Não se deixem enganar pelas zebras em miniatura, as renas levadas ao colo, pontes feitas com lianas, os carros que voam ou as gigantescas árvores que entram sem licença pelas janelas das casas. A cidade desenhada por Luís Louro neste seu último livro não pode ser outra que não Lisboa e estão lá todos os outros sinais que a identificam: a traça típica dos prédios em bairros mais antigos, o popular autocarro 30 para a Picheleira, os elétricos amarelos e até um Fernando Pessoa que aparece distraído pelas ruas. Esta Lisboa surreal e futurista, desenhada com traços vintage, é a cidade a que Luís Louro regressa, a solo, depois de alguns anos ausente da banda desenhada, e a cidade que serve de cenário à trama de Watchers, o livro lançado na última semana e que o criador apresenta este fim-de-semana no festival de BD da Amadora.

A história do novo livro conta-se em duas ou três penadas. Sentinel é um jovem utilizador da plataforma online People Watching que domina com mestria todos os gadgets e pequenas tecnologias com que, no dia-a-dia, vai vigiando e registando os episódios que ocorrem à sua volta. Torna-se então um Watcher muito peculiar, que ganha um especial interesse em seguir atividades criminosas e com isso se destaca, mas que acaba enredado numa vaga de crimes, envolvido em perseguições policiais e se torna numa personagem que uns idolataram e outros querem eliminar.

Uma versão a fazer lembrar o filme Nightcrawler (2014), de Dan Gilroy, em que Jake Gyllenhaal faz o papel de um jovem desempregado que começa a filmar cenas de crime e atividades policiais para vender a pequenas estações de televisão e que, a certa altura, está tão empenhado nesse trabalho que acaba por se enredar no próprio crime só para conseguir as melhores imagens e vendê-las ao melhor preço. Sentinel, que vive em casa da mãe, faz tudo pelas visualizações dos seus seguidores na internet. “O meu nome é Sentinel. Sou um Watcher. Esta é a minha cidade e eu sou o rei das visualizações.” As apresentações estão feitas.

Apesar da nova história e da nova personagem, Luís Louro regressa com um traço familiar e a que já nos habituou em obras anteriores como Alice na Cidade das Maravilhas, Coração de Papel ou O Corvo. É a mesma Lisboa das personagens caricatas misturadas com alguns estereótipos, das correrias de adolescentes pela calçada, da prostituição nas vielas obscuras mas à vista de todos, dos vizinhos curiosos, da pedofilia escondida nas figuras mais insuspeitas, das mulheres roliças, dos estrangeiros que passam e dos que ficam.  Os desenhos em Watchers fervilham de pormenores e de cor, as personagens brilham pela riqueza dos detalhes e pelo exagero de alguns traços, como numa caricatura, e há uma ponta de ironia e bom humor (e algumas surpresas) a cada virar de página — sendo que a maior surpresa é mesmo o facto de Watchers não ser um livro, mas dois: Louro conta a mesma história, mas dá-lhe dois finais diferentes, que se diferenciam pela cor (branca ou vermelha) do título de capa, algo inédito no universo da banda desenhada portuguesa (descanse: não vamos ser spoilers e revelar o que acontece no final da história).

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“Watchers” [versão ‘vermelha’ e ‘branca’, com finais de história diferentes], de Luís Louro, editora Asa, 48 páginas (preço: 14,95€).

A esta Lisboa já conhecida, Louro juntou-lhe notas futuristas, quase surreais, como os animais selvagens em miniatura, de rinocerontes e hipopótamos a ursos polares e  gorilas, que se passeiam pelas ruas presos por coleiras ou aos colos dos seus donos, dos carros voadores que nunca se veem estacionados no chão, dos drones que se misturam com os pombos, ou dos elétricos amarelos que fazem as suas carreiras pelo ar (a lembrar uma outra Lisboa, já contada por Nuno Artur Silva e António Jorge Gonçalves nos três livros de BD sobre a personagem Filipe Seems, em que os elétricos sobrevoam a cidade como teleféricos e as ruas da baixa pombalina enchem-se de água como os canais de Veneza).

Quem é Luís Louro

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Luís Louro nasceu em Lisboa, em 1965, e é apaixonado por banda desenhada desde muito cedo. Criou sua primeira BD com o argumentista António José (Tozé) Simões, em 1980, mantendo-se essa pareceria, sob o nome Louro & Simões, por mais de dez anos. Juntos produziram um grande número de histórias de aventuras, com especial destaque para a série Jim Del Monaco, que se tornou mítica, com sete álbuns publicados entre 1986 e 1993. Em 1989, ainda em parceria com Tozé Simões, iniciou uma nova série, Roques & Folque, da qual saíram três álbuns publicados entre 1989 e 1992. A partir de 1993, a solo ou em colaborações pontuais, lançou a série O Corvo (1994), Alice na Cidade das Maravilhas (1995), Coração de Papel (1997), O Halo Casto, (2000), Cogito Ergo Sum (2001) e Éden (2002). Tem desenvolvido atividade nas áreas da ilustração e da fotografia. “Luís Louro – Contrastes”, que esteve patente no Centro Nacional de Banda Desenhada e Imagem, foi a maior retrospetiva sobre a sua vasta obra.

 

Sentinel é a personagem central desta trama contada à luz das novas tecnologias e da febre das redes sociais, é uma história sobre a ânsia de ver, ser visto e dar a ver, mesmo que isso implique atropelos da liberdade ou da consciência. O livro é, por isso, também uma forma de retratar e alertar para os riscos desta nova sociedade. O jovem Watcher que até poderia ter começado a sua aventura com ambições de justiceiro, que usa os recursos tecnológicos de que dispõe para denunciar abusos, opressões e hipocrisias, torna-se refém do seu próprio voyeurismo e viciado pelos números de visualizações, até mesmo quando o sangue de um seus amigos acaba a salpicar o drone com que filmou a sua morte. É uma espécie de herói acidental, como era o protagonista do Corvo: o carteiro Vicente, morador em Alfama, que se transfigurava no herói Corvo para tentar salvar os outros dos seus problemas e encruzilhadas. Sentinel procura-o, mas também não é certo que o encontre — mesmo com dois finais de história à escolha.

Excerto de “Watchers”