Há rendas ilegais e rendas que são excessivas no setor elétrico português, defendeu esta quarta-feira o especialista e ex-diretor da Comissão Europeia na área da energia no Parlamento. Pedro Sampaio Nunes foi o primeiro a ser ouvido na comissão parlamentar de inquérito às rendas excessivas da eletricidade, na condição de ter sido o autor da queixa apresentada em Bruxelas por algumas personalidades contra Portugal por ajudas de Estado ilegais à EDP.

Para este responsável, a Comissão Europeia tem sido conivente com estas rendas ilegais em Portugal, ao validar os contratos CMEC (custos de manutenção do equilíbrio contratual) das centrais da EDP, e deixou um apelo aos deputados para levarem o tema ao Tribunal Europeu de Justiça a quem compete fiscalizar a atuação da Comissão.

Sampaio Nunes, que foi secretário de Estado do Governo de Santana Lopes, mas não com a pasta da energia, começou por recordar a sua intervenção no quadro legal comunitário que criou as regras do mercado europeu de energia para manifestar a sua “tristeza e choque” pelo facto de os consumidores portugueses não estarem a ser beneficiados por esta iniciativa. Portugal, lembra, tem os preços mais elevados da eletricidade na União Europeia (em paridade poder de compra) e deixa a pergunta.

“Como é que é possível num contexto de descida do preço das matérias primas e do custo de tecnologia que os preços tenham aumentando muito mais em Portugal que na UE”?

E dá a resposta:

“É o resultado da mistura explosiva de rendas, dadas ilegalmente pelos CMEC (custos de manutenção do equilíbrio contratual que beneficiam as centrais da EDP), a titulo duvidoso pelos CAE (contratos de aquisição de energia que beneficiam centrais de investidores internacionais do Pego e da Tapada do Outeiro) e de um apoio muito prematuro e massificado às energias renováveis (eólicas) quando elas ainda não estavam maduras”.

Apesar da convicção manifestada por Sampaio Nunes de que os CMEC constituem uma ajuda ilegal no quadro comunitário, esse não foi o entendimento da Comissão Europeia que começou por aprovar este mecanismo em 2005 e que recusou investigá-lo, na sequência da queixa que recebeu em 2012.

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Aprovação de Bruxelas foi um “mau momento” e pode revelar boa relação com ministro

“Fazer queixas à Comissão Europeia, que é complacente e conivente com esta situação, é ineficaz”, concluiu. Sampaio Nunes, que já teve responsabilidades na direção-geral da energia em Bruxelas, considera que os serviços da Comissão Europeia foram complacentes com esta situação.

Apesar de não querer deixar a ideia de que a Comissão funciona de forma aleatória ou não profissional, Sampaio Nunes descreve a aprovação em Bruxelas das decisões do Governo português em relação à EDP como tendo sido “um mau momento ou a vontade de satisfazer uma boa relação que existia na altura entre o ministro da Economia — Álvaro Barreto — e a comissária (da Concorrência) que deixou passar os CMEC. Na mesma altura, a DG Comp chumbou a operação que juntava o negócio de gás natural à EDP, uma proposta que tinha partido do Executivo de Durão Barroso e poucos meses depois de o ex-primeiro-ministro português ter assumido a liderança da Comissão Europeia.

Diz ainda que Durão Barroso, então presidente da Comissão Europeia, não respondeu à carta com a queixa enviada em 2012.

O regime legal dos contratos CMEC foi aprovados em 2005 já depois de ter recebido a luz verde da Comissão Europeia que considerou a solução compatível com as regras de ajudas de Estado. Sampaio Nunes, então secretário de Estado da Ciência e Inovação, conta que se mostrou contra o diploma, mas não insistiu porque não era a sua tutela. A energia estava então com o secretário de Estado Adjunto da Economia, Manuel Lancastre. “Não me ia armar em esperto” logo na primeira reunião de secretários de Estado.

Para o especialista, a comissão de inquérito pode contribuir para resolver o problema, recorrendo da decisão de Bruxelas que validou estas rendas para o Tribunal Europeu de Justiça que tem a missão de fiscalizar a atuação da Comissão Europeia. Descrevendo um ambiente de “grande proximidade” entre comissários e ministros — contando até o caso de uma proposta de diretiva que chegou num mail da EDF (elétrica francesa) — o antigo funcionário da CE admite até que a instituição pode ser responsabilizada. Isto em caso de vir a existir decisão judicial que declare a ilegalidade dos contratos e venha a sustentar pedidos de indemnizações por parte dos compradores da elétrica que pagaram o preço com o valor incorporado dos CMEC.

Contratos “ilegais” da EDP começaram numa decisão de 1995

Para Sampaio Nunes, a ilegalidade face às regras europeias começou logo em 1995 na decisão de estender o regime dos CAE, criado para financiar a construção de novas centrais elétricas por investidores privados, às unidades da EDP. Isto porque as centrais da elétrica, então totalmente pública, já estariam amortizadas e não precisariam de compensações, para além de representarem a quase totalidade da produção elétrica portuguesa.

Esta decisão política, que foi tomada quando Mira Amaral era ministro da Indústria, antecedeu a privatização da EDP, já lançada pelo Governo socialista que se seguiu. Sampaio Nunes admite que isso terá ajudado a “engordar o porco”, ou seja, a valorizar a empresa que ia para o mercado, assinalando contudo que quando este regime foi aplicado à EDP não existia a legislação europeia que impedia este tipo de ajudas. A mesma motivação, acrescentou em resposta ao deputado Hélder Amaral do CDS, levou futuros governos a dar mais importância ao valor da empresa do que aos cortes nos custos da energia elétrica.

Em resposta ao deputado do PCP Bruno Dias, afirmou que a prioridade dada ao valor da elétrica foi assumida pelos vários executivos que não tiveram noção dos efeitos explosivos que tais opções que viriam a ter nos preços futuros da eletricidade. Sampaio Nunes revelou ainda que um membro próximo do anterior primeiro-ministro, Passos Coelho, lhe sublinhou a importância de realizar com sucesso a primeira privatização do tempo da troika, precisamente a da EDP.

Gestão da EDP está a fazer o seu trabalho, mas não pode ser à conta dos consumidores.

E a EDP? Sampaio Nunes deixa até elogios à gestão de António Mexia, quando confrontado com os lucros de mil milhões de euros anuais que a elétrica tem apresentado na última década e diz que é acionista “residual” da empresa.

“Eles estão a fazer o seu trabalho e por isso são bem remunerados. Mas não pode ser à conta dos consumidores”. E à pergunta — a EDP ganha sempre? — Sampaio Nunes responde: “Não sei se ganha sempre, mas nunca perde. Se tem receitas garantidas tem uma almofada que mais ninguém tem.”

Deixa ainda elogios ao atual secretário de Estado da Energia, Jorge Seguro Sanches, que tem sido determinado em reduzir as rendas e não permitir que haja mais produção renovável premiada.

O antigo diretor de energias convencionais da Comissão Europeia, e reformado desta instituição, reafirmou os argumentos quando foi questionado sobre a segunda parte da queixa que apresentou em Bruxelas, contra a extensão da concessão do domínio hídrico das barragens da EDP por 25 anos, por ajuste direto e sem concurso público. O deputado Jorge Costa quis saber porque é que Bruxelas começou por questionar este processo quando abriu uma investigação ao tema, fundamentada em várias dúvidas sobre a legalidade do procedimento, mas depois acabou por arquivar o caso, numa decisão já tomada no ano passado.

O deputado lembrou ainda que os acordos assinados em 2005 com a EDP, e que permitiram passar dos CAE aos CMEC, só entravam em vigor quando fosse estendido o prazo dos contratos de domínio hídrico. Essa cláusula suspensiva limitou a margem de manobra do Governo para lançar um concurso público para atribuir a exploração das barragens da EDP. Sampaio Nunes recorda que o ministro que tomou esta decisão — Manuel Pinho — estava sob pressão para encontrar uma solução para impedir um aumento dos preços da eletricidade de 14%, pelo que terá aceite o valor proposto pela EDP pelo prolongamento do prazo de concessão, e que rondou os 700 milhões de euros.

Sampaio Nunes responsabiliza apoio prematuro às eólicas por défice tarifário

Na sua intervenção inicial, Sampaio Nunes alertou ainda para o efeito que teve a política portuguesa de apoio prematuro à energia eólica e que defende ser o principal fator que esteve na origem do défice tarifário, uma afirmação que deixa de fora a escalada do preço dos combustíveis que fizeram subir os custos da produção de eletricidade. Esta dívida está a ser paga nas tarifas de acesso às redes e, sublinha, tem vindo a constituir uma barreira à entrada no sistema de energias renováveis mais competitivas no preço como a fotovoltaica.

Ouvido como especialista na energia, Sampaio Nunes esteve ligado profissionalmente à promoção de projetos de energia térmica em Portugal, nomeadamente em associação com a Patrick Monteiro de Barros. Depois de desistir do projeto de construção de uma refinaria em Portugal, o empresário do setor do petróleo estudou a possibilidade de construir uma central nuclear em território nacional, como resposta ao aumento do preço do petróleo e dos combustíveis fósseis. Estes dois investimentos envolviam a necessidade de apoios públicos, nomeadamente ao nível das tarifas da eletricidade.

Já na segunda ronda Sampaio Nunes assumiu o seu apoio à energia nuclear, como forma de combater as emissões de CO2, mas reconhece que a opção deixou de estar em cima da mesa depois do desastre da central de Fukoshima.