O Parlamento debateu esta quarta-feira o problema da desinformação. O deputado escolhido pelo PS para abrir o debate, José Magalhães, acabou por produzir ele próprio um facto falso: disse que a troca de SMS entre o ex-ministro Pedro Marques e António Peixoto que consta da Operação Marquês estava em segredo de justiça. O que é falso. Por outro lado, José Magalhães disse — com razão — que aquilo a que o PSD chama “fake news” para Bruxelas não são “fake news” nem entram na categoria da “desinformação” que os Estados-membros querem combater.
O SMS trocado entre Pedro Marques e o blogger António Peixoto está em segredo de Justiça?
A frase:
“Em vez de fazer perguntas sobre o plano [da União Europeia contra a desinformação], fez perguntas sobre uma violação do segredo de justiça. O senhor deputado não quer certamente que me pronuncie sobre essa matéria. Ou quer? Não nos apanha nesse terreno”
José Magalhães, deputado do PS
O PS marcou um debate na Assembleia da República sobre fake news. Por outras palavras: “Combate à desinformação – Em defesa da Democracia”. A abertura desse debate coube ao deputado José Magalhães, que teve depois vários pedidos de esclarecimento — a figura regimental para responder a essa intervenção.
O deputado do PSD Carlos Abreu Amorim não perdeu tempo a acusar o PS de ter “optado por uma cataplana parlamentar, sem o encanto de uma Cristina”, com “tudo amalgamado, muito bem cozinhado para que ninguém se lembre das origens do cozinheiro”. A ideia do deputado social-democrata era lembrar as “fake news” produzidas por um blogue de defesa do Governo de José Sócrates, o Câmara Corporativa. Nesse sentido, lembrou uma notícia verdadeira, da revista Sábado, e desafiou José Magalhães a dizer se era verdade:
A revista Sábado, através de documentos obtidos na Operação Marquês e obtidos através de uma investigação criminal, imputa ao ex-primeiro-ministro Sócrates a existência de um blogue — que é a Câmara Corporativa, anónimo, em que o autor assinava como Abrantes — que produzia fake news. Que incluía como colaboradores governantes do tempo de Sócrates e do atual Governo, incluindo Pedro Marques, agora candidato a cabeça de lista do PS às eleições Europeias. É a revista Sábado, não é nenhum site de fake news. Se querem ser levados a sério, responda-me: a revista da notícia Sábado é verdadeira ou não?”
Carlos Abreu Amorim referia-se a um artigo, de 28 de fevereiro, da revista Sábado, que dava conta de que Pedro Marques fazia parte da rede do blogue Câmara Corporativa. Em causa estava um SMS enviado pelo blogger António Peixoto (gestor do blogue, que assinava com o pseudónimo de “Miguel Abrantes”) para Pedro Marques a pedir informações sobre um artigo de opinião de Vasco Pulido Valente, onde este criticava o sofrimento a que os reformados tinham sido sujeitos durante a crise. Pedro Marques responderia pouco depois a dizer que não tinha lido o artigo, mas a disponibilizar-se para ajudar o blogger.
PSD lembra blogues associados a Sócrates em debate sobre desinformação
Na resposta, José Magalhães recusou assumir a paternidade das fake news e criticou o deputado por não estar bem informado sobre o plano da União Europeia. Depois acusou-o de estar a utilizar informações em segredo de justiça.
Ora, José Magalhães, que falava sobre a importância da verificação de factos e de não transmitir informações falsas aos cidadãos, estava a fazê-lo no Parlamento. Na verdade, o jornalista que escreveu a peça não violou o segredo de justiça, nem a matéria em causa está em segredo de justiça. Desde logo, o processo da Operação Marquês não está em segredo de justiça desde outubro de 2017. Mais especificamente, desde 11 de outubro de 2017, dia em que foi deduzida a acusação.
Apesar deste levantamento do segredo de justiça, a publicidade do processo (e, por consequência, o acesso do público aos autos) pode ser condicionada pelo juiz que titula o processo. O que não aconteceu. Um ano depois, a 16 de outubro de 2018, o próprio juiz de instrução, Ivo Rosa, proferiu um despacho a autorizar o acesso ao processo por parte dos jornalistas.
Nesse mesmo despacho — ao qual o Observador teve acesso — o juiz Ivo Rosa pronuncia-se sobre o “requerimento dos senhores jornalistas” e começa por dizer que “os presentes autos encontram-se na fase de instrução, o que faz com que tenham natureza pública“.
Apesar da natureza pública, o mesmo despacho diz, ainda assim, que o acesso aos autos “não será absoluto”, uma vez que terá de ter em conta “os dados relativos à reservada da vida privada dos arguidos e demais intervenientes”. E especifica: esses dados dizem respeito a “informação bancária, fiscal, coberta pelo sigilo profissional, sigilo profissional, correio eletrónico e documentação apreendida nos computadores que não tenha sido indicada como meio de prova.”
Os SMS trocados entre António Peixoto e Pedro Marques — que também devem constar de outro processo extraído da Operação Marquês, que envolve o blogger António Peixoto — não estarão dentro destas restrições. É verdade que constam dos anexos, e não dos autos principais, mas não foi colocada nenhuma restrição ao jornalista na consulta destes elementos — ao que o Observador apurou, pôde fazê-lo livremente.
Ou seja: qualquer jornalista com carteira profissional válida que vá às instalações do Tribunal Central de Instrução Criminal pode, de acordo com este despacho de Ivo Rosa, consultar os elementos em causa.
A haver algum ilícito, seria por causa da reprodução daquelas mesmas mensagens escritas, caso se entenda que isso mesmo foi feito. A lei diz que, mesmo sendo já o processo público, a reprodução exata de determinados elementos do processo continua a ser proibida. Mas isso, ainda assim, configuraria um crime de desobediência — e não de violação de segredo de justiça, que já não existe no processo.
Assim, ao contrário do que disse José Magalhães — e utilizou esse facto para fugir à pergunta do PSD, que voltou depois a ser repetida pelo deputado Carlos Peixoto — comentar as revelações feitas no artigo da Sábado não significaria violar, também, o segredo de justiça, pelo simples facto de que a revista também não o fez.
Conclusão: Errado
Os comentários dos políticos não são fake news?
“É péssimo que se introduza em relação a adversários políticos a ideia de que estão a produzir fake news. Estão a produzir a sua opinião política, pode ser certa ou errada (…) O Plano de Ação contra a Desinformação exclui expressamente os comentários partidários claramente identificados.”
José Magalhães, deputado do PS
O PSD tem acusado Pedro Marques — e voltou a fazê-lo no debate desta quarta-feira — de ser um produtor de fake news, enquanto ministro. Isto com o argumento de que o ministro anunciou investimentos que depois não se concretizaram.
O PS fez questão de separar as águas entre o que é uma notícia falsa (em particular as notícias colocadas ao serviço da extrema-direita, de populistas ou de Estados estrangeiros para influenciarem eleições democráticas) daquilo que são informações erradas dadas por políticos.
José Magalhães puxou então do Plano de Ação da União Europeia contra a desinformação que diz, tal como o próprio projeto de resolução do PS que “desinformação não inclui erros por inadvertência, sátira e paródia, ou notícias e comentários partidários claramente identificados”. Neste caso, o deputado do PS tem razão, o conceito da União Europeia de desinformação — no qual assenta a luta dos Estados-membros — às fake news, excluiu todos os comentários que são ditos no âmbito do combate político.
O deputado do Bloco de Esquerda Luís Monteiro também separou as mentiras dos políticos das fake news: “O então candidato Pedro Passos Coelho mentiu ao país, sobre o 13º e 14º mês, não foi fake news. Foi um político que mentiu ao país”. O deputado do CDS Telmo Correia concordou, dizendo que havia muito a dizer “se puxasse pelo ex-ministro Pedro Marques”, já que o que anunciou “é uma notícia que não é verdadeira, mas não entra neste conceito de fake news. Pedro Marques é, aliás, um cliente recorrente do Polígrafo “.
A visão de PS, BE e CDS de que uma mentira de um político não é fake news, pode ser discutida, já que isso excluiria, por exemplo, políticos tantas vezes acusados de as fabricar ou impulsionar no Twitter (como é o caso de Donald Trump). No entanto, o que José Magalhães diz é que esse tipo de declaração está excluído do conceito de desinformação da União Europeia, o que é rigorosamente verdade.