“O que se passa no PSD em Lisboa é uma autêntica network de negócios onde a política é só um hobbie“. Quem esta semana circulasse pelos corredores sociais-democratas não teria dificuldade em encontrar vozes críticas àquilo que se está a passar nas fileiras do partido na gestão de autarquias em Lisboa. Esta quarta-feira, a Polícia Judiciária surpreendeu todos quando fez cerca de 70 buscas em juntas e câmaras do PSD e PS, numa mega-operação que envolveu 200 elementos da PJ e 12 magistrados do Ministério Público. Em causa estão ajustes diretos de juntas de freguesia do PSD a empresas de militantes do PSD e um esquema de distribuição de jobs for the boys, articulado entre socialistas e sociais-democratas da capital. Mas se o PS, que também tem dedo nisto, se limitou a emitir um comunicado a dizer que estava a colaborar com as autoridades, o PSD fez “espalhafato” ao convocar os jornalistas para uma conferência de imprensa na sede do partido, numa altura em que elementos da PJ ainda estavam no local. Porquê? Ninguém percebeu.
A incredulidade reinava nos corredores do Parlamento nos momentos seguintes à conferência de imprensa. É que o secretário-geral do partido, José Silvano, convocou os jornalistas para deixar claro que a investigação e buscas que estavam a decorrer naquele momento incidia sobre “factos anteriores à eleição deste líder e desta direção”. “Quando assumimos a direção do partido, Rui Rio e eu próprio assumimos publicamente estes princípios: não tínhamos medo de nada de ninguém, o mandato para que fomos eleitos teria como foco principal o combate à corrupção, compadrios e falta de transparência na vida política e nunca colocaríamos quaisquer obstáculos à procura da verdade, doesse a quem doesse”, disse, admitindo no entanto que a chamada Operação Tutti Frutti pode vir a prejudicar a imagem do partido: “É como um saco de batatas: se houver uma batata podre, pode contaminar todas as batatas”.
“Foi uma declaração infeliz, toda a gente ficou nervosa”, disse ao Observador uma fonte do partido, sublinhando que o sentimento generalizado nas hostes foi de não compreender a opção política do presidente e do secretário-geral de “empolar” os podres do partido, por um lado, e de chutar as culpas para trás, por outro. “Ou é inabilidade política ou…”, ouve-se dizer. Ou é tática. É que “há uma tese” a circular numa fileira do PSD que acredita que Rui Rio está a manter propositadamente um clima de guerra entre o partido e a bancada, que é como quem diz, entre os protagonistas atuais e os anteriores, para se “vitimizar” e “começar a criar argumentos” que venham a justificar uma limpeza nos lugares e uma eventual derrota de Rio no período eleitoral que se aproxima. “Está a preparar uma purga”, ouve o Observador de outra fonte parlamentar, que acrescenta que “todos nós, inclusive o próprio Silvano, já fazíamos parte do partido antes desta direção”.
A posição assumida por Silvano a propósito da Operação Tutti Frutti foi só mais um “prego nos nossos pés” — nas palavras de um deputado –, a juntar-se a outros que já tinham começado a ser pregados na semana passada (semana horribilis parte 1). O caso mais falado ainda é o da votação do projeto de lei do CDS sobre a redução dos impostos sobre combustíveis, que levou Rui Rio a dar um raspanete via jornais à sua própria bancada por supostamente ter votado “à revelia” da direção. A ideia era evidenciar que o PSD é um partido responsável que não é favorável a aumentos da despesa do Estado a meio do ano orçamental, e que ao aprovar o projeto de lei do CDS, que visava aumento de despesa, os deputados do PSD estavam a ir contra a posição responsável de Rio. O problema foi que não só Rio se sentiu desautorizado, como a bancada se sentiu ainda mais desautorizada quando viu nos jornais uma fonte da direção a queixar-se da votação. Mas se a semana que passou foi de tal forma dissonante que culminou com um almoço entre Rio e Fernando Negrão, para afinarem o tom, a semana que agora acaba não correu muito melhor.
“Quando as coisas pareciam estar a normalizar, depois de um primeiro período de adaptação, [Rui Rio] vem criar a confusão dos combustíveis, não se percebe”, diz outra fonte, que arrisca dizer que parece que Rui Rio “tem de estar em permanente conflito interno para estar por cima”. “Começou com a substituição do líder parlamentar, logo quando foi eleito, que até lhe correu bem porque passou a ideia de que Hugo Soares estava agarrado ao poder e que Rui Rio estava acima disso, e agora continua com vários exemplos”, acrescenta. A ideia parece ser a de Rio veicular uma imagem de si próprio como alguém que está acima da classe política — sobretudo numa altura em que a Polícia Judiciária e o Ministério Público começaram a entrar de facto nos meandros dos partidos, no âmbito da mega-operação que teve esta quarta-feira o seu episódio mais visível.
Em causa na chamada Operação Tutti Frutti estão suspeitas de que um grupo de antigos militantes da JSD, onde se inclui o deputado Sérgio Azevedo, o amigo e conselheiro nacional Carlos Eduardo Reis, e o presidente da junta da Estrela e deputado municipal Luís Newton, terá criado uma teia de influências no mundo autárquico para canalizar dinheiro que depois seria usado para pagar quotas para eleições e pagar despesas de campanha. Nas juntas de freguesia que controlavam, onde se inclui a Estrela, Santo António e Areeiro, os sociais-democratas simulariam um conjunto de avenças de serviços que depois não eram de facto prestados. Isto aconteceria, por exemplo, na contratação de assessores para gabinetes, que apenas recebiam ordenados sem de facto exercerem nas juntas ou na câmara quaisquer funções. Segundo o Correio da Manhã, Fernando Medina é mesmo suspeito de ter negociado com Sérgio Azevedo a distribuição de boys socialistas por juntas de freguesia laranjas, ao mesmo tempo que os boys sociais-democratas teriam emprego nas juntas ganhas pelo PS.
“Na maior câmara do país, os aparelhos do PSD e do PS combinaram auto-sustentar-se, é uma vergonha”, ouve o Observador de uma fonte social-democrata.
A isto juntam-se as suspeitas, já avançadas pelo Observador há um ano, de ajustes diretos feitos nessas três juntas de freguesia controladas pelo PSD a empresas de militantes do próprio PSD, incluindo à Ambigold Invest, de Carlos Eduardo Reis. Já esta sexta-feira, o Observador também avançou que Sérgio Azevedo terá intermediado uma reunião em 2016 entre Os Belenenses e Fernando Medina que está na origem de um apoio de 200 mil euros por parte da Câmara de Lisboa e que serviu para pagar uma obra também realizada pela Ambigold.
“O PSD não deve tolerar nada disto”
A investigação já terá começado em 2016, tendo agora atingido um pico com as buscas desta quarta-feira a várias autarquias e sedes partidárias. Os casos remontam ao anterior mandato na câmara, mas remetem também para as despesas pagas na campanha eleitoral de outubro do ano passado. Na câmara de Lisboa, o grupo parlamentar do PSD na Assembleia Municipal é suspeito de promover avenças-fantasmas e atribuição de empregos em troca de favores políticos. Ao Observador, José Eduardo Martins, que esteve ao lado de Teresa Leal Coelho como cabeça de lista à Assembleia Municipal de Lisboa, limita-se a dizer que espera que, a serem verdade os casos descritos, o PSD saiba reagir. “Tenho esperança de que não seja verdade, e se for verdade, que o PSD saiba reagir como deve ser, não tolerando nada do que é ali descrito”, diz.
É que, em outubro, José Eduardo Martins afirmou-se vítima de um “golpezito” do aparelho do PSD em Lisboa depois de ter dito que as assessorias passariam a ser feitas por equipas especializadas. Ou seja, seria o fim do esquema montado de jobs for the boys. Nessa altura, contudo, acabou por ser empurrado para fora da direção da bancada social-democrata na Assembleia Municipal. Para o seu lugar foi antes Luís Newton, um dos agora visados na mega-operação judicial, que era deputado municipal por inerência, na qualidade de presidente de uma junta social-democrata, e que manteve dessa forma o esquema de assessorias ligadas ao aparelho. “Não se atraem essas pessoas com jogadas de aparelho. Não se apanham moscas com vinagre. As pessoas veem estes golpes de aparelho e saem horrorizadas no próprio dia”, dizia na altura em entrevista ao Observador, criticando o “golpe” de que tinha sido alvo supostamente para não interromper as “negociatas” que existiam nos meandros do PSD em Lisboa.
José Eduardo Martins. “Não se atraem pessoas para jogadas de aparelho”
No Facebook, José Eduardo Martins também reagiu à polémica conferência de imprensa de José Silvano sobre a operação judicial, afirmando que “o PSD é uma instituição: se houver problema é de todos, se não houver também”. E o mesmo fez António Prôa, também deputado do PSD na Assembleia Municipal de Lisboa: “O património histórico do PSD é parte da sua identidade. Para o bem e para o mal…”, disse, criticando o PSD de Rio por estar a lavar as suas mãos de atos alegadamente praticados durante a vigência da direção anterior.
Certo é que, enquanto as investigações se mantiverem em segredo de justiça e não houver nem arguidos nem julgados, o PSD não vai abrir qualquer averiguação interna. Isso mesmo disse o secretário-geral José Silvano, salientando que o PSD “não é um órgão de investigação criminal” e que os estatutos do partido só preveem sanções a militantes após sentenças transitadas em julgado. Ao Observador, o ex-secretário-geral do PSD no tempo de Passos, José Matos Rosa, afirmou-se concordante com esta postura, mas admitiu que devem ser feitas alterações aos estatutos e aos regulamentos do partido de forma a apertar a malha ao caciquismo.
Rui Rio “acabou de ganhar” o Conselho Nacional
Mas os problemas do PSD não se resumem aos casos de polícia. Na mira de todos está já a preparação para o day after, depois da maratona de eleições de 2019: europeias, regionais da Madeira e legislativas. E a questão que está na cabeça de todos é se Rui Rio se mantém na liderança caso saia derrotado das eleições. Que é como quem diz, se Rui Rio terá nessa altura o controlo do aparelho partidário para se manter à tona.
Eleito num congresso muito conturbado, em fevereiro, Rui Rio não conseguiu maioria no Conselho Nacional (que é uma espécie de parlamento do partido, e órgão máximo entre congressos). Na altura, a lista que se opôs à da direção (na altura consensualizada entre Rio e Santana) foi precisamente a lista encabeçada por Carlos Reis e Sérgio Azevedo, onde também constava o nome de Luís Newton. O que quer dizer que “Rui Rio acabou de ganhar o Conselho Nacional” com a divulgação desta operação judicial, diz uma fonte do partido ao Observador, afirmando que o grupo afeto aos conselheiros nacionais Carlos Reis e Sérgio Azevedo “agora deixam de ter credibilidade para fazer oposição e nem sequer lá devem meter os pés”.
Os cenários para 2019 são muitos, mas todos recordam que Rui Rio, nos últimos discursos que tem feito, aparece frequentemente a baixar as expectativas. No discurso de encerramento das jornadas parlamentares, na Guarda, falou por duas vezes no cenário de “se não ganharmos” as eleições. Um deputado recorda inclusive umas declarações do vice-presidente do PSD David Justino, logo nos dias seguintes à eleição de Rio, onde dizia que o partido tem de começar a estar preparado para “segurar o líder” mesmo que perca eleições. É nesta lógica que encaixa a tese de que Rio está a “ampliar” os podres do PSD para criar argumentos para poder dizer que pode não ser desta que ganha, mas será na próxima, depois de fazer uma limpeza no partido.
A questão está em saber se haverá próxima. A verdade é que Rui Rio está a ganhar terreno nas distritais, como notam várias fontes. O Porto prepara-se para mudar de líder distrital este fim de semana; Santarém já mudou para João Moura, afeto à ala de Rio; em Aveiro mantém-se Salvador Malheiro, vice de Rio; na Guarda manteve-se Carlos Peixoto, também afeto a Rio; Castelo Branco tem eleições em breve e também haverá mudanças, e em Braga, que vai a eleições distritais este fim de semana, o eurodeputado José Manuel Fernando agregou na sua lista André Coelho Lima, que integra a comissão política nacional de Rui Rio. O território começa a ficar pintado a laranja Rio, mas continua a haver outro PSD à espreira — e à espera.