Foram precisos quase dois séculos para se abrir o novo capítulo da História que será escrito no próximo domingo em Atlanta, nos Estados Unidos. No momento em que pisarem o relvado do Estádio Mercedes-Benz, Quinton Peron e Napoleon Jinnies tornar-se-ão nos primeiros membros do sexo masculino a participar na equipa de cheerleading no Super Bowl. A ironia? Quando começou, em meados do século XIX, o cheerleading, até agora protagonizado apenas por mulheres, era um entretenimento reservado exclusivamente para os homens.

A imagem dos pompons coloridos e das minissaias às pregas que agora associamos às cheerleaders é relativamente recente. Antes, quando começou, era visto como “um equivalente em prestígio à bandeira americana de masculinidade, o futebol”: “A reputação de ter sido um valente cheerleader é uma das coisas mais valiosas que um rapaz pode tirar da faculdade. Como título de promoção na vida profissional ou pública, raramente fica em segundo lugar em relação a ser um quarterback“, descrevia em 1911 a revista The Nation.

Os currículos falavam por si. Houve quatro presidentes norte-americanos que foram cheerleaders: Dwight D. Eisenhower tornou-se cheerleader na West Point Academy depois de uma lesão no joelho o ter impossibilitado de praticar futebol americano, Franklin D. Roosevelt foi cheerleader no Harvard College, Ronald Reagan no Eureka College e George W. Bush também foi chefe dos cheerleaders na Phillips Academy.

George W. Bush em 1964, quando era cheerleader da Phillips Academy em Andover, EUA. Créditos: Darren McCollester/Newsmakers

Enquanto assim foi as mulheres não puderam ser cheerleaders. Em primeiro lugar porque esse era um desporto/entretenimento praticado nas universidades e eram raras as mulheres que as frequentavam. Em segundo porque os número de admissões era semelhante ao das modalidades do atletismo, que também era limitado no sexo feminino. E depois porque se julgava que o cheerleading poderia tornar as mulheres “demasiado masculinas”, dizia um treinador em 1938, de acordo com o livro “Women, Sport, and Culture” de Susan Birrell.

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Duas guerras mundiais depois

Foi preciso não uma, mas duas guerras mundiais para abrir as portas do cheerleading às mulheres. Nos anos 30, quando os rapazes norte-americanos começaram a ser notificados para combater na I Guerra Mundial, elas foram chamadas para preencher os lugares vazios deixados por eles nas equipas de apoio ao futebol americano — tal como aconteceu no trabalho nas fábricas, por exemplo. Mas quando o conflito terminou e os soldados regressaram a casa, as mulheres tiveram de travar outra batalha para ficarem nas posições que tinham conquistado. Os homens queriam voltar a dominar o cheerleading.

E havia argumentos para isso, acreditavam eles. O treinador citado no livro “Women, Sport, and Culture” insistiu que “as mulheres cheerleaders frequentemente tornam-se demasiado masculinas para o seu próprio bem. Testemunhámos o desenvolvimento de vozes roucas e barulhentas e o consequente desenvolvimento do calão e profanidade pela sua necessária associação com membros homens”. Mas não houve outra opção. A II Guerra Mundial chegou enquanto o debate ainda decorria. E o lugar das mulheres no cheerleading foi cimentado.

Tão cimentado que passou a ser dominado exclusivamente por elas e conduziu a mudanças na forma de apoiar as equipas. Por causa dos estereótipos relacionados com os dois sexos, os números que normalmente serviam para exibir as capacidades atléticas e “de valentia” dos cheerleaders passaram a servir para aproveitar as “maneiras, alegria e boa disposição” do sexo feminino. Chegados os anos 60, o cheerleading “consistia em cânticos amorosos, grandes sorrisos e uniformes reveladores”: “Não havia corridas. Não havia acrobacias complicadas. Nunca quaisquer lesões. Das coisas mais atléticas que as cheerleaders faziam nos anos 60 era uma estrela seguida de espargatas”, descreve o livro “We’Ve Got Spirit” de James T. McElroy.

Cheerleaders da Universidade de Maryland, EUA, nos anos 50. Créditos: Orlando /Three Lions/Getty Images.

Agora, das 1,5 milhões de pessoas que praticam cheerleading de topo nos Estados Unidos, 97% são mulheres. Nenhum dos homens que compõem os outros 3% participaram no Super Bowl, o evento televisivo mais ansiado dos Estados Unidos. A atividade mais proeminente que têm é a segurar bandeiras, pedir aplausos ao público e dar gritos de ordem com os altifalantes. Isso muda este fim de semana. Quinton Peron e Napoleon Jinnies, de 26 e 28 anos, cheerleaders dos Rams, são dois dos únicos três homens a dançar com um grupo de cheerleading da National Football League (NFL), a liga de futebol americana — o outro é Jesse Hernandez, dos New Orleans Saints.

Os Rams mais uma vez a romper barreiras

Mas no domingo, Quinton Peron e Napoleon Jinnies vão dar um passo em frente e serão os primeiros no Super Bowl. Os dois entraram no Rams em março do ano passado. Em entrevista ao Good Morning America, Quinton explicou como decidiu tornar-se cheerleader: “Estava no jogo dos Lakers, mesmo antes de entrar na equipa, e estava a ver as Lakers Girls. E perguntei a mim mesmo: ‘Porque é que não posso estar lá em baixo?’. Eu já fiz coreografias para raparigas que dançam em equipas profissionais, já dancei com elas. Por isso pensei: ‘Por que não?'”.

Napoleon Jinnies, um dos cheerleaders que vai estar no Super Bowl, posa com as colegas do Los Angeles Rams. Créditos: ohn McCoy/Getty Images

Os Rams estão habituados a fugir aos estereótipos. Foram a primeira equipa a contratar um afroa-americano e a pioneira a incluir um jogador assumidamente homossexual. Enquanto as cheerleaders das outras equipas ganham miseravelmente por aquele ser considerado um terceiro ou quarto emprego, nos Rams elas ganham o mesmo que qualquer outro funcionário em part-time. Além disso, o pagamento é feito à hora e nisso incluem-se os ensaios, os treinos no ginásio, o tempo da maquilhagem e de preparar o uniforme, entre outras tarefas.

Agora, Quinton Peron e Napoleon Jinnies — o primeiro dançarino clássico e o segundo um maquilhador profissional — vão quebrar mais um preconceito. Apesar de as audições serem sempre abertas aos dois sexos, Quinton e Napoleon foram os únicos homens a aparecer. “Senti que este é o ano. Neste momento no mundo parece que isto é mais aceite. Se tens talento e és trabalhador, porque não? Se alguém se rir de mim… Isto não é Carrie: The Musical. Já estou tão calejado”.

Assim, o cheerleading, que passou das mãos dos homens para as mãos das mulheres, vai passar a ser de todos.