Usava uma barba falsa, óculos escuros e caminhava de forma tranquila nas ruas da cidade boliviana de Santa Cruz de La Sierra, perto da fronteira com o Brasil. Apesar do disfarce, a polícia boliviana, em permanente coordenação com as autoridades brasileiras e com a Interpol, soube imediatamente de quem se tratava: Cesare Battisti, o italiano e ativista comunista acusado pela morte de quatro pessoas nos anos 70 e condenado a prisão perpétua. Há 37 anos que, entre fugas da prisão, refúgios improvisados e um asilo político concedido por Lula da Silva no Brasil, ia conseguindo escapar à justiça. Foi detido este fim-de-semana, aos 64 anos, e já está em Itália, onde vai cumprir o resto da pena. Uma história que vai além da detenção, que envolve diplomacia, guerras judiciais e batalhas políticas.

Os quatro homicídios, a fuga da prisão e a traição que ditou a prisão perpétua

Battisti nasceu nos arredores da capital italiana em dezembro de 1954. Desde cedo, recebeu uma educação familiar muito influenciada quer pelo comunismo quer pelo catolicismo. Passou a sua juventude nas ruas de Cisterna, uma comuna italiana que fica a cerca de 70 quilómetros de Roma. Esteve envolvido em várias ações de delinquência que o atiraram algumas vezes para a prisão. Numa dessas detenções, a educação recebida em casa veio a revelar-se um trunfo. O comunismo radical, que já começava a fazer parte de Cesare Battisti, serviu para estabelecer uma relação com um outro recluso: Arrigo Cavatina, um dos cabecilhas do grupo Proletários Armados pelo Comunismo (PAC). Corria o ano de 1977. A partir deste momento — que agora se sabe ter sido de viragem— nada mais foi o mesmo na vida de Battisti.

Com apenas 23 anos, começou a envolver-se na atividade do PAC. O contacto privilegiado com um dos líderes deste grupo terrorista fez com que crescesse na hierarquia de forma quase natural e conquistasse rapidamente uma posição de relevo, que se revelava mais importante devido ao contexto italiano, que naquela altura era marcado por um forte crescimento dos extremismos e da respetiva tensão entre eles.

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Os grupos armados dos dois lados envolviam-se em autênticas guerrilhas nas ruas. Cometiam homicídios silenciosos e seletivos, e promoviam assaltos a lojas e entidades que eram tidos como símbolos dos opositores. Os crimes tinham por base a vingança, mais do que a ideologia inicialmente entoada como o motor destas ações.

Foi precisamente na sequência de um assalto que terminou com a morte de Pierluigi Torregiani, em 1979 em Milão, que Cesare Battisti foi detido e acusado, pela primeira vez, de homicídio. O crime em causa foi perpetrado pelo PAC depois de Torregiani ter sido identificado pelo grupo como um “perigoso membro da extrema-direita”. A designação foi-lhe atribuída por ser membro do Movimento Social Italiano, de extrema-direita, e depois de ter reagido com violência, por várias vezes, a assaltos à sua ourivesaria. Mostrou-se hostil e respondeu com tiros, chegando a matar um dos assaltantes, algo que o grupo terrorista interpretou como uma grave afronta. As autoridades acusaram Battisti de ter sido o cérebro deste ataque.

Negou desde o primeiro minuto estar envolvido no crime mas a justiça italiana acreditava ter as provas do seu lado e condenou-o a uma pena de prisão de 12 anos e 10 meses. Na prisão de Frosinone, perto de Roma, cruzou-se com velhos conhecidos do PAC, nomeadamente Pietro Mutti. Um elemento central naquilo que viria a ser o destino de Battisti e do seu processo judicial. Foi com ele que começou a preparar a sua fuga da prisão. O plano foi executado com sucesso em 1981, quando a polícia já começava a associar Battisti ao homicídio do talhante Lino Sabbadin, ocorrido no mesmo dia que o de Torregiani, mas em Veneza. Segundo os relatos que nunca chegaram a ser confirmados oficialmente, fugiu para França e de seguida para o México.

Embora não se saiba por onde terá andado nos meses imediatamente seguintes à fuga, sabe-se que foi em França que encontrou sinais de estabilidade mas foi apenas no México que deu sinais de vida, no início de 1982. Em 1990, voltou a França sob alçada de um asilo político concedido pelo então presidente francês, François Miterrand. No ano seguinte, Itália exigiu a sua extradição, mas Paris negou o pedido. Por esta altura, Battisti começava a publicar livros policiais e assumia-se como um ativista de esquerda, tentando dar sinais de reintegração e reabilitação. Mas em Itália, havia um aliado que se preparava para o entregar.

Battisti sentia-se protegido pelo regime francês e nunca escondeu a sua gratidão para com este país. Foi precisamente nesta altura de aparente tranquilidade que Pietro Mutti, o cúmplice da sua fuga de Frosinone, apresentou o seu testemunho debaixo do regime de delação premiada. Responsabilizou-o pela morte de Torregiani e Sabbadin mas também de outros dois homicídios: o do polícia Andrea Campagna, assassinado com um tiro a sangue frio em 1979 em Milão; e o do marechal Antonio Santoro, que terá sido morto pelo próprio Battisti à saída da prisão em que trabalhava.

O caso foi reaberto em Itália e, mesmo sem a presença do réu, o julgamento ditou uma nova pena: prisão perpétua. Battisti acusou a justiça italiana de ter levado avante um processo em que não teve direitos de defesa e negou todos os crimes. O caso chegou ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que acabou por validar a decisão dos tribunais de Itália.

Os apoios e os asilos: de Miterrand a Lula da Silva

Cesare Battisti começava a entrar na cena artística francesa e a relacionar-se com escritores, pintores, músicos e intelectuais, que desde cedo se mostraram solidários com a causa do italiano, que se dizia alvo de uma perseguição política sem fundamento. Em 2003 pediu a naturalização francesa. Inicialmente o pedido foi aprovado mas no ano seguinte acabou por ser anulado. Depois de sucessivas pressões por parte de Itália, as autoridades francesas detiveram Battisti.

A sua prisão não foi bem vista pela comunidade artística francesa, que cedo manifestou o seu apoio ao escritor e pediu a sua libertação. A polícia deixou o italiano sair em liberdade, obrigando-o a uma apresentação periódica enquanto Paris e Roma negociavam a sua extradição.

Battisti deixou de se apresentar às autoridades por acreditar que seria detido e extraditado para Itália se continuasse a ir voluntariamente à esquadra. Assim, passou à clandestinidade e começou a procurar novo asilo político. O primeiro-ministro francês Jean Pierre Raffarin assinou o decreto da sua extradição. Battisti não esperou e fugiu do país.

O destino estava escolhido há algum tempo: Brasil. Chegou em 2004 e viveu de forma pacata e discreta até 2007, ano em que foi detido no Rio de Janeiro para ser extraditado para Itália. Foi enviado para a prisão de Papuda, em Brasília, onde aguardaria a decisão da justiça brasileira relativa à sua extradição. O processo foi longo, e em 2009, o então ministro da Justiça do Brasil, Tarso Genro, concedeu a Battisti, que ainda se encontrava detido, o visto de “refugiado político”.

No entanto, o pedido do Governo não foi aceite pelo Supremo Tribunal Federal (STF, a mais alta instância judicial do Brasil, que decretou que a decisão devia ser tomada pelo presidente Lula da Silva.

Foi apenas no último dia do seu segundo mandato, a 31 de dezembro de 2010, que o histórico líder brasileiro tomou a decisão de impedir a sua extradição, validando o visto de refugiado político e permitindo que Battisti saísse em liberdade. Esta decisão teria ainda de ser aprovada pelo STF. Foi já em 2011, com uma votação de seis votos favoráveis e três contra, que os juízes aprovaram a nulidade da extradição de Battisti. Itália contestou a decisão, sem sucesso.

Durante o mandato de Dilma Rousseff, o italiano não viu qualquer alteração ao seu visto de refugiado político, apesar das pressões vindas tanto da Europa como do interior do Brasil. Battisti continuava a tentar aprofundar e promover a sua produção literária. Aproveitou os quatro anos em que esteve detido em Brasília como inspiração e, em 2012, publicou o livro “Ao pé do muro”, que relata os tempos vividos na prisão de Papuda.

A sua prisão foi sempre mais do que isso. Era uma espinha encravada nas relações diplomáticas entre Brasil e Itália mas também era um facto político que ia além das minudências judiciais. Esquerda e direita também se definiam consoante o apoio ou a crítica ao asilo político concedido por Lula da Silva a Battisti, que continuava a apregoar a sua inocência e a exigir um julgamento justo, em que pudesse ter uma “defesa digna”.

Não é por isso de espantar que Michel Temer tenha tido uma postura distinta das dos seus antecessores perante este caso. Mostrava-se favorável à sua extradição mas faltava-lhe um pretexto para lhe retirar o asilo político. Algo que aconteceu apenas em 2017, quando Battisti tentava passar a fronteira entre a Bolívia e o Brasil com mais de cinco mil euros em dinheiro. O italiano acabaria por ser libertado por não ter sido cometido um delito que o obrigasse a ficar encarcerado enquanto aguardava julgamento.

No entanto, foi o suficiente para que em 2018 a Procuradoria-Geral da República tenha pedido ao STF que dessa prioridade a este caso, que poderia terminar com a extradição de Battisti. No início do passado mês de dezembro, Luiz Fux deu início ao processo de extradição, que teria de ter luz verde de Temer. O ex-presidente do Brasil concedeu autorização para que o italiano fosse detido e consequentemente extraditado para Itália.

Enquanto o Governo brasileiro decidia a extradição já Battisti preparava o próximo passo: a fuga para a Bolívia. O italiano conseguiu passar a fronteira e viver um mês sem ser detido em Santa Cruz de La Sierra, cidade boliviana que fica numa zona fronteiriça com o Brasil.

Este domingo, depois de uma operação minuciosa de cooperação entre as autoridades brasileiras, bolivianas, italianas e a Interpol, Battisti foi detido na Bolívia e extraditado para Roma. A detenção acontece sob o mandato de Jair Bolsonaro, que tinha anunciado que a prisão deste ativista acusado de quatro homicídios nos anos 70 seria uma prioridade do seu início de mandato. O presidente tentou retirar louros desta detenção embora só esteja no cargo há 14 dias.

Cesare Battisti já chegou a Roma para cumprir pena de prisão perpétua. Veja o vídeo

Usando uma barba postiça, óculos escuros e caminhando de forma tranquila. Foi assim que as várias autoridades envolvidas nas buscas identificaram Cesare Battisti. Foi colocado num avião levado pela polícia italiana e já está em Roma, onde vai aguardar a decisão quanto ao cumprimento da sua pena de prisão perpétua. Quatro países, quatro presidentes brasileiros e 37 anos depois, Battisti está de novo nas mãos da justiça italiana.