A prova rainha do Festival de Velocidade de Goodwood é uma rampa que, em condições normais, não teria qualquer interesse. Nem sob o ponto de vista técnico e, muito menos, no de condução, pois a pista é estreita, tem sempre bastante pó e as curvas são apenas nove, nenhuma delas particularmente exigente. A meter algum respeito apenas o muro que surge a meio do lado direito, que já parece estar ali há um bom par de anos (mais centenas) e capaz de suportar sem problemas mesmo o embate do automóvel mais robusto.
Mas para a indústria britânica, dos carros de estrada aos de competição produzidos por equipas inglesas, Goodwood é uma festa a que não podem faltar, pois sempre estão cerca de 200.000 espectadores nos relvados da propriedade desejosos de ver actuar as melhores máquinas do momento.
E não necessariamente apenas com motores a queimar combustíveis fósseis, pois se já existia um recorde entre os veículos eléctricos alimentados por bateria, este ano eram dois os modelos dispostos a lutar entre si para ver quem melhorava de forma mais evidente o tempo de 47 segundos e 34 centésimos, precisamente o recorde para carros eléctricos alcançados pelo Lola-Drayson B1269/EV, com 870 cv. Este modelo pilotado por Johnny Cocker na edição de 2013 de Goodwood, foi inicialmente concebido para disputar provas tipo 24 Horas de Le Mans, mas trocou o V10 Judd original por quatro motores eléctricos, fornecendo um total de 870 cv às rodas traseiras via uma caixa de apenas uma velocidade, que por sua vez eram alimentados por uma bateria de apenas 30 kWh.
Este ano, para bater o recorde dos eléctricos – uma vez que à geral seria complicado, pois o melhor tempo está na posse do McLaren de F1, o MP413, conduzido por Nick Heidfeld, desde 1999 – apresentaram-se na rampa construída na propriedade de Lod March, em Goodwood, dois dos mais rápidos carros eléctricos da actualidade, o Volkswagen I.D. R Pikes Peak, que recentemente bateu o recorde na mítica rampa americana e o Nio EP9, o desportivo pertença de uma startup chinesa, mas concebido e produzido em Inglaterra, com a marca a manter igualmente uma presença na Fórmula E.
O mais curioso é que os dois veículos eléctricos, o alemão e o sino-britânico, não podiam ser mais diferentes entre si, pois se o Volkswagen foi concebido como um veículo de competição, leve e desprovido de qualquer tipo de conforto ou equipamento minimamente relacionado com qualquer tipo de luxo, o EP9 da Nio é um hiperdesportivo de estrada, tão rápido e potente quando luxuoso – até possui condução autónoma –, e que depois de ter sido vendido por 1,2 milhões a unidade a cada um dos seis maiores investidores, vai agora ser vendido ao público, mas sempre em pequenas quantidades.
Também tecnologicamente, o Volkswagen e o Nio não podiam ser mais diferentes. O primeiro é um carro de competição, concebido sem ter de respeitar as normas que limitam quem deseja circular pelas vias públicas, ou seja, com as asas enormes de que necessitam para estar colado ao asfalto a todo o momento. Além disso, uma concepção espartana permite um peso de apenas 1.100 kg, o que a marca germânica achou ser mais que suficiente para bater o recorde em Pikes Peak, com o fabricante alemão, apesar das nossas dúvidas, a provar ter razão. A motorizar o I.D. R Pikes Peak estão dois motores eléctricos, um por eixo, que totalizam 680 cv, alimentados por uma bateria de 43 kWh, o que dá à vontade para ir comprar tabaco num carro de 680 cv e, a fundo, para subir a Pikes Peak (tem só 20 km), sendo mais suficiente para os 1,9 km de Goodwood.
O EP9 é um coupé desportivo. Sucede que possui quatro motores eléctricos, um por cada roda, que fornecem um total de 1.360 cv, ou seja 1 megawatt. Mas isto e o requinte a bordo, bancos, displays, ar condicionado, vidros eléctricos, revestimentos a pele e aparelhagem estéreo, entre muitos outros miminhos, atiram o peso para 1.735 kg. Destes, 635 kg são relativos às baterias, com uma capacidade de 90 kWh, de um sistema eléctrico a 777V, o que lhe assegura uma autonomia de 424 km em NEDC. De recordar que conduzido por Peter Drumbreck, o EP9 bateu o recorde de Nürburgring para carros de série – para veículos eléctricos por tabela, ao fazer uma volta em 6.45,90. E o mais curioso é que Drumbreck afirmou depois que a potência tinha sido reduzida de 1.360 para apenas cerca de 900 cv, uma vez que seria suficiente para conquistar o recorde e não comprometer a fiabilidade do carro.
Os dois monstros eléctricos foram, respectivamente, o penúltimo e último dos veículos em prova, com o Nio a ser o primeiro dos dois a subir. Pilotado por Peter Drumbreck, estabeleceu o tempo de 44,32 segundos, o que não era o seu melhor tempo, o que se compreende pois saiu tão largo na primeira curva que meteu duas rodas na relva, o que o impedir de acelerar tão cedo quanto gostaria para a recta seguinte.
Depois do EP9, veio o Volkswagen. Após a exibição em Pikes Peak e face à diferente filosofia do carro alemão e do inglês, a vitória do I.D. R pilotado por Romain Dumas parecia mais do que garantida. Logo na partida, o Volkswagen foi o mais rápido 0,52 segundos do que o Nio até aos 100 metros, o que se compreende por ter um peso de 1.735 kg face aos menos de 1.100 kg anunciados pelos alemães.
No primeiro parcial, umas centenas de metros mais à frente, o Volkswagen já liderava com 0,99 segundos de avanço, mas esta vantagem não tranquilizava os germânicos, pois todos tinham visto que o EP9 saiu muito largo na primeira curva e foi penalizado no primeiro sector da rampa. Teoria que foi comprovada no segundo sector, com o parcial a descer a vantagem do I.D. R para apenas 0,83 segundos, tendência que se manteve até final, onde o Volkswagen fez apenas melhor do que o Nio 0,46 segundos. Isto significa que sem a “argolada” da primeira curva, o EP9 foi mais rápido a subir a rampa inglesa, mesmo depois de ter perdido ligeiramente mais do que meio segundo no arranque, limitado pelo peso superior, fruto de transportar a bordo baterias para 424 km, ao contrário do rival alemão.
Mas nada disto retira valor ao I.D. R Pikes Peak, conduzido por Romain Dumas, que já conta com dois recordes no seu palmarés, e ambos em rampas, com o alcançado na prova americana a ser incomparavelmente mais “saboroso” para a marca alemã, até porque em causa está a tentativa de recuperar a confiança do mercado do lado de lá do Atlântico.
Goodwood serviria ainda para um confronto entre o Volkswagen eléctrico e o Peugeot 208 T16 Pikes Peak, que levou uma “tareia” de 16,730 segundos, o que não anda longe de 1 segundo por quilómetro (0,836s para sermos exactos). E como o Peugeot pilotado por Loeb percorreu a rampa de Goodwood em 44,60s, seria expectável que o Volkswagen retirasse 1,6 segundos, ainda que aqui o factor altitude não existisse e o tipo de pista se aproximasse mais a um troço de rali do que a uma pista de circuito, ambas a não favorecer o I.D. R Pikes Peak.
O Nio, pelo seu lado, fica como o mais rápido dos carros de série, o mais rápidos dos eléctricos de série e só falha o recorde dos carros alimentados por bateria por menos de 0,5 segundos.