Pode um cabeça de cartaz não ser minimamente consensual? Pode. Esta quinta-feira, no NOS Primavera Sound, enquanto uma horda de adolescentes e um número substancial de adultos cantava, verso a verso, as canções da neozelandesa Lorde, outros passeavam pelo recinto, falavam sobre o concerto de Father John Misty (que cativou os fãs mais alternativos), namoravam ou contavam o tempo para ver o espetáculo seguinte: o do rapper Tyler the Creator.
A conclusão a tirar deste primeiro dia da sétima edição do Primavera Sound é, porém, outra: o festival mudou. E não se alterou apenas a localização de alguns dos (excelentes) espaços de restauração regional (onde andava a Casa Guedes, perguntava-se na internet durante a tarde) ou a estrutura do palco mais dedicado à música eletrónica, que se tornou numa espécie de discoteca fechada (deixou de ser a céu aberto). A grande mudança do Primavera foi a abertura a outros géneros musicais, com o festival a querer tornar-se maior e a querer cativar um público mais jovem.
O irmão mais velho do festival de Barcelona, o Primavera Sound catalão, já tinha dado sinais disso mesmo com a confirmação de Lorde e do grupo de trap Migos. Gente que nos últimos anos dividiu a crítica mas que conquistou as massas, granjeando enorme popularidade entre os ouvintes mais novos. A isso somou-se uma aposta forte e declarada no hip hop — género a que alguns chamam a pop desta década –, o que fez com que o NOS Primavera Sound deixasse de ser o festival dos indies-hipsters barbudos para passar a ser outra coisa: um festival mais eclético e abrangente, como apontarão os mais descomplexados, e “uma coisa em forma de assim”, como dirão os céticos. Mas uns e outros concordarão que o festival portuense tem hoje um pé no presente e outro no futuro e que já não pertence — se é que algum dia pertenceu — a um único público.
[Veja na fotogaleria as imagens do primeiro dia da sétima edição do festival NOS Primavera Sound:]
Tyler, o renovador
Dúvidas houvesse de que a aposta no hip hop seria um tiro certeiro, esta quinta-feira, ficou claro de que a mudança de rumo foi bem feita. Tyler, the Creator provocou uma enchente enorme no palco Seat e deu um concerto que para um público sub-35 foi relativamente consensual. O ex-membro dos Odd Future compensou, e de que maneira, o cancelamento da sua atuação no festival Super Bock Super Rock no verão passado. Afinal, dirigiu-se ao Porto com um Flower Boy (o seu disco mais recente) já amadurecido e ouvido de fio a pavio pelos fãs de hip hop.
“É muito interessante ver o efeito que essas canções tiveram”, afirmou a certo ponto Tyler, the Creator, para logo de seguida dizer que ia era tocar uma canção antiga. A afirmação fez lembrar que o rapper já não é uma promessa do futuro, mas sim uma certeza do presente com um passado que impõe respeito.
Vestindo uns calções e envergando um colete refletor em tom amarelado, rimando e cantando em cima do palco com cenários que iam mudando durante o concerto (como se estivesse numa peça de teatro), o rapper e produtor musical californiano teve uma excelente prestação. Talvez tenham faltado, tal como a Lorde, momentos inesperados: os momentos de voz pré-gravada (sobretudo, mas não só, de convidados que participaram em temas seus, e que não foram substituídos com coros ou segundas vozes) e o formato do concerto, sem banda e com DJs e computadores portáteis, fizeram com que a música soasse muito próxima da que se gravou em estúdio.
Mas para isso muito contribuiu também a boa forma de Tyler, the Creator, eficaz a rimar, em momentos de spoken word e a cantar. Capaz de galvanizar o público com os seus versos de fúria, agressivos e sem pudor, o californiano aplicou no concerto a receita que torna a sua música tão única: o equilíbrio entre esses momentos explosivos e ocasionalmente festivos (por vezes evocando os ritmos trap e eletrónico) com confissões vulneráveis, algumas delas reveladas só com notas de piano a acompanhar. “Who Dat Boy”, “Tamale” e a belíssima “See You Again”, que encerrou o concerto e que conta com um doce refrão de Kali Uchis, foram alguns dos grandes momentos da noite. Foi o concerto certo no momento certo da carreira de Tyler, The Creator. E o Primavera não mais será o mesmo, reforçando a programação hip hop e eletrónica já a partir desta sexta-feira.
No primeiro dia da sétima edição do NOS Primavera Sound, ouviu-se ainda o funaná dos Fogo-Fogo, o R&B lânguido e sensual de Rhye, o rock assumidamente subversivo dos Starcrawler (que incluiu arremesso do suporte do microfone da cantora para o fosso dos jornalistas) e um DJ set de Jamie XX que cruzou o melhor house com os melhores refrões de pop eletrónica. Esta sexta-feira, no segundo dia do festival portuense, haverá concertos de Vince Staples, Four Tet, Fever Ray, A$AP Rocky e Unknown Mortal Orchestra, entre outros.