A polémica partiu de um artigo do Observador publicado no último domingo, onde o bispo do Porto, D. Manuel Linda, aparecia referido como negando a virgindade de Maria e afirmando a conceção natural de Jesus, com Maria e José sendo ambos seus pais biológicos. Numa versão atualizada do texto, essa referência aparece já corretamente associada apenas ao padre Anselmo Borges, também ouvido para a elaboração do artigo, pedindo o Observador desculpas pelo equívoco.
Num novo contacto com o Observador após a polémica, o bispo do Porto mostrou-se “triste com a interpretação” do seu pensamento relativamente à virgindade de Maria, um dos dogmas centrais da fé católica, e disse acreditar na “virgindade física e plena” da mãe de Jesus Cristo.
Também a frase “nunca devemos referir a virgindade física da Virgem Maria”, atribuída ao bispo do Porto, está incompleta no artigo. Esta quarta-feira, D. Manuel Linda esclareceu que pretendeu sublinhar que a virgindade de Maria não tem apenas uma dimensão física — embora essa não possa ser excluída —, mas também um aspeto teológico.
“O que eu quis dizer é que, além deste dado meramente biológico, esta menina, Maria, é uma mulher toda dada a Deus, que põe o seu olhar, a sua existência, em Deus. É aquela que em aspeto nenhum é manchada por algo de mais impuro”, explicou D. Manuel Linda. “Por isso, a virgindade não é só física, mas ninguém exclui a virgindade física“, acrescentou.
No que toca à conceção de Jesus Cristo, o bispo, que se diz um devoto de Maria desde criança, explica que acredita naquilo que a doutrina da Igreja sempre ensinou: na conceção “por obra e graça do Espírito Santo”. Ou seja, sem que tenha havido relações sexuais entre Maria e José.
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O que diz a Igreja Católica sobre a virgindade de Maria?
A virgindade perpétua de Maria é um dos quatro dogmas que a Igreja Católica proclamou sobre a mãe de Jesus — a par da maternidade divina (Maria é mãe de Deus), da Imaculada Conceição e da Assunção.
Os dogmas são verdades da fé da Igreja que são considerados imutáveis e infalíveis pelos crentes, assumindo-se como pilares inquestionáveis da fé católica. É à volta dos dogmas — muito especialmente do dogma da virgindade perpétua — que gira grande parte da devoção que os católicos têm por Maria.
Segundo explica ao Observador o próprio bispo do Porto, D. Manuel Linda, a virgindade de Maria vem referida na Bíblia muito antes da sua própria existência. Já no livro do profeta Isaías, no Antigo Testamento, um dos anúncios da chegada de Jesus Cristo dizia: “Por isso, o Senhor, por sua conta e risco, vos dará um sinal. Olhai: a jovem está grávida e vai dar à luz um filho, e há-de pôr-lhe o nome de Emanuel”.
Esta passagem bíblica seria mais tarde interpretada pelos evangelistas, primeiros cronistas da vida de Jesus Cristo. Quando São Mateus descreve o episódio em que o anjo Gabriel anuncia a Maria que irá engravidar, diz: “Tudo isto aconteceu para se cumprir o que o Senhor tinha dito pelo profeta: Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho; e hão-de chamá-lo Emanuel, que quer dizer: Deus connosco”.
Estas passagens da Bíblia sempre fizeram os cristãos acreditar na virgindade de Maria. “No ano 649, o sínodo de Latrão definiu Nossa Senhora como sempre virgem”, explica D. Manuel Linda, acrescentando que, “embora a partir daí haja essa definição, ela não acrescentou nada de novo porque a Igreja sempre acreditou nisto a partir do texto de Isaías”.
O Catecismo da Igreja Católica, documento em que está sistematizada toda a fé da Igreja Católica, explica, no número 496, que, “desde as primeiras formulações da fé, a Igreja confessou que Jesus foi concebido unicamente pelo poder do Espírito Santo no seio da Virgem Maria, afirmando igualmente o aspeto corporal deste acontecimento“.
O texto ainda hoje válido para a doutrina católica é o do sínodo de Latrão, que afirma que Jesus Cristo foi concebido “absque semine“, isto é, “sem sémen” e pelo Espírito Santo.
“O aprofundamento da fé na maternidade virginal levou a Igreja a confessar a virgindade real e perpétua de Maria, mesmo no parto do Filho de Deus feito homem. Com efeito, o nascimento de Cristo ‘não diminuiu, antes consagrou a integridade virginal’ da sua mãe”, lê-se no Catecismo da Igreja Católica.
Mais recentemente, a constituição dogmática Lumen Gentium (1964), um dos documentos centrais do Concílio Vaticano II, descreve Maria como “modelo eminente e único de virgem e de mãe”, porque, “acreditando e obedecendo, gerou na terra, sem ter conhecido varão, por obra e graça do Espírito Santo, o Filho do eterno Pai”.
O pensamento da Igreja Católica sobre este assunto tem vindo a ser desenvolvido pelos teólogos ao longo das últimas décadas. Joseph Ratzinger, que viria a ser o Papa Bento XVI em 2005, escreveu em 1968, numa das suas obras mais conhecidas, Introdução ao Cristianismo, que “a fé cristã implica crer que Deus não é prisioneiro da sua eternidade, como se estivesse limitado apenas ao âmbito espiritual, mas pode agir aqui e agora no meu mundo; mais: Ele agiu em Jesus, o novo Adão, que nasceu da Virgem Maria pelo poder criador de Deus, cujo Espírito pairava no princípio sobre as águas e criou o ser a partir do nada”.
Ou seja, segundo explica Bento XVI, a posição da Igreja Católica é a de que Deus pode agir no mundo material em certos momentos e foi isso que aconteceu com a conceção de Jesus Cristo, que ocorreu de modo milagroso sem a existência de relações sexuais.
No entender da Igreja Católica, porém, a ideia da virgindade perpétua de Maria vai além da dimensão física e da ausência de relações sexuais para a conceção de Cristo. É também, como explicou D. Manuel Linda ao Observador, “a devoção plena dessa mulher a Deus”.
Porque é que esta discussão foi tão acesa?
O artigo do Observador provocou uma discussão intensa nos fóruns ligados à Igreja Católica, não apenas em Portugal, mas também noutros países, e na imprensa. A suposta rejeição da virgindade de Maria por parte de um bispo — que a Igreja considera os sucessores dos apóstolos de Cristo — causou polémica entre vários católicos, precisamente por se tratar da negação de um princípio fundamental da fé católica.
Nomeados diretamente pelo Papa (ainda que por proposta das conferências episcopais de cada país através do embaixador do Vaticano, ou Núncio Apostólico), os bispos são detentores do grau mais elevado do sacramento da Ordem, estão em união com os outros bispos e com o Papa (bispo de Roma) e são a autoridade máxima da Igreja Católica nas suas dioceses, cabendo-lhes exclusivamente a eles a ordenação de novos diáconos, padres e bispos.
Aliás, o Código de Direito Canónico, no cânone 753, determina que os bispos são “doutores e mestres autênticos da fé dos fiéis confiados aos seus cuidados”.
Neste caso, as normas da Igreja Católica determinam que a negação da virgindade perpétua de Maria é considerada heresia. Segundo o CDC (cânone 751), “diz-se heresia a negação pertinaz, depois de recebido o batismo, de alguma verdade que se deve crer com fé divina e católica, ou ainda a dúvida pertinaz acerca da mesma”.
O mesmo documento explica que “o apóstata da fé, o herege e o cismático incorrem em excomunhão latae sententiae” (cânone 1364) e que o clérigo poderá ser punido com a perda de “poder, ofício, cargo, direito, privilégio, faculdade, graça, título, insígnias, mesmo meramente honoríficas” (cânone 1336).
A excomunhão é a pena mais grave que a justiça da Igreja Católica pode aplicar aos fiéis. No caso de situações particularmente graves, entre as quais se inclui a heresia, esta excomunhão pode acontecer latae sententiae, ou seja de forma automática, só podendo ser levantada pela autoridade do próprio Papa.
Não será de estranhar, portanto, que entre os fiéis católicos — sobretudo em Portugal, país em que a devoção a Maria é particularmente relevante para a prática cristã — a discussão sobre a suposta negação de um dogma de fé por um bispo tenha atingido esta dimensão.
A discussão deve também ser enquadrada num tempo em que se aprofunda na Igreja Católica uma divisão entre alas mais tradicionais (habitualmente conotadas com um certo conservadorismo) e outras mais progressistas, que começou com a apresentação das dubia ao Papa Francisco por quatro cardeais, em 2016.
Nesse documento, quatro cardeais ligados ao setor mais tradicionalista da Igreja pediram ao Papa Francisco que esclarecesse cinco pontos da sua exortação apostólica Amoris Laetitia, em que o líder dos católicos abriu a porta à receção da comunhão por parte dos fiéis católicos que se divorciaram e voltaram a casar.