Mesmo antes de ela abrir a goela, é fácil gostar de Feist. Afinal, trata-se de alguém que, na juventude, abriu um concerto para os Ramones, após o que lambeu bicicletas em telediscos da conterrânea Peaches, fez parte dos muito recomendáveis e urgentes Broken Social Scene, cantou para a Unicef e até participou num episódio da Rua Sésamo com o hino “1234”, o mesmo com que encerrou o concerto desta noite no Coliseu de Lisboa. Garota adorável, portanto, e os amplificadores ainda nem sequer estão ligados.
Depois de uma ausência de alguns anos, mais ou menos coincidente com o tempo de pousio em termos de álbuns lançados, eis a cantautora (à falta de expressão melhor) de regresso ao nosso convívio. Na melhor tradição das tournées onde impera a argúcia, trouxe um repertório que bebe de todos os discos. E a sala, com uma escala que tanto convida ao decibel como ao intimismo, estava pronta a recebê-la com deleite, apesar da plateia forrada de cadeiras. É certo que uma boa fatia da audiência terá nascido nos longínquos anos 70 – sim, o vigor de pernas não é o mesmo e já vamos querendo distância dos mosh pits da vida –, mas diria que o rock dispensa tanto conforto e imobilidade.
Seja como for, o público foi tomado de assalto no primeiro segundo do concerto graças a uma espécie de tradutor automático, um google translator portátil, um paralelepípedo portátil, vá, que emitia frases em português do Brasil com forte índole de artificialidade. Uma espécie de Bolsonaro dos avisos sonoros, digamos. Porém, o aparelho cumpriu o papel de oferecer uma explicação detalhada para a rouquidão de Feist “peguei um resfriado em Paris”, e de cativar os espectadores apanhados desprevenidos. “Muito insegura com voz”, sublinhou o paralelipípedo que ia fazendo as vezes da artista principal, ao mesmo tempo que garimpava empatia. “Se você abrir os corações para mim e lembrar a última vez que esteve doente…”. Todos nos lembrámos de alguma maleita que nos há-de ter feito estremecer perante deveres profissionais. A partir daí, estavam criados os laços que haveriam de apertar-se até final. O paralelipípedo, esse, podia tomar o caminho do caixote do lixo da história. E a voz Feist cumpriu com galhardia.
Tour de France das canções
O concerto abriu com “Pleasure”, canção que dá nome ao último álbum da cantora. Ouvimos a guitarra com músculo, acompanhada de banda irrepreensível composta por baixo (que a espaços se tornou clarinete ou teclado), violino (que a espaços se tornou guitarra), teclas (que a espaços se tornaram bateria auxiliar) e bateria, que se manteve fiel a si própria, manobrada por homem que a espaços me fez lembrar Chad Channing, o primeiro baterista dos Nirvana. Cabelo longo, postura encurvada, batida entre o contido e o sôfrego.
Depois de garantir que “We know enough to admit”, Feist partiu de barraquinha em barraquinha, de disco em disco; tirou dois coelhos da cartola de Metals e invectivou as massas, regressou a Pleasure pela mão de “Get not high, get not low”, durante a qual partiu do tom cândido e seguiu até ao arranca-rabo com a guitarra, após o que se entreteteu a desmontar as ganas nota a nota, foco a foco, até à escuridão e aos aplausos rendidos; e voltou a carregar nas tintas do álbum mais recente com “The Wind”, espécie de canção-postal ilustrado do seu Canadá natal. E nós sabemos que o Canadá tem muitos motivos de orgulho paisagístico: dos lagos de Manitoba às florestas carregados de ursos, passando por uma dúzia de canções dos Arcade Fire, é caso para dizer que estes americanos do Bem fornecem inspiração para dar e vender. Os americanos do Mal, a sul da fronteira, também, mas o sistema de saúde dos canadianos é melhor. Só não puderam valer a Feist porque ela ficou mal da garganta em Bruxelas. Foi o paralelepípedo que o revelou.
“Any party” foi dedicada aos amores deste Verão que ainda não terminou, e incluiu riffs de guitarra, exuberâncias de violino e uma série de à-partes de Feist, improvisados e dirigidos ao público entre versos, revelando um talento para o humor musicado ao nível de uns Flight of the Conchords (e se a Nova Zelândia também tem bonitas paisagens). A quarta parede, que nunca chegou a existir, reduzia-se a pó aos nossos pés, que se esquivavam a dançar à conta das malfadadas cadeiras.
Houve canções dedicadas ao processo de envelhecimento, ao vinho verde – “Anti Pioneer” terá lá ficado a marinar e por isso não fez parte do alinhamento de Let it die – e a Mocky, principal parceiro de composição de Feist, que agora até já vive em Lisboa. Pela voz de Feist ficámos a saber que “A man is not his song” (quer dizer, há dias em que somos pouco mais que três acordes dos já referidos Ramones), que ela sabe baladar em modo confessional – belíssima “I wish I didn’t miss you”, com as teclas a ampararem a resolução do drama – e que James Blake, aqui há atrasado, escolheu uma belíssima canção da canadiana para brilhar. Anos depois, Feist resgatou-lhe “Limit to your love”, do seu álbum Reminder, e devolveu-a ao público em tons de azul e púrpura, libertando-a da secura sincopada que o britânico lhe imprimiu no seu álbum de estreia. Deste momento em diante, entrámos em modo exultação.
Missa cantada
Foram três canções de rajada que acabaram por arrancar o público das cadeiras, contaminando corpos com dança, catarse e risos. Muitos risos. “I feel it all” deu o mote para a espiral de gozo, entre palmas, cantorias laterais, pulos ao som de mais um coração partido (a ironia) e gente em passo de corrida pelo corredor central; “Sealion”, roubada com garbo a Nina Simone, pôs a sala em modo templo gospel, tomada pelas luzes vermelhas da danação e por Feist numa agitação de palmas e incentivo ao êxtase; e “My moon my man” impediu o público de retomar os seus lugares, tal a descarga marcial em tons de rock.
Depois dos três círculos do Hades, regressou a calmaria com “Let it die”, toda ela contenção de luz, teclados bolbosos e, aqui e ali uns ademanes, de voz. Estava pavimentado o caminho para a apresentação da banda e para o abandono de palco, entre chistes, piscadelas de olho a Sintra e aos pastéis de nata e agradecimentos em português.
Encore, claro
As mais de duas horas de concerto seriam completadas por um quarteto de baladas interpretadas a solo, durante as quais Feist falou abundantemente de Mocky e de Chilly Gonzalez, cúmplices de composição, e ainda pela emblemática 1234, cuja popularidade não se deve apenas ao anúncio do iPod Nano; deve-se sim à interpretação que a cantora ofereceu à Rua Sésamo. Pelo menos é nisso que a minha alma e carácter de jardim-infantil gostam de acreditar.
Também foi dessa forma que se pôs o ponto final do concerto. A assistência dividida em diferentes coros e a mestre de cerimónias a mandar-nos ir cantar para a rua, enquanto ela própria abandonava o palco em busca de uma tequilla ou similar. Voz estragada oblige e merece, sobretudo depois de se deixar o povo de papo cheio e à espera de novo encontro. We don’t need to say goodbye. Palavras dela.