Ryley Walker acha que é ridículo um músico gostar dos álbuns que faz. “Que tipo de psicopata gosta da sua própria música? Quão frito tem de estar o teu pastel de jalapeños [pimento mexicano] para gostares dos teus próprios discos?” — foi assim que formulou a ideia há uns meses, em entrevista à revista Vice. Gostar de gravar música? Tudo bem. Gostar de a ouvir? Ora aí está uma anomalia humana que este rapaz do Illinois, que esta quinta-feira atua em Lisboa (22h, Galeria Zé dos Bois, no Bairro Alto), não concebe.
O desapego de Ryley Walker é maior com os seus primeiros discos. Dizia-o, pelo menos, nessa entrevista. Do primeiro, All Kinds of You, de 2014, nem se lembrava o nome. “Esse e o Primrose Green [o segundo, de 2015] são álbuns terríveis. Ouvindo esses dois, percebes que sou só eu a pensar que podia cantar e ser como a porra de um trovador”.
Não custa perceber que All Kinds of You seja um disco que Ryley Walker não queira recordar sequer o nome. É o álbum de um músico que se percebe que sabe tocar guitarra, gravado naquele estilo fingerpicking, sem palheta, em que parece que as notas na guitarra se sucedem, com referências bastante evidentes (John Fahey, Jack Rose e demais seguidores dessa bela trupe). É também um álbum em que a qualidade do som não é excecional, em que os momentos cantados são tímidos e por isso pouco seguros. Serviu apenas para apresentar Ryley Walker a alguns fãs norte-americanos da música feita com guitarras.
Se a qualidade do som e a confiança no canto melhoraram no álbum seguinte, então o problema de Ryley Walker com o primeiro disco não é (tanto ou pelo menos apenas) o grau de amadorismo da estreia. Isso são ossos do ofício, idiossincrasias de primeiro disco de músico indie. O problema dele é que soava como “a porra de um trovador”.
Para algum público e para parte da crítica musical, isso não era um problema assim tão grande. Melhor dizendo, talvez alguns ouvintes não fossem tão exigentes (exceção feita, talvez, à revista Pitchfork). Ou talvez simplesmente não se importassem que ele cantasse sobre montanhas, vales, rios antigos, refúgios da natureza, paisagens arcaicas, que ele tocasse e cantasse como se fosse uma mistura entre um John Martyn, um Van Morrison, um Nick Drake, um John Renbourn e um Jack Rose.
Faltava uma coisa: identidade. Não é que as canções fossem más, eram canções de um tipo que sabia tocar bem guitarra, cantar razoavelmente e que tinha bom gosto na mistura de folk com blues, condimentada com um toque jazzístico. Canções como “Summer Dress”, a calma “On the Banks of the Old Kishwaukee” e a que dava título a esse segundo disco, “Primrose Green” (o título era o nome de um cocktail que o músico bebia, composto por whiskey e ‘morning glory seeds’, sementes que provocam um efeito alucinógeneo semelhante ao do LSD). Simplesmente não eram canções de um rapaz que vivia e gostava de viver em Chicago em 2015, cidade com mais de dois milhões e meio de habitantes. Não eram canções de um tipo que tinha ansiedades quotidianas e urbanas e queria expressá-las na música. Ryley Walker tocava e cantava como se vivesse num acampamento hippie na Inglaterra do final dos anos 1960 ou início dos anos 1970.
Golden Sings That Have Been Sung, o terceiro álbum de estúdio e de originais a solo (excluem-se aqui discos gravados em dupla, com outros guitarristas como Daniel Bachman e Bill MacKay), foi uma espécie de álbum de transição. Ouvia-se já nele uma tentativa de fuga ao cânone dos anos 1960 e 1970 e à pose de poeta maldito de tempos remotos. Ouvia-se já a experimentação com músicos de jazz improvisado e de outros registos mais difíceis de classificar, oriundos de Chicago, cidade propícia à união de estilos de música e procura de novas sonoridades. Exemplos de quem procurou essas misturas entre géneros musicais? The Sea and Cake, os Tortoise de Jeff Parker, Isotope 217 (de quem Ryley Walker foi fã incondicional), Jim O’Rourke, até mesmo os Wilco mais subtilmente, quando aqui e ali introduziam sons esquisitos no seu country-rock melancólico (em “I’m the man who loves you” ou nos inícios de “Poor Places” e “Reservations”, por exemplo).
A fuga às influências sentia-se um pouco por todo esse terceiro disco mas especialmente em canções como “The Roundabout” (onde usava mais o humor e cantava sobre não ter crédito para pagar mais uma bebida, pelo que o melhor era rir-se com os amigos e pedir água da torneira) e “The Hawfit in Me”. Já não se tratava de canções em que se ouvissem claramente ecos das referências do blues e sobretudo do folk-jazz a que a revista Pitchfork aludiu, quanto publicou a sua crítica ao álbum anterior, Primrose Green. Referências que Ryley Walker admitiu sem pruridos num tweet de reação a essa crítica, em que escrevia (citamos de memória) que provavelmente era culpa sua, por exibi-las tatuadas (metafórica ou literalmente?) nos braços. Não era ainda um disco totalmente inspirado ou um disco que retratasse o músico. Mas era uma aproximação.
Um whiskey e duas guitarras: Ryley Walker é um amigo para a vida
“É o som de Chicago, que oiço a toda a hora”
Deafman Glance, o álbum que Ryley Walker vai agora apresentar ao vivo em Lisboa, é o primeiro álbum que o músico sente que o retrata verdadeiramente. Num longo texto incluído na sua página oficial na plataforma Bandcamp, retirado de uma conversa com a jornalista do The Guardian Laura Barton, Ryley Walker refere que o disco é uma tentativa de fazer “um álbum anti-folk” e que “demorou um ano a gravar”, tempo inusitado para um músico que por norma grava rapidamente, em poucos dias. Diz mais: que não se ouvem grandes influências musicais porque o ano anterior foi aquele em que “provavelmente ouvi [ouviu] menos música na minha [sua] vida adulta” e que Deafman Glance é um álbum que “soa mais a Chicago”.
“Chicago soa a um comboio constantemente a avançar em direção a ti sem nunca chegar. É esse som que oiço a toda a hora, a tocar como uma campainha nos meus ouvidos. Toda a gente aqui está sempre em movimento. Toda a gente que fala contigo na rua tem alguma coisa para te mostrar. É o som de estranhos a esquivarem-se uns aos outros, de proprietários a baterem à porta das pessoas para cobrar o dinheiro que elas não têm para a renda. Mas [a cidade] é assustadoramente sossegada à noite. Este álbum soa a regressar a casa a pé a uma hora tardia da noite, pelo meio de Chicago, durante o inverno, meio assustado e com medo que alguém te dê um soco na nuca, meio no estado mais tranquilo em que se consegue estar nesse dia, a apreciar o silêncio e o vento fraco e os autocarros nas suas rotas noturnas. Esse é o som a sintonizar. Esse é o som de Chicago para mim.”
(Ryley Walker, 2018)
O processo de gravar Deafman Glance foi tortuoso — o músico goza com isso, lembrando o cliché do “artista atormentado”, mas admite-o. As primeiras sessões não foram produtivas: Ryley Walker aparecia em estúdio ressacado, sem vontade de tocar e gravar, depois de se debater com um vício de álcool e drogas que motivou a procura de um terapeuta e o receio de não conseguir gravar o disco. “Passar tanto tempo na estrada andava a matar-me. Fui longe demais e tive vícios horríveis de álcool e drogas, o que foi culpa minha — não das digressões. O meu cérebro simplesmente tinha enlouquecido”, confidenciou, em entrevista à Vice.
Recompôs-se durante as gravações. Ficou sóbrio, “largou as drogas e a bebida”. Não se tornou propriamente abstémio mas começou a controlar-se, por “estar farto de ser um animal nas festas”, por “não querer continuar a ser o Ryley dos 19 gins tónicos”, porque “tentar fazer um disco enquanto se bebe é como uma tortura”, explicou ele ao The Guardian. “Foi um bom período de desaceleração” e isso sente-se no disco, como se sente que Ryley Walker debateu-se com “uma depressão paralisante”, como também confidenciou.
Enquanto se escuta Deafman Glance, ouvem-se sons estranhos, instrumentos vários (sintetizadores espaciais, piano, guitarras variadas — elétricas e acústicas –, baixo e contrabaixo elétricos, bateria e outras percussões, “muita flauta e um pouco de saxofone”), arranjos inusitados. Tudo isto toca-se muitas vezes com calma, testando pequenas variações de andamentos, só ocasionalmente com ruturas e acelerações dissonantes (quase a meio de “Acommodations”, quase no final de “Telluride Speed”). Não é um disco de singles, embora tenha ótimas canções, como a inicial “Castle Dome”, a final “Spoil with the Rest” e a sétima faixa “Expired”, que se torna fabulosa quando Ryley Walker começa a cantar “Fear half tones of the night / cheer in categories / I was going on pure hate”.
O tom elétrico do disco, distante da música ancorada na guitarra acústica em que Ryley Walker se notabilizou, explicará porventura a sua perceção de que o disco “soa a Chicago” e a uma caminhada noturna de regresso a casa, com a cidade sossegada e com pequenas variações e picos de intensidade: o som dos autocarros, o encontro raro de transeuntes, o receio de um possível assalto ou uma possível agressão, numa cidade que tem também índices elevados de violência. É um disco “de subidas ou descidas” (pequenas, acrescentamos), como chegou a explicar Ryley Walker, não monótono, não estável, não de músicos com a guitarra acústica reunidos à volta de uma fogueira num acampamento na floresta.
Apaixonei-me profundamente por Chicago durante o ano passado. Percebi que não posso não estar numa cidade. Gosto da natureza, gosto de conduzir pelo meio da natureza, mas se me colocarem num acampamento durante mais de dois dias passo-me. Preciso de ouvir pela janela pessoas a tentar comprar crack, preciso de poder comprar um taco [wrap mexicano] às 2h, preciso de ouvir os vizinhos a gritarem alto como o raio uns com os outros a meio da noite. Preciso de pessoas. Preciso mesmo de pessoas, porra. Diria que este é um disco que não é para ser ouvido a meio do dia, é para ser ouvido no início ou no final de um dia”, explicou Ryley Walker.
Porque é um disco que não estava habituado a fazer, com muitos músicos, muitos instrumentos tocados, fazer tudo funcionar foi especialmente difícil para Ryley Walker. Editar o som, fazer daquela amálgama de sessões canções relativamente concisas exigiu tempo porque “cada canção soava diferente”, as pessoas debatiam-se e enfrentavam-se em estúdio, tocavam sessões atrás de sessões sem encontrar um fio comum. Até que o músico de Chicago e o antigo membro dos Wilco LeRoy Bach, ambos responsáveis pela produção, ouviram as canções de uma ponta à outra no verão passado e começaram a notar algo de comum a todas. Algo difícil de explicar por palavras, mais fácil de definir com sons.
Parte do “clique” deveu-se a Nate Lepine e ao som da sua flauta, que deu “uma boa vibração pastoral” e uma unicidade às canções, espécie de ponte entre o ruído da cidade e a bucolia do campo. Quando o ouviu na carrinha de digressão, Ryley Walker virou-se para os músicos que o acompanhavam e disse-lhes: “Rapazes, temos um disco”. Um disco misturado por alguém que trabalhou com bandas tão divergentes dos cânones quanto os Bitchin’ Bajas e os Cave, onde Walker não canta “felizmente” sobre “uma montanha estúpida ou árvores”, como acontecia nos anteriores, mas sobre ansiedades quotidianas, pensamentos surrealistas, bilhetes de autocarros, receio de tocar um encore e acabar um concerto sem aplausos.
Os músicos que acompanharam Ryley Walker no disco, e a forma como experimentam e improvisam procurando um som novo, “influenciou mais este disco do que um conjunto de canções do Bob Dylan ou do Neil Young”, disse Ryley Walker recentemente, em entrevista ao site musical Aquarium Drunkard. É bem possível que tenha sido esse o truque que tornou este um dos melhores álbuns do ano, um álbum que não soa ostensivamente a nada que tenha sido feito no passado ou que esteja a ser feito no presente, relativamente curto e com nove canções que permitem que o ritmo seja fluído, que ele próprio propicie aos ouvintes uma viagem mental.
No concerto desta quinta-feira em Lisboa, o guitarrista Brian Sulpizio, o baixista Andrew Scott Young e o baterista Quinlan Kirchne estarão com Ryley Walker em palco. É difícil imaginar como se consegue tocar este disco com apenas quatro músicos. Talvez se oiçam também uns pozinhos do álbum de recriação das Lilywhite Sessions da Dave Matthew’s Band que Ryley Walker editou na passada sexta-feira. Dele, nunca se sabe o que esperar, ainda mais agora que é Ryley Walker e não tenta imitar ninguém.
“No passado, (…) inventaria esta personagem romântica influenciada pelo Nick Drake. Não era bom. Mas finalmente decidi: que se fo** isso. Posso escrever simplesmente sobre a minha realidade. A minha realidade é a única que tenho. Há muitas coisas divertidas, muitas coisas tristes [no disco]. É a isso que me posso agarrar. Acho que tem a ver com estar-me mais a marimbar, importar-me menos com o exterior, sabes?”
(Ryley Walker, 2018)