais de 740 mil euros do ex-vice-presidente angolano, Manuel Vicente, para arquivar os inquéritos em que ele era investigado por corrupção e branqueamento de capitais. Além de o acusar de corrupção, branqueamento de capitais, violação do segredo de justiça e falsificação, o MP acusa também o advogado Paulo Blanco, que representou o ex-governante angolano, e o empresário Armindo Pires, com plenos poderes para o representar em Portugal em qualquer ato.
Dinheiro, arquivamentos e poder. Nove perguntas para entender o caso Manuel Vicente
(Artigo corrigido e atualizado às 20h54)