Vários enfermeiros estão a utilizar a Internet para sugerir que os profissionais faltem ao trabalho, agora que a requisição civil anunciada pelo governo colmata os problemas que a greve provocaria. Há profissionais a sugerir que os enfermeiros faltam o máximo de dias possível por lei, e que recusem trabalhar quaisquer horas extra, impedindo a realização das cirurgias adicionais agendadas para compensar o aumento das listas de espera após a última greve.
“Já ouvi que os enfermeiros colocam a hipótese de abandono dos serviços. Todos têm direito a faltar cinco dias seguidos ou dez intercalados. Portanto, se se organizarem nesse sentido não haverá sequer lugar a serviços mínimos. Já tinha dito à ministra da Saúde que os movimentos inorgânicos de enfermeiros têm uma enorme contestação latente e que eu, como dirigente sindical, nem preciso de os mobilizar, porque a ministra e o primeiro-ministro fazem-no muito bem”, disse Lúcia Leite, presidente da Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros de Portugal (ASEP), ao Expresso.
A Ordem dos Enfermeiros confirma que os enfermeiros estão a pensar faltar ao trabalho como nova forma de protesto: “Estamos a ser sobrecarregados com mensagens de enfermeiros a defender a ideia de se juntarem num movimento para abandonar os serviços”, confirmou ao mesmo jornal a bastonária Ana Rita Cavaco.
Movimento Greve Cirúrgica, que desencadeou as greves em blocos operatórios e esteve na origem da recolha de fundos feita através da Internet para financiar os grevistas pediu, numa mensagem no Facebook, que os enfermeiros deixassem de ser “os bonzinhos do SNS”, recorrendo a formas de protesto como o abandono de serviço ou as greves de zelo.
Sindicatos. Governo criou expetativas impossíveis de cumprir para decretar requisição civil
Lúcia Leite, presidente da Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros (ASPE), disse que o governo “deu instruções às instituições para agendar doentes prioritários em número excessivo àquilo que a capacidade instalada permitia”: “Numa situação normal seria difícil dar resposta àquelas listas. Em funcionamento em período de greve seria impossível. Foram criadas as condições para que o governo pudesse decretar a requisição civil”, acusou ela em entrevista à TVI. À TSF acrescentou: “Foi arquitetado um plano para armadilhar esta greve”.
A responsável sindical disse que esta é uma estratégia do governo para “utilizar uma figura jurídica extrema para resolver o problema dos enfermeiros”. Ainda assim, insiste que não vou houve falhas nos serviços mínimos e afirma que qualquer queixa que o primeiro-ministro apresente à Procuradoria-Geral da República é “um boicote à greve”. Quanto à requisição civil, a presidente da ASPE opina que “o que o governo pretendeu foi esvaziar a greve”: “Deixa de ter efeitos práticos porque os cidadãos ficam obrigados a se apresentarem ao serviço”.
A ASPE avisou o Governo para o risco de surgirem formas de luta “mais incontroláveis” que não sejam suportadas por sindicatos, considerando que os enfermeiros não ficarão serenos face à decisão de requisição civil.
Lúcia Leite, rejeita os fundamentos para a requisição civil decidida hoje em Conselho de Ministros e considera que o Governo “optou por um caminho que parece fácil, mas que lhe pode trazer dificuldades bem maiores no futuro”. “Não acredito que os enfermeiros, depois de verem como os governantes os desrespeitam, vão ficar serenos com esta decisão”, declarou Lúcia Leite à agência Lusa, indicando que o sindicato ainda vai analisar o alcance da requisição civil “antes de tomar decisões”.
Ainda assim, a presidente da ASPE diz que teme que “possam aparecer outras formas de luta suportadas em movimentos inorgânicos”, formas essas que possam ser “mais incontroláveis”. “Mas estou de consciência tranquila. Avisei a senhora ministra da Saúde sobre esse risco”, disse.
A presidente da ASPE entende que a fundamentação para a requisição civil “está ferida de verdade” por se basear num incumprimento dos serviços mínimos que “não aconteceu”. Em declarações à Lusa, Lúcia Leite considerou que “o incumprimento dos serviços mínimos é falso” e que o Governo usou estratégias para “ficcionar factos”.
Ordem convoca sindicatos e enfermeiros diretores
Em reação ao comunicado do governo, a Ordem dos Enfermeiros convocou os sindicatos que decretaram a greve cirúrgica, Sindepor e ASPE, e o Movimento Greve Cirúrgica para uma reunião na próxima terça-feira ao início da tarde. Na reunião estarão também os enfermeiros diretores dos centros hospitalares onde decorre a referida greve.
No mesmo documento, a Ordem dos Enfermeiros sublinha que “a Bastonária estará ao lado dos enfermeiros, como sempre tem estado e vai continuar a estar, no protesto agendado para as 9h junto ao Hospital de Santa Maria”.
Sindicato Democrático dos Enfermeiros surpreendido com requisição civil
O Sindicato Democrático dos Enfermeiros de Portugal (Sindepor) afirmou-se surpreendido por o Governo decretar requisição civil na greve cirúrgica dos enfermeiros, argumentando que essa figura não se justifica quando os serviços mínimos são cumpridos.
“Estamos surpreendidos porque não conseguimos entender qual a razão para esta requisição civil”, disse à agência Lusa o dirigente sindical Carlos Ramalho lembrando que houve pareceres de “alguns consagrados professores de direito” que concluíram que “não era possível uma requisição civil quando os serviços mínimos estão assegurados, e é isso que tem acontecido”.
Carlos Ramalho acusa o Governo de conduzir “um processo político de manipulação da opinião pública, anunciando que as cirurgias não estavam a ser feitas” e garante que os enfermeiros podem provar que “isso é falso”.
“Acompanhámos os piquetes de greve e sabemos que muitos dos tempos operatórios não foram devidamente utilizados e sempre estivemos disponíveis para negociar com os conselhos de administração a abertura de mais salas operatórias sempre que as situações o justificassem”, declarou.
O sindicato vai contactar o seu advogado para “reagir juridicamente” e Carlos Ramalho apontou que a requisição civil hoje decretada “só veio ajudar a unir ainda mais os enfermeiros, que estão disponíveis para o que for necessário, sempre dentro dos limites que a lei permite”.
Advogado Garcia Pereira vai representar sindicatos
O advogado Garcia Pereira vai representar os sindicatos dos enfermeiros na questão da requisição civil. Em declarações à agência Lusa, o especialista em direito do trabalho afirmou que a requisição civil “é um procedimento abusivo desde o início, numa circunstância em que uma operação de manipulação da opinião pública originou que se deixasse de falar do que levou os enfermeiros a encetarem esta forma de luta”.
Para o advogado, especialista em direito do trabalho, a requisição civil neste caso trata-se de um “procedimento abusivo” numa greve onde tem havido “uma gigantesca operação de manipulação pública”, segundo afirmou à TSF. Essa operação do Governo, diz, pretende “apresentar os enfermeiros como umas pessoas irresponsáveis que não querem saber dos doentes” o que é “pura mistificação e manipulação”. Garcia Pereira garante que não só os serviços mínimos estão a ser cumpridos como em algumas áreas como as das cirurgias oncológicas “fizeram-se mais atos cirúrgicos do que os que estavam a ser feitos em períodos normais”.
Segundo o advogado, para quem “nem a requisição civil consegue calar a contestação”, o Governo num primeiro momento fez criar a ideia de que não era possível combater a base legal da requisição civil mesmo havendo cumprimento dos serviços mínimos. “Apesar de opiniões favoráveis, considero completamente errado, pois um direito fundamental dos trabalhadores ser sujeito a restrições e compressões tem de resultar de lei expressa, geral e abstrata, e anterior à situação, neste caso a restrição de direitos”, disse Garcia Pereira.
O advogado, que já representou sindicatos durante a requisição civil na TAP, argumentou que “um diploma legal restritivo de direitos fundamentais não pode ser objeto de interpretações extensíveis nos termos de uma lei laboral, quer privada, quer pública”. Na sua opinião, a única circunstância em que pode haver lugar a requisição civil é existir incumprimento dos serviços mínimos.
“Como o Governo terá verificado que este caminho implicava parecer jurídico passou a uma outra forma de atuação, que consistiu nos tribunais arbitrais procederem a fixações cada vez mais amplas daquilo que deveriam ser os serviços mínimos, a ponto de no último acórdão, para além das situações que vêm elencadas, se ter aditado uma alínea que os juristas consideram um conceito indeterminado”.
Garcia Pereira sublinhou que os serviços mínimos abrangem também todas aquelas situações em que seja considerado que a não realização do ato clínico cirúrgico é suscetível de criar prejuízos irreparáveis ou de muito difícil reparação. Na sua ótica, isto significa “remeter a definição de serviços mínimos para juízos subjetivos e de elevadíssimo grau de discriminação, ainda por cima da autoria de um grupo profissional que tem, em grande parte, uma particular hostilidade para com esta luta”, que são os médicos.
O advogado considerou ainda que, no caso da greve dos enfermeiros, “foram marcados serviços mínimos muito superiores à média normal, até atuando como uma forma de limpar as listas de espera cirúrgicas”.