Alex Turner tem um óptimo cabelo. E ter um óptimo cabelo é meio caminho andado para alcançar o estatuto de rockstar. Além disso, convém ter boas canções. E Alex Turner já fez muitas, na verdade continua a fazê-las. Isto para dizer que os Arctic Monkeys, aqui concentrados na figura do frontman e líder e compositor e vocalista, têm tudo o que interessa. A obra, a criatividade, a pinta e a liberdade suficientes para fazer o que querem, quando querem.
O novo álbum, Tranquility Base Hotel & Casino, é o resultado de todos estes ingredientes juntos. É um surpreendente-mas-ao-mesmo-tempo-nem-por-isso conjunto de canções feito por uma banda que nasceu da distorção das guitarras, das coisas juvenis e nervosas, para chegar a 2018, somar 16 anos de carreira e atirar aos fãs um álbum que é a banda sonora oficial de um baile de engate para rockers apaixonados/deprimidos/ébrios (riscar o que não interessa) que ou não sabem dançar ou o fazem com muita timidez.
Na primeira canção, o verso que inaugura o disco mostra Alex Turner a cantar algo como “eu queria ser um dos Strokes”. Mas agora já não quer. Porque enquanto os Strokes já lá vão (desculpem mas é verdade, quando é que foi a última vez que uma canção dos Strokes nos bateu forte nos nervos?), os Arctic Monkeys continuam cheios de gozo. Tranquility Base Hotel & Casino é obra de quem acorda com vontade de fazer o que faz, independentemente das horas. É fruto de paixão pelo estúdio, por fazer bem, às vezes mal, apagar, começar de novo, juntar aqui, cortar ali, beber café, fumar um coiso, beber uma cena, uma maravilha.
E Turner queria ser um Stroke, mas agora já não quer. Vive nas colinas de Hollywood, sai de casa sempre com estilo aprumado e calça vincada, para aquele café que qualquer estrela disfarçada merece tomar numa manhã que só começa pelo meio-dia, meio-dia e meia. Já não quer ser um Stroke porque não precisa, porque já é mais, porque já construiu uma escola e um estilo, porque ser um Arctic Monkey tem muito melhor cotação, porque o jovem padawan ultrapassou o mestre jedi sem passar para o lado negro. E conseguiu fazer um novo álbum que não tem nada a ver com o que a banda fez antes, ao mesmo tempo que tem tudo a ver.
A brilhante camarada de redacção que dá pelo nome de Ana Cristina Marques escrevia há pouco tempo neste vosso Observador um texto essencial sobre os 30 anos, o que é e pode ser fazer 30 anos, o que representa ou não, o que influencia ou não na atitude ou nas decisões de alguém. Ora bem. Alex Turner recebeu um piano quando fez 30 anos. Agora tem 32. E estas canções foram escritas precisamente sobre as teclas desse piano — facto confirmado pelo próprio músico em várias entrevistas que tem dado, algumas delas de óculos escuros mesmo quando está dentro de casa. Pode parecer simbologia a mais, mas provavelmente não é. Porque Tranquility Base Hotel & Casino não cheira a guitarras e baterias enraivecidas, não veste ganga e cabedal como outros discos dos Arctic Monkeys, não veio ao mundo para levantar poeira nos festivais desta vida.
[ouça o álbum através do Spotify:]
Este álbum tem balanço de crooner, mas com algo mais a dizer do que relatar “apenas” histórias de corações partidos (ainda que estas continuem a ser as melhores). Há uma espécie de conceito mascarado por aparente desleixo. O mundo contemporâneo, suas pressões e respectivos desencantos, a hipótese um outro mundo qualquer paralelo, uma mini-ficção-científica-distópica mascarada de bar aberto só disponível a partir das más horas da vida. Mas é também resultado da cabeça de um compositor que brinca com as palavras como poucos da sua geração e área criativa consegue fazer. E em duas dimensões distintas: partindo das experiências pessoais e partindo da observação sobre o comportamento dos outros.
Um Nick Cave mais alegre ou com mais esperança, um slacker rocker com atitude (é possível, é mesmo), um Gainsbourg com menos tabaco, mais os anos 70 de Lennon e Bowie… bom, tudo o que é boa gente que um dia criou mundos paralelos ao piano (e não só). E tudo o que é boa gente que um dia disse “o que fiz no álbum anterior não se vai repetir”. Tirando aquilo que se repete.
Quando em 2006 os Arctic Monkeys actuaram no Paradise Garage, em Lisboa, quem esgotou a sala sabia as canções do primeiro álbum de cor. Saltavam, gritavam, mantinham bem aceso o mosh pit, suavam até não poder mais… mas conheciam todas as mudanças de tom e de ritmo, onde entrava a guitarra e para onde saía a bateria. Porque na essência, os então garotos trabalhavam a pop, os detalhes, as cores da canção — objecto gerado para criar amizades e estabelecer laços. E esse trabalho tem sempre o mesmo resultado: entrar no cérebro e não sair mais.
12 anos depois a ideia é a mesma, mas com um método distinto. Tranquility Base Hotel & Casino só tem boas canções mas não tem nenhuma pronta a transformar-se em hino de multidões. O disco é obra de gente ambiciosa, com ego, gente que tem a mania, que sabe que pode ter a mania. E por isso é um disco feito para ser ouvido do princípio ao fim, sem singles óbvios, sem esperar ajuda nenhuma da parte dos milagres do streaming que somam números e mais números, plays e mais plays. Isso não vai acontecer. E o mais engraçado é que em 2004 esta rapaziada começou a dar nas vistas com canções soltas, reveladas ao mundo pelo MySpace (nem mais, o MySpace, ele há coisas…).
[o teaser revelado há um mês:]
O trabalho de Alex Turner no projecto Last Shadow Puppets, a banda sonora de “Submarine”, as canções menos tesudas dos Arctic Monkeys… Este embalo lânguido e meio teatral não é necessariamente novo, mas nunca foi tão assumido como agora — há temas que não têm secção rítmica, fica o aviso aos mais roqueiros. Não é um álbum chato, nem um bocadinho, mas foi feito em baixa rotação. É assinado por uma banda mas cheira mais a disco a solo de Turner que outra coisa.
O homem parece um ilusionista num espectáculo de variedades, ilusionista que por acaso também canta. E que bem que este inglês canta, mesmo que a Sheffield que o criou e lhe deu os princípios básicos do rock’n’roll pareça agora distante. Alex Turner vive em Hollywood, rendeu-se ao sol. Não é homem de família como alguns colegas de banda. Não tem horários. Não tem trabalhos de casa. A vida dele é ser Alex Turner e ele faz isso tão bem que Tranquility Base Hotel & Casino serve de banda sonora para os dias do artista, primeiro que tudo é a música dele mesmo, dele depois dos 30, só depois talvez se transforme na nossa.
Mas o jovem-crescido Alex pode fazer isto tudo. Ele sabe. Ele tem bom gosto. Ele tem angústias e tem criatividade para as transformar em boa obra. Deem-lhe um desconto, não se queixem da falta da electricidade nas canções, esqueçam essas merdas. Até porque, sinceramente, olhem para o cabelo do homem. Que belo cabelo. E isso conta. Conta muito.