Há 50 anos, mesmo quem nunca tinha morado num país tropical, abençoado por Deus, e bonito por natureza, ficou a saber que “em fevereiro tem carnaval”. Em breve, Jorge Ben vai apresentar este “País Tropical” na terra das temperaturas incompatíveis com a folia ao léu: cidade do Porto, 8 de julho, NOS Primavera Sound. Antes de recebermos de braços abertos o gigante da MPB, existe um carnaval à espreita, o primeiro sob a presidência conservadora de Jair Bolsonaro, e a julgar pelos últimos dias, um ano extraordinário de música popular brasileira.

Apesar da tarefa ingrata — e consideravelmente atrasada — Daniela Mercury segue contra a maré a convencer o povo brasileiro das vantagens de regressar aos tempos do governo “vermelho, vermelhaço, vermelhusco, vermelhante, vermelhão”, a impor um tom de celebração oposicionista que deve prosperar nesta época festiva. “Proibido Carnaval”, ao lado de Caetano Veloso, é a injeção de adrenalina que a cantora nos tem habituado, e é sobretudo, uma forma dançante de protesto, com o mote: “Está proibido o carnaval neste país tropical”.

No início do mês, impregnado no recente revivalismo dos anos 90, houve mais axé surpreendente, “Perfeitamente Imperfeita” de Bárbara Eugenia, presença assídua nas lides da música independente. Na semana passada outra surpresa, “Nós Dois Aqui”, um samba-reggae liderado pela voz delico-doce de Silva, uma nova direção musical após um álbum bem sucedido e o single transversal com Anitta, o “Fica tudo bem”, esse mesmo, aquele que é enervantemente cativante. Pode-se enervar e ser feliz com Silva durante três dias no Capitólio, de 28 a 30 de março. Atenção, nada contra a entrada de Silva no território do samba-reggae, desde que o compositor ligeirinho saiba ao que vai: um campo minado pelas bombas certeiras, e forte tempero, de BaianaSystem.

Piratas das Caraíbas

Lançado na passada sexta-feira, O Futuro Não Demora é o profético novo álbum de BaianaSystem, a banda de Salvador que transformou a Bahia, e o Brasil, num tremendo empoeirado de batidas acertadas e corpos à solta, povo em comunhão a exorcizar esta música endiabrada, auto-descrita como “samba-dub-reggae”, “samba-rock-reggae”, ou até, “samba-reggae-reggae”. Além de ser a banda mais proeminente, e influente, dos últimos anos, a bordo do Navio Pirata — nome do veículo que serve de palco, desfilam no carnaval de Salvador como a perfeita expressão popular desta gente, aos saltos em volta de uma parede de colunas empilhadas. Após anos de embarcação, o “Navio” atraca no novo álbum, veleja na mesma maresia de outrora, mão pesada no sintetizador e leve na percussão, agora com a certeza que não basta ao povo mexer as ancas, pois “quem manda no navio tá na proa”, lá na frente, em Brasília.

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E O Futuro Não Demora podia ser isto, mais do mesmo, altos decibéis com balanço, crónicas dos extremos da sociedade urbana. Porém, no interior da Bahia está outra viagem, no mesmo recôncavo que inspirou o tropicalista Gilberto Gil, os ensinamentos do método antropofágico são manual de instruções para Russo Passapusso e companhia, e se estamos a falar dessa forma brasileira de abocanhar a cultura alheia com tempero baiano, veja-se “Aparuca”, o resultado inesperado quando o pagode encontra o grime. Ou no levantar de poeira de “Bola de Cristal”, baile na terra batida, pessoal do campo, a fazer mantras com berimbau e guitarra baiana, a celebrar “Saci” e outras figuras mitológicas negras, lengalengas impregnadas no povo.

Não há dúvidas, é logo à primeira, esta álbum é outra praia, “Água” bate certo com a sofisticação melódica de Tom Jobim, a entrega descontraída da dupla Antônio Carlos e Jocáfi, pé na água morna, pouso impensável para a banda mais combativa do Brasil. Em “Sul americano” até trazem a aragem fresca da caribe, com a voz clandestina de Manu Chao, piratas das caraíbas a cantarolar “para poder contra atacar”. São muitas participações memoráveis neste disco, além do saudoso cantor de “Desaparecido”, Edgar continua a firmar-se como o rapper brasileiro do momento, B Negão é um regresso onde já foi feliz, e Curumim prenda “Sonar” com uma inesperada batida entre o R&B rocksteady.

Os extremos sociais não deixaram de figurar nas preocupações dos BaianaSystem, Russo continua a enfrentar no terreiro a justiça cega, a constatar o que Chico Science profetizava nos anos 90, que:

“A cidade não pára
A cidade só cresce
O de cima sobe
E o de baixo desce”

E mesmo armado até aos dentes de rimas acusatórias, “o futuro não demora”, existe uma esperança na força ancestral e conciliatória desta música, reflexo natural da forma de estar baiana, ou como explicou ao Observador o próprio vocalista: “Quando ouço uma música nordestina respirando no meio de outras canções do nosso país, veja a nossa capacidade criativa de renovação, existe uma força ancestral que remete à fé, esperança e alegria do nosso povo”.

O homem do fim de mundo

Nas sombras, paralelo aos blocos de carnaval que afluem o Rio de Janeiro, existe uma outra cidade, de pessoas sensíveis às altas temperaturas e histerismos coletivos, incapazes de ser levados ao sabor de vento, de esquecer que tristeza não tem fim. Entres estes marginais deixados de lado, um esgueira-se pelas trevas, cascalho a ressoar, pé ante pé, cuíca nervosa. Aqui está ele, Jards Macalé, a esvoaçar para fora da gruta do esquecimento, um monstro carioca, um “Vampiro de Copabana”. Besta Fera é o novo álbum do cantor de “Gotham City” no Festival Internacional da Canção, há 50 anos, eternamente Batman, morcego escondido na porta principal da MPB, uma assombração fundamental para entender a canção brasileira.

No apocalipse de Ezra Pond, rodeado de morte sombria, Jards Macalé canta a desolação das “Trevas”, e logo de seguida, qual carnaval, perverte todos os costumes, incluindo da canção, com o compositor de “Vapor Barato” a demonstrar porque nunca entrou em tachinhos, em rótulos fáceis, começa a gozar o prato, a gorgolejar a segunda metade da música. Estas são as duas faces do homem que acompanhou Caetano Veloso no violão em Transa, a incorporação dos contrastes que cantou na década de 70 para ouvidos surdos, o sambista de felicidade melancólica, de alegria nefasta. A trama adensa na extraordinária “Buraco da Consolação”, a meias com Tim Bernardes, um casal no fundo do poço a chapinhar na miséria, a ruir pela autocomiseração amorosa:

“Então por que não desiste e desce rolando até os Jardins
Vamos pro fundo do poço, pois não tem mais nada pra você aqui”.

“O tempo ficou a meu favor”, confessou-nos Jards Macalé em 2017, quando este álbum regenerador ainda não estava nos planos, ou sequer Tim Bernardes tinha passado por Portugal a cantar uma versão de Macalé. Depois de anos na sombra das canções interpretadas por Gal Costa em Fa-Tal, gente nova como Ava Rocha demonstrava que a marginalidade passou a modus operandi para uma nova geração de compositores, aquela forma complicada de fazer canções, que Tom Zé descreveu assim:

“Eu tô te explicando
Prá te confundir
Eu tô te confundindo
Prá te esclarecer”

Hoje, esta complicação agrada, e as canções aos soluços, em completo movimento, são a marca de Macalé, explorador de ritmo brasileiro, como na nova “Tempo e contratempo”, quase uma continuação da velhinha “Let’s Play That”.

Jards Macalé. O génio maldito da música brasileira

A existência de Besta Fera era inevitável. Nada mais natural que os mesmos cientistas loucos que fizeram renascer Elza Soares em Mulher do Fim de Mundo, voltassem ao laboratório, à conceção de melodias nervosas, aproveitassem a mesma técnica para Jards, uma criatura mais ao gosto destes músicos de São Paulo. Kiko Dinucci e Thomas Harres, com direção artística de Romulo Fróes, conseguem, por exemplo, recuperar o fuzz indissociável dos primórdios de rock brasileiro, engendrar um country diabólico em “Pacto de Sangue”, e mais importante que isso, dar espaço ao silêncio que é permissivo para as melancolias do homem do fim de mundo, desde “Valor” a “Obstáculos”, esta última onde canta:

“Não piso com força o piso
Piso sempre devagar
E por mais que eu me esquive
Num precipício posso terminar”

A capa de “Besta Fera”, de Jards Macalé

Outras bestas ferozes são Rodrigo Campos, exímio no cavaquinho, e Thiago França no saxofone, parte da roda de samba que compõe “Longo Caminho de Sol”, o regresso ao universo do faquir da dor, personagem de Aprender a Nadar, segundo álbum de Jards Macalé. E ainda há bossa, “Meu amor meu cansaço”, como se tivesse novamente com o velho amigo Dori Caymmi, escondido no fundo do apartamento em Copacabana, a ver aquela malta à procura do ritmo de João Gilberto, a fazer canções suaves em frente ao mar. No fim, conclui sem rodeios:

“Nem quero que saibam
O valor de minhas canções
Se boas ou más, pouco me importam”

Jards Macalé está irredutível em 2019 como estava há 50 anos atrás, sem ceder um milímetro, um álbum anti-folia, com a vantagem de, ao contrário do carnaval, não acabar na quarta-feira.

E outros carnavais

Quem diria. Dois reclusos no quarto de adolescente, em Goiânia, na capital do sertanejo a testar doces ácidos, cabeças ao vento, abertas pela lisergia de meia nove, um sonho esvoaçante com pés bem assentes na terra, sete anos depois, a lançar singles no New York Times e Brooklyn Vegan. “Sombra ou Dúvida”, primeira amostra do novo álbum dos Boogarins, Sombrou Dúvida — lançamento para 10 de maio, não destoa do momento recente da banda, um riff oscilante com quebras e arranques, a perfurar na superfície da harmonia brasileira, floreado pelo lirismo repentista do vocalista Dinho — “Eu desconfio dos hábitos, eu boto fé no viver ávido”. A melodia é próxima da canção que vimos nascer nos bastidores do MIL, em Lisboa, parceria improvisada com os Capitão Fausto.

Como é que Capitão Fausto e Boogarins fazem uma canção juntos?

O Lisbon International Music Network — MIL, quer ser a montra da canção independente brasileira em Portugal, tendo anunciado recentemente o concerto de abertura pela femme fatale Letrux (27 março, B.Leza, com Lula Pena), que relançou agora “Ninguém Perguntou Por Você”, parte das irresistíveis divagações noturnas de Em Noite de Climão. Além de Letrux, o MIL marca o regresso de Rubel — que ainda toca no Capitólio em abril, Edgar, Ramonzin, Venga Venga e Jaloo. Este último, por vezes descrito atabalhoadamente, e carinhosamente, como o “Grimes do Pará”, um cantor performático que já nos deu um bom punhado de canções pop, e está embrulhado em mais uma novidade destes últimos dias. “Rito de Passá” é o single do iminente álbum de MC Tha, co-produzido por Jaloo, caso raro de cantora funk que almeja devorar a tradição musical brasileira, aqui numa batucada passada a ferro pela batida, por alguém que anda nestas andanças de fazer tremer o chão, e o rabiosque, desde os 15 anos.

Outro parceiro recorrente de Jaloo é Omulu, versátil DJ carioca que parece estar na jogada de todas as peladas na terra de Vera Cruz, desde BaianaSystem a Pablo Vittar, a encher o campo com fitas malabaristas, alguma displicência, um brinca na areia, de arregalar o olho. Não basta a mão pesada no funk do eixo Rio de Janeiro-São Paulo, Omulu lança agora “Meu jeito de amar”, e ataca o brega gloriosamente azeiteiro do Norte e Nordeste brasileiro. Este versátil género musical é outro daqueles casos recorrentes, os críticos bateram tanto nesta manifestação popular com teclados de qualidade duvidosa, que o insulto virou nomenclatura: brega. E o brega é para ser celebrado, gente carente “precisando de um amor”, pé na pista e bunda à deriva:

“Se eu sentar tu vai pirar
Eu rebolo gostoso
Esse é meu jeito de amar”

A voz é de Duda Beat, a artista revelação da MPB, que se não conhecem, é caso urgente de parar de ler, e ouvir de fio o pavio o seu álbum de estreia, Sinto Muito. Não satisfeitos no quesito de jeitos de amar, Criolo junta “Etérea” ao kamasutra lírico de lançamentos quentes, onde canta:

“Mas se tem um jeito esse meu jeito de amar
Quem lhe dá o direito de vir me calar”

Ainda não é certo se esta pregação cívica em modos de rave é prenúncio de álbum novo, apenas que é mais uma mensagem a mirar Aquele-Cujo-Nome-Não-Deve-Ser-Pronunciado, também conhecido pelo mito, ou Jair Bolsonaro.

E pelo Brasil fora poderíamos prosseguir numa extenuante, e impossível, amostra da produção musical das últimas semanas: o rock certeiro de Terno Rei, o lo-fi descontraído de CS Loverboy, a estreia de Marcelo Falcão (ex-vocalista dos Rappa), o ritmo pernambucano de Mombojó, placitude da mineira Juliana Perdigão, ou até o filme que estreou na semana passada, Minha Fama de Mau, cinebiografia de Erasmo Carlos, que já tem entre os comentários do Youtube a melhor crítica possível:

“Cada um tem o Bohemian Rhapsody que merece”.

Quem merece um musical, idealmente sem prótese dentária, é a nossa última recomendação deste período de carnaval, a extraordinária cantora de sedução e professora de história, Dona Onete. “Festa do tubarão” é o novo single, mais uma aula de folclore disfarçada de baile, livro de estudo da “festa da cultura popular”, um carimbó bem agitado para afastar as amarguras do Brasil destes dias tenebrosos — “Se você não é feliz, felicidade a gente inventa”. Rebujo é uma forma de emergir do fundo de mar, conceito alargado para o título do novo álbum, a ser lançado em maio, novamente com produção do herói da guitarrada Pio Lobato, e novamente, é certo, a melhor lambada, carimbó, e profanação dançada por uma senhora de 80 anos ao sul do equador.