Enviado especial do Observador à Rússia (em Sochi)

A Alemanha, além de campeã mundial em título, foi uma das equipas com mais passes tentados e conseguidos durante a fase de grupos. Resultado? Foi eliminada e acabou atrás da Suécia, do México e da Coreia do Sul. A Espanha, antiga campeã mundial, voltou a ser a equipa com mais posse na primeira ronda. Resultado? Ganhou in extremis o grupo com cinco pontos beneficiando de um golo de Aspas e de um penálti do Irão nos descontos. A Bélgica e a Croácia foram dois dos conjuntos que passaram aos oitavos com menos posse e menor iniciativa, mas existe a clara perceção de que apresentam o futebol mais sólido até ao momento neste Campeonato do Mundo. Conclusão? De que serva ter bola se depois não se tem um objetivo concentro com ela?

Os números revelados este sábado pelo El Mundo resumem da melhor forma o que foi o Mundial até aqui, ao mesmo tempo que projetam o que vai ser a competição a partir deste momento. Tudo pode mudar com um golo, como se percebeu na vitória por 4-3 da França com a Argentina, mas o tempo em que as individualidades resolviam um jogo sozinhas acabou. Mesmo que apareça um Cristiano Ronaldo, um Mbappé, um Suárez ou um Cavani, isso é o resultado de um esforço coletivo e não apenas de um inevitável suspiro a solo. E foi isso que os dois experientes treinadores de Uruguai e Portugal, a dupla mais velha de sempre num jogo a contar para o Campeonato do Mundo, focaram na antevisão de um duelo muito aguardado pelos pontos de contacto.

[Veja os golos de Portugal e do Uruguai em 3D]

Uns diziam que o Uruguai é o Portugal da América do Sul, outros que Portugal é o Uruguai da Europa (apesar da esmagadora diferença de apoio nas bancadas, favorável ao pequeno país sul-americano), numa comparação que faz sentido olhando para a forma como as equipas estruturaram uma ideia para chegar aos seus objetivos. E com Tabárez a recordar mesmo o episódio de um jornalista italiano junto aos balneários em 1954, quando a alviceleste perdeu o seu primeiro jogo de sempre em Campeonatos do Mundo: o defesa Lórant admitiu que lhe tocou o então melhor do mundo, Schiaffino, e que perdeu esse duelo; Schiaffino referiu que isso tinha pouca ou nenhuma importância porque tinha ganho a melhor equipa. Meio século depois, mais ainda neste caso, o futebol evoluiu em tantos sentidos mas na altura das decisões regressa ao seu ponto mais genuíno. E assim se explica que Portugal, naquela que foi a melhor exibição a nível global neste Mundial, tenha perdido e sido eliminado (2-1).

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Fernando Santos abordou o jogo com o Uruguai com duas alterações previsíveis no plano meramente estratégico (Bernardo Silva e Gonçalo Guedes entraram para os lugares de Quaresma e André Silva) mas uma grande surpresa, com a introdução de Ricardo Pereira em vez de Cédric. O selecionador acreditava que os uruguaios iam voltar ao seu 4x4x2 habitual, com Nández e Vecino a jogarem mais vezes por dentro num falso losango do que por fora, e quis lançar o agora lateral do Leicester para dar uma outra desenvoltura ao corredor direito permitindo a Bernardo fazer as habituais diagonais de fora para dentro. Fez sentido. E não se pode dizer que Portugal tenha entrado mal. Pior do que isso, para a sua ambição e para o que daria o jogo, entrou a perder.

Com o encontro a começar bola cá, bola lá, de tal forma que poucos se aperceberam de uma tentativa de invasão do relvado, na zona onde estava Muslera na primeira parte, evitada por uns quantos stewards, o primeiro aviso até foi do suspeito do costume, Cristiano Ronaldo, que aproveitou uma movimentação para dentro de Bernardo Silva, ganhou espaço fora da área e rematou para defesa de Muslera (6′). No entanto, e numa jogada coletiva genial e só ao alcance dos melhores, acabou por ser o Uruguai a passar para a frente: grande receção de Betancur após recuperação, passe em profundidade para Cavani na direita, variação do flanco em Luis Suárez, cruzamento largo da esquerda e cabeceamento ao ângulo do avançado do PSG. Tudo sempre em movimento, com os médios a darem linha de passe e o número 21 a aparecer nas costas para concluir (7′). No dia seguinte a ter escrito um sentido texto no The Players’ Tribune ao pequeno Cavani que tinha o nome de “Pelado” e só tinha paciência para ver na TV o “Tom and Jerry” há 20 anos, concluiu um momento para recordar pelo menos 20 anos.

Depois de 270 minutos a marcar cinco golos de bola parada, o Uruguai conseguiu pela primeira vez visar a baliza com sucesso de bola corrida. Mas depois de 270 minutos sem sofrer qualquer golo (que até são mais, mas aqui falamos apenas do Mundial), seria Portugal a conseguir finalmente quebrar esta muralha defensiva que tem pé de chumbo mas corpo de betão?

Pouco depois, por pouco não se virou o feitiço contra o feiticeiro e acabou essa dúvida: no seguimento de um canto na direita, marcado com combinação até ao cruzamento em arco de Raphael Guerreiro para tirar referências de marcação à defesa contrária, José Fonte subiu mais alto ao segundo poste mas o cabeceamento passou um pouco ao lado (11′). No entanto era um aviso para o que seguiria, não pela capacidade de conseguir visar a baliza contrária mas pela forma de ir tentando montar o cerco. Até ao intervalo é um facto que pertenceu ao Uruguai a melhor oportunidade, com Rui Patrício a fazer uma enorme intervenção após livre direto de Luis Suárez (22′), mas Portugal foi fazendo o que lhe competia em desvantagem. Ou melhor, teve a iniciativa que lhe competia ter para ir outra vez à procura de entrar no jogo perante uma alviceleste que desceu linhas e fechou espaços.

É aqui que entroncamos na pergunta que abria esta crónica: de que vale ter a bola se não se consegue fazer muito com ela? Até ao descanso, a Seleção Nacional não teve resposta para esta dúvida e foi-se perdendo em interrogações num jogo pouco vertical, com falta de profundidade e sem velocidade. Mesmo naqueles espaços ou mais interiores ou mais laterais que ficavam por preencher consoante Nández ou Vecino estivessem mais ou menos perto de Torreira, não houve superioridade nem dinâmica para levar outro tipo de caudal ofensivo às unidades mais atacantes. Assim, Ronaldo andou mais fora do que dentro do jogo, perante um conjunto que teve em Cavani o jogador com maior número de desarmes, comprovando a pressão feita campo inteiro.

Portugal nunca tinha saído a perder ao intervalo num jogo da fase final com Fernando Santos no comando, mas ainda tinha uma palavra a dizer. Ou melhor, um antídoto perfeito — dar a provar ao Uruguai do próprio veneno. E o golo do empate acabou por surgir quando Ricardo Quaresma se preparava para entrar: na sequência de uma bola parada, o canto na esquerda foi marcado de forma rápida, Raphael Guerreiro cruzou para o coração da área e Pepe, sozinho, deu outro pulmão à equipa com o 1-1 (55′). Com Bernardo Silva no meio e João Mário mais à direita, a Seleção Nacional melhorou. E muito. Mas acabou por ser de novo surpreendida com a jogada tipo do Uruguai: bola longa amortecida para Betancur por Luis Suárez após um salto com corte incompleto de Pepe a pontapé longo da defesa contrária, passe em velocidade na esquerda de primeira e remate na passada em arco de Cavani, a não dar hipóteses a Rui Patrício (62′).

Desta vez, Fernando Santos não esperou, tirou Adrien e lançou Quaresma. O técnico percebia que, em desvantagem, o meio-campo mais de combate era secundário perante a necessidade de ter outro critério na zona de construção. O mesmo que não houve, por exemplo, no segundo golo de Cavani a nível de transição defensiva e reação à segunda bola. Se Portugal tinha feito do próprio veneno uruguaio das bolas paradas um antídoto, o Uruguai encontrou no antídoto português das transições rápidas um novo veneno. E o selecionador lançou com André Silva um papel que foi passado a Pepe com a nova fórmula.

Houve oportunidades para o empate. Como uma falhada de forma inesperada por Bernardo Silva, quando não tinha Muslera na baliza nem oposição por perto mas acabou por atirar por cima da trave (70′). Ou como uma bem tentada por Raphael Guerreiro, aproveitando uma segunda bola cortada após canto da direita para rematar de pé esquerdo pouco ao lado (77′). Aliás, desde que Cavani saiu por problema físico e deu lugar a Stuani, nunca mais os sul-americanos voltaram a ter as referências na frente como tiveram até esse momento. Foi quase um convite para Portugal subir linhas e ir para o ataque final nos últimos dez minutos, pouco antes de Ricardo Pereira ter entrado na área, levado um encosto de Godín e caído com alguns protestos.

Manuel Fernandes, acabado de entrar, ainda teve um remate perigoso para defesa de Muslera (85′) antes de abusar da dose e atirar um míssil muito por cima. E Quaresma, no final dos descontos, também teve um lance com algum perigo que o guarda-redes defendeu sem evitar o canto. No entanto, Portugal acabaria mesmo por perder quando já reinava a total anarquia tática. E perdeu de forma inglória naquele que foi o melhor jogo em termos globais. Problema? Reagiu em vez de agir. E se é verdade que igualou ou superou o Uruguai em tudo o resto, perdeu nesse particular, acabando por abandonar de forma inglória um Mundial onde pela primeira vez deu mostras de poder ir um pouco mais além. E veio ao de cima a magia e eficácia de um avançado que às vezes parece viver à sombra de Suárez mas que, tal como em 2010, acaba por ser mais decisivo do que o parceiro. Isso e a inversão de papéis: Portugal feriu com as armas do Uruguai, o Uruguai matou com as armas de Portugal. E ao 18.º jogo em fases finais de grandes competições, mais de quatro anos depois, a Seleção Nacional voltou a ser derrotada.